Ressurreição
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XVII
SACRIFÍCIO
A situação das duas moças demandava um termo. Raquel foi a primeira que resolveu deixar completamente o campo; tinha no seu restabelecimento uma excelente razão para regressar a casa.
Lívia compreendeu a intenção da amiga quando esta lhe comunicou a sua resolução. Era tão simples e tocante o sacrifício, que a viúva não resistiu a um impulso generoso. Respondeu-lhe com um beijo. O beijo era de admiração; Raquel acreditou fosse de agradecimento, e sorriu com tristeza.
Ficou assentado que Raquel iria no domingo próximo, e nesse sentido foi avisado o coronel.
Estavam ainda no dia seguinte ao do episódio do menino. Nenhuma das suas circunstâncias esquecera ao médico. A esquivança de Raquel continuava a preocupar-lhe o espírito, não menos que a infundada suspeita que nutria a respeito da viúva. Era meado o mês de dezembro. A data do casamento estava próxima. Tudo exigia um desenlace a tempo.
Não tardou que o médico descobrisse os sentimentos que a filha do coronel nutria a seu respeito. Surpreendeu-a perto de uma janela interior, a beijar uma página de um álbum de retratos. Aproximou-se cauteloso, lançou os olhos à página e viu nela o seu próprio retrato.
A descoberta fê-lo sorrir. Seria aquilo a razão da mudança que notara nela? Nesse caso sabia já da afeição que o ligava à viúva, talvez do projetado casamento. Era possível também que a volta dela à casa de seus pais não tivesse outro motivo.
Por mais isento que seja o espírito de um homem, é raro que o não lisonjeie uma afeição assim, medrosa e silenciosa, nascida e vivida na soledade da alma. Félix sentiu primeiro essa impressão de egoísmo. Veio depois outro sentimento melhor - o de uma respeitosa admiração. Seu pensamento entrou a conjecturar a data daquele singular amor; à proporção que se internava nos dias do passado, ia combinando uma série de episódios esparsos, aparentemente vagos, agora significativos e eloquentes. Não era recente a afeição dela; era talvez anterior à sua enfermidade.
Chegara o sábado, véspera da partida de Raquel. Era de noite. Félix estava em casa da viúva, e ambos, e Raquel, e até Viana, todos pareciam preocupados e tristes. O médico olhava para a filha do coronel, sem reparar que os olhos de Lívia seguiam os seus e como que buscavam ler por eles os sentimentos do coração.
Raquel esquivava-se às atenções do médico. Em certa ocasião, porém - achando-se Félix mais afastado -, aproximou-se dele com um livro.
- Já leu este romance? - perguntou ela.
- Deixe ver - disse Félix, convidando-a com um gesto a sentar-se.
Raquel não se sentou; estendeu-lhe o livro, e olhou com insistência para o médico.
Félix pegou no livro e consultou a primeira página; ia voltar distraidamente a segunda, quando lhe caiu nos joelhos um papelinho dobrado. Raquel voltou assustada a cabeça para lado de Lívia, que de pé, junto do piano, tirava notas soltas do teclado, sem olhar para o grupo. Raquel fez ao médico um sinal de silêncio e afastou-se dele. Félix guardou o papel no bolso.
"Quase uma criança!", ia ele pensando quando se retirava para casa depois do chá.
Quando ali chegou não se deu ao trabalho de tirar o chapéu. Abriu a carta logo na sala. Dizia a carta:
"Pela memória de sua mãe, não seja cruel! Lívia ama-o muito. Não a faça morrer, que seria um pecado!"
Félix esfregou os olhos e releu o bilhete.
Não havia negá-lo; a letra era de Raquel, e o conteúdo era uma súplica a favor da rival. Não sorria o médico; estava atônito. A verdade, tão inverossímil desta vez, metia-se-lhe pelos olhos, singela, eloquente, espontânea. Espontânea seria? Félix fez essa pergunta a si mesmo, e afirmativamente lhe respondeu; não atribuía à viúva tamanha influência, nem à donzela tamanha submissão, que uma inspirasse e a outra escrevesse aquela carta. A cousa pareceu-lhe o que realmente era: um sacrifício de Raquel.
Félix não era homem de grandes expansões; mas, se Raquel estivesse diante dele naquela ocasião, era capaz de cair-lhe aos pés. Abafar uma afeição silenciosa, a primeira talvez, para pedir a felicidade de outra mulher, era abnegação rara, que o surpreendia.
A ação de Raquel fez-lhe esquecer por algum tempo a viúva, objeto da carta que acabava de ler. Raquel não afirmaria tão claramente os sentimentos da amiga, se não tivesse plena certeza deles. Como conciliaria, entretanto, a afirmação de hoje com a suspeita de ontem? A mesma Raquel lhe insinuara diversa inclinação da viúva. Naturalmente reconhecera o contrário. A ideia da reabilitação de Lívia para logo dominou o espírito de Félix. Seu amor existia no mesmo estado de força e viço; fácil de desmaiar, não era menos fácil de se restabelecer. No dia seguinte parecia desfeita a nuvem que por alguns dias o abafara.
Foi à casa da viúva; era uma hora da tarde. Tinha curiosidade de encarar a filha do coronel. Achou-a tão alegre e travessa como era dantes. Era assim aparentemente; os olhos estranhos não viam a mágoa interior e encoberta que lhe roía o coração. Seu infortúnio tinha pudor.
Ao médico era impossível encobrir esse estado. A tocante generosidade da moça fez-lhe bem ao coração. Teve ele a delicadeza de não tratar a viúva por modo que magoasse a donzela; mas, tão outro se mostrava do que fora até então, que a viúva não pôde resistir-lhe, e aquele dia foi muito menos triste que os outros.
As travessuras de Luís faziam coro com as de Raquel. A porta da sala estava aberta. Luís desceu os degraus que comunicavam da sala com o jardim, na ocasião em que Lívia fechava uma pulseira de Raquel. Quando a viúva deu por falta do filho, correu à porta. O menino corria na direção da porta da rua. A mãe desceu atrás dele.
Raquel ia descer também; Félix pegou-lhe na mão. A moça estremeceu toda; afoguearam-se-lhe as faces, e ela balbuciou:
- Leu a minha carta?
- Li - respondeu Félix cravando nela um olhar que era a um tempo de simpatia e de pena -; li, e não sei se deva crer o que lá me diz.
- É a verdade.
- Mas então supõe?...
- Que ela o ama; afirmo-lho.
- E que eu a amo também? - perguntou com hesitação.
- Isso... creio - assentiu Raquel, abaixando os olhos.
Félix calou-se. Decorreram dous ou três minutos de silêncio. Raquel continha com dificuldade os movimentos do coração. Preferia estar a cem léguas dali, mas lembrava-se da outra e isso lhe dava ânimo.
O médico foi o primeiro que falou:
- Como sabe que ela me ama?
- Sei - respondeu Raquel sorrindo com afetação -, e é quanto basta. Demais, nenhuma moça escreveria semelhante carta a um homem se não tivesse certeza do que afirmava. Só lhe peço uma cousa: destrua essa carta. Nada vale, mas eu não quisera que a conservasse.
Lívia aproximava-se; sentiram passos na escada de pedra. Raquel correu à porta, enquanto Félix tirava a carteira do bolso, e procurava o bilhete de Raquel. Foi nessa ocasião que o coronel e a esposa chegaram. As duas moças desceram a recebê-los.
Félix desceu também, e caminhou a alguns passos de distância, com o coração dividido entre o amor de Lívia e a admiração de Raquel.
Os pais da moça jantaram nas Laranjeiras. Lívia acompanhou depois toda a família à cidade. Na ocasião de se despedir do médico, a filha do coronel sentiu que as forças lhe iam faltando. Reagiu, porém, sobre si mesma e, sem olhar para ele, estendeu-lhe a mão, que o médico respeitosamente apertou. Ao voltar-lhe as costas, um suspiro lhe saiu do peito; partira-se o último vínculo da esperança.
XVIII
RENOVAÇÃO
Lívia não ignorou muito tempo a existência da carta de Raquel. Félix mostrou-lha no dia seguinte, desejoso de saber como havia nascido no espírito da moça a convicção tão generosamente afirmada.
- Contei-lhe tudo - disse a viúva -, quando supunha que tudo estivesse morto no teu coração. Ela condoeu-se de mim, e vejo agora que não era sentimento estéril o que me revelara. Pobre Raquel!
- Esta carta foi excelente consolação, Lívia, porque eu sentia uma dúvida cruel a teu respeito... Mas a que propósito lhe falaste?
Lívia hesitou alguns instantes. Ou melhor, reprimiu o seu primeiro impulso, que foi referir ao médico o amor e a confissão de Raquel. Estaria no seu caráter se o fizesse; mas um vislumbre de reflexão atalhou essa confidência prestes a subir-lhe aos lábios. Recearia que a notícia de um amor tão generoso o desviasse dela? Pode ser. A explicação que lhe deu foi breve.
- Já lhe disse - respondeu a moça -; confiei-lhe a causa das minhas mágoas, num dia em que mostrava condoer-se de mim. Se errei a culpa é sua.
Félix não insistiu. Pela sua parte, deixou também de referir a razão da recente frieza nas suas relações com ela. A viúva, que o sabia, achou mais acertado não lhe falar nisso.
Tantas vezes apagada no céu, reaparecia enfim a estrela da felicidade, e para sempre? Era caso de dúvida, à vista do passado; mas a credulidade da viúva estava acima da sua experiência. A ternura de Félix nunca fora mais espontânea e viva do que então. O coração como que se lhe renovara. O sacrifício de Raquel não era estranho a essa reação, que fazia reviver todas as esperanças da amada.
A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viúva. Ela possuía a memória da felicidade, não a das tristezas. O que eram reminiscências de infortúnio apagaram-se com o tempo; a serenidade dos primeiros dias foi só o que lhe ficou.
Houve em certa ocasião uma leve nuvem passageira; foi a presença de Meneses, que ainda frequentava a casa da viúva. A maneira por que Félix recebera o amigo fez compreender à moça que no coração dele havia ainda um travo de amargura. Não lhe foi difícil extingui-lo de todo. Referiu-lhe ingenuamente tudo o que se passara entre ela e Meneses, a branda austeridade com que respondera às suas declarações amorosas, enfim o procedimento honesto do rapaz.
Félix abanou a cabeça.
- Censuras-me? - inquiriu a moça.
- Não - afirmou o médico -. Lastimo-te.
- A intenção era boa.
- Seria; mas a vida não é fábrica de sentimentos; não se vive como se romanceia. Ímpetos de generosidade são muito bons, quando se não corre perigo nenhum. Quem te afiançava a honestidade desse moço?
- Oh! Adivinha-se!... Queres uma prova? Ele não voltará cá.
- Por quê?
- Creio que percebeu tudo.
O médico ficou algum tempo pensativo. Duas vezes tentou falar e conteve-se. Enfim disse:
- Não é preciso perceber aquilo de que há de ter certeza amanhã. Casamo-nos na segunda semana de janeiro. A notícia será pública desde já.
Félix esperava um movimento expansivo da viúva, ao ouvir esta declaração. Lívia não se alterou; apenas empalideceu.
- Tens razão - disse Félix depois de olhar para ela algum tempo -; eu não tenho direito a mais. Tantas vezes te iludi, que é legítimo o teu receio.
No dia seguinte fez o médico oficialmente o seu pedido na presença de Viana, que abraçou com entusiasmo o futuro cunhado.
- Isto devia acabar assim mesmo - disse ele -; há muito que eu previa e desejava o casamento. Nasceram um para o outro; estão na força da idade; não podia haver melhor união. Pela minha parte desistirei até, se for preciso, da viagem que o senhor me prometeu. Lembra-se? Não faz mal. O que eu quero é vê-los felizes. Eu logo vi que tramavam alguma cousa, mas gabo-lhes a habilidade. Dê-me outro abraço, doutor.
Félix prestou-se às expansões do parasita. Lívia contemplava o noivo com adoração. Para ambos eles o mundo inteiro havia desaparecido. Inteiro não; Viana fez casualmente alusão a Raquel, e essa intempestiva recordação entristeceu a moça. Ela via que a sua felicidade era causa da desventura da amiga, e agora que a tinha quase realizada, sentia morder-lhe um piedoso remorso.
Adiantaram-se os preparativos do casamento. Lívia pediu ao médico a supressão de todo aparato, para não ferir o coração de Raquel, pensava ela. A publicidade seria apenas a necessária. Não contava com o irmão, que se encarregou de dar ao consórcio proporções de acontecimento.
A notícia foi referida por ele na rua do Ouvidor, esquina da rua Direita. Daí a dez minutos chegara à rua da Quitanda. Tão depressa correu que um quarto de hora depois era assunto de conversa na esquina da rua dos Ourives. Uma hora bastou para percorrer toda a extensão da nossa principal via pública. Dali espalhou-se em toda a cidade.
Foi geral o espanto. Ninguém acreditava que Félix se determinasse ao casamento. Falava-se, é verdade, no namoro; mas, além de ser boato sem importância nem generalidade, alguns não atribuíam ao médico mais do que a intenção de um passatempo, ao passo que outros davam às relações entre ele e a viúva um caráter absolutamente íntimo, sem nenhuma aspiração de legalidade.
A convicção entrou enfim no espírito público. Moreirinha atribuía o caso a um desconcerto cerebral do médico. O Dr. Luís Batista não deu opinião; parecia-lhe indiferente o casamento da viúva.
Raquel recebeu a notícia sem admiração, mas com mágoa. Esperanças, não as tinha já; o mal que nos não espanta não nos dói contudo menos por isso. Quem lhe deu a notícia foi Meneses, que a recebeu com filosófica resignação. O amor deste tinha-se convertido numa espécie de adoração religiosa. Achava na mulher amada todas as qualidades que podiam seduzir um homem como ele. Havia, além disso, aquele vínculo simpático de duas criaturas que viviam mais da imaginação que da vida prática. A recusa de Lívia não rompera, transformara as cadeias que o prendiam a ela.
Não acontecia o mesmo a Raquel, e esta circunstância não escapou ao rapaz, que habilmente a interrogou, e adivinhou tudo. Meneses sacudiu lentamente a cabeça, mas não lhe disse palavra. Apenas pensou consigo que, se o acaso ou a Providência houvesse disposto as cousas de outro modo, ambos eles podiam ser felizes.
Meneses repeliu a ideia de fazer confidências à filha do coronel; tanto, porém, lhe falou da viúva, que a outra alguma cousa desconfiou. Sabedores, enfim, do que padeciam interiormente, a comum desventura os vinculou de algum modo. Como as relações eram antes corteses que familiares, nenhum deles falou com a efusão que lhes pedia o sentimento; adivinharam-se, o que era muito, e apiedavam-se um do outro, o que era quase tudo.
XIX
À PORTA DO CÉU
Dous dias antes do casamento, Lívia foi jantar à casa do coronel, a convite deste, que reunira algumas pessoas de amizade. Félix não compareceu, apesar de instantemente chamado; cedera a um sentimento de delicadeza, não querendo mortificar com a sua presença a filha do coronel, nem perturbar de algum modo o espírito da viúva.
A primeira ideia de Lívia foi não aceder ao convite, a fim de não afrontar a dor de Raquel. Instaram tanto os pais da moça que lhe foi impossível recusar.
As duas moças encararam-se comovidas; a diferença era que Raquel pôde ocultar melhor o seu abalo do que a viúva. Essa vitória da donzela sobre si mesma fez redobrar a admiração da rival. Entendeu-lhe a delicada intenção, e agradeceu-lha na primeira ocasião que se lhe deparou.
- Sei tudo - acrescentou Lívia -; sei da tua carta, que foi a chave com que de novo se me abriram as portas da fortuna. Eu não sei se poderia ser tão heroica como tu. Separa-nos o destino; deixa-me beijar-te as mãos.
O gesto acompanhou estas palavras: Raquel recusou ceder ao desejo da viúva.
- Seja feliz! - murmurou ela.
Tais foram as últimas palavras que houve entre ambas. Quando a viúva saiu trocaram um beijo, a que não se podiam recusar, e que da parte de Raquel foi muito menos espontâneo que da outra. Lívia o sentiu e sinceramente lho perdoou.
Ao entrar no carro, com o irmão, a viúva ia desconsolada e triste. Seu coração sabia amar, e a ideia de que a sua felicidade custaria lágrimas a alguém fundamente lhe doía.
"Por que razão", pensava ela, "me há de lançar a Providência esta gota amarga na taça das minhas delícias? Se eu ao menos o ignorasse... a minha felicidade não seria travada de remorsos... Felicidade? - continuou ela dirigindo o pensamento a uma nova ordem de ideias -; será deveras felicidade? O sonho, tantas vezes dissipado, realizar-se-á, enfim?... Há quase um ano que eu pus toda a minha existência nesta vaga probabilidade; está próximo o termo, não sei que sorte avessa me repele para longe. Não a mereço talvez, ou então ambiciono demais... Chamam-me bela, devia talvez contentar-me com ser admirada..."
Neste ponto foi a moça interrompida por uma observação banal do irmão, que tinha um termômetro infalível nos pés e anunciou que havia trovoada iminente. A irmã olhou silenciosamente para ele, e admirou consigo mesma a ventura daqueles para quem as tempestades do ar importam mais que as tempestades da vida. Viana faria provavelmente a reflexão inversa se adivinhasse as preocupações da irmã.
Quando chegaram às Laranjeiras acharam Félix na sala, conversando infantilmente com o filho de Lívia, que lhe pedia a explicação do mecanismo do relógio. Félix aplicava todos os recursos da imaginação para satisfazer a curiosidade do menino. Como ouvisse parar um carro, e logo depois rumor de passos no jardim, o médico disse ao menino que a mamãe estava aí, e aproveitou a ocasião para lhe anunciar que ia casar com ela.
Ao ouvir esta notícia, o menino subiu aos joelhos do médico, e perguntou alegremente se era verdade o que dizia.
- Sim, é verdade - repetiu Félix.
- O senhor casa com mamãe?
- Caso, já disse.
Neste momento assomou à porta a figura de Lívia. O menino desceu dos joelhos de Félix e correu a abraçar a mãe.
- É verdade que mamãe casa com o Doutor Félix? - disse ele depois de receber um beijo da viúva.
- É, meu filho - respondeu esta entrando e estendendo a mão ao médico.
A presença de Félix e a alegria de Luís mudaram o curso às reflexões da moça. Cinco minutos bastaram para fazer esquecer a tristeza própria e o infortúnio da rival abatida. Raquel verteria naquela ocasião, no silêncio da sua alcova, uma lágrima de saudade? Nenhum deles pensou nisso, nem a viúva a quem ela tão generosamente servira, nem Félix, que era o objeto daquelas dores solitárias.
Félix estava mais jovial que nunca. Perdera de todo as maneiras friamente polidas; tornara-se expansivo, gárrulo, terno, quase infantil. O coração parecia-lhe cheio do presente e do futuro. Não era só a situação que explicava esta mudança; era também a volubilidade do espírito.
A viúva lia-lhe na alma, que, enfim, ressurgira, um poema de inefáveis venturas. Houve um momento em que lhe lembraram as mesmas alegrias da véspera do seu primeiro casamento, e estremeceu; mas a impressão durou pouco; o segundo marido não era, como o primeiro, uma criatura sem alma, era, sim, uma alma sem ação. Mas o amor não começava já a reanimá-la?
Mais quarenta e oito horas, e eles uniriam para sempre os seus destinos. Esse ato decisivo e grave da vida do homem, já o médico o encarava com a tranquilidade de ânimo resoluto, sem tropeçar na responsabilidade nem arrecear-se das consequências. Antolhava-se-lhe o lar doméstico como a cidade da paz e da concórdia. Não via às portas dela o lívido espectro da dúvida; flores e folhas verdes, não mortíferas, senão vivificantes, pareciam alcatifar-lhe o caminho e convidá-lo a descansar enfim da vida que tão mal vivera.
Lívia saboreava esse renascimento do amante. Estavam sós e iam dar o penúltimo beijo de despedida. O último seria o da noite seguinte. As mãos dela pousavam nos ombros de Félix, e os olhos de ambos procuravam fundir as duas almas no mesmo raio de luz.
O céu não dava razão aos receios de Viana; tinham-se dissipado as nuvens que anunciavam próxima borrasca. Não havia luar, mas a noite estava clara; e as vivíssimas estrelas que luziam no céu, algum poeta imaginoso as compararia a línguas de fogo daquele pentecostes de amor.
- Jura-me ainda uma vez que me amas! - dizia ele -. É doce à minha alma ouvir-te essa confissão!
- Pelo céu, por meu filho, por ti, juro que te amarei sempre! Amava-te ainda quando eras indiferente ao meu afeto, quando o negavas, quando me pagavas com o desdém. Por que te não amaria agora que és todo meu... todo, não?
- Duvidas?
- Eu não sei duvidar; recear, sim. Já te disse por que razão. Mas hoje não receio, não; sinto que sou verdadeiramente amada. Quaisquer que fossem as minhas queixas, eu tudo te perdoaria agora, que me abres a porta do céu.
- Oh! Tu és um anjo!
- Adeus!
- Adeus! Amas-me muito, não?
- Muito!
E um beijo casto, longo, quase divino, selou esta confissão tantas vezes repetida entre eles. Depois apertaram as mãos, e Félix saiu.
A rua estava deserta, o silêncio era profundo. Félix entrou em casa exaltado e alegre. Não tinha sono; recorreu aos livros, mas não lhe aproveitou o recurso, porque se os olhos corriam no papel, o espírito estava ausente, no tempo e no espaço; buscava a amada e planeava futuros.
Com a fadiga veio o sono. Félix adormeceu nos braços dos anjos.
Batiam oito horas quando ele acordou e abriu as janelas. O dia estava triste. Caía uma chuva fina e constante que havia começado pouco antes dos primeiros albores da manhã. Que lhe importava a ele a melancolia da natureza, se tinha dentro da alma uma fonte de inefáveis alegrias?
Assentou-se à escrivaninha, e durante duas horas fez o inventário da sua vida de solteiro, rasgando com indiferença uma imensidade de cartas que lhe lembravam afeições extintas ou simples relações passageiras. Varria o templo em que devia entrar a escolhida de seu coração. Quando relia algumas dessas epístolas - folhas caídas da estação que se fora -, desenhava-se-lhe nos lábios um sorriso irônico, mas tranquilo, tal era a transformação de sua alma já indiferente às lutas do passado.
Às dez horas levantou-se para almoçar. Acabava de sentar-se à mesa quando lhe vieram dizer que uma pessoa o procurava.
Era o Dr. Luís Batista.
XX
UMA VOZ MISTERIOSA
Félix estacou à porta da sala. Luís Batista deu dous passos para ele.
- Nunca me ofereceu a sua casa - disse -, e a minha indiscrição vem reparar o seu esquecimento.
Era um gracejo ou um remoque? Félix limitou-se a apertar a mão que o outro lhe estendia e convidou-o a sentar-se.
- Disseram-me que estava almoçando - observou Batista -; não quero de nenhum modo interrompê-lo. Vá, e eu ficarei aqui folheando algum livro.
- Ia começar a almoçar - respondeu o médico -; se quiser almoçaremos juntos.
- Não; se me consente, visto que ainda está solteiro, irei familiarmente assistir ao seu almoço, e então lhe exporei o motivo que aqui me traz.
Félix convidou-o a entrar, e ambos se sentaram à mesa. As primeiras frases trocadas foram acanhadas e frias, mas as maneiras livres do hóspede conseguiram abalar a reserva do dono da casa.
- É verdade - disse Batista -, ouvi dizer que ia casar...
- Amanhã.
- Assisto portanto ao seu penúltimo almoço de rapaz solteiro. Há muita gente que ainda não acredita. Creio que o senhor tinha fama de celibatário convencido e, pela regra, um celibatário convencido é um noivo à mão. Também eu era assim; e contudo... O casamento é bom; tem seus inconvenientes, como tudo neste mundo; mas é bom, com a condição única de o aceitarmos como ele deve ser...
- Um pouco livre? - disse Félix sorrindo.
- Não sei se pouco ou muito, é questão de temperamento. O essencial é que seja livre. Eu assim o entendo e pratico; sou um pecador miserável, confesso, mas tenho ao menos o mérito de não ser hipócrita, e agora mesmo...
- Agora mesmo? - repetiu Félix depois de alguns instantes de silêncio.
- Não sei se deva contar-lhe isto; o senhor é ainda neófito, vai naturalmente aborrecer-se e amaldiçoar-me... Mas, em suma, é indispensável que eu lhe diga tudo, porque isso prende com o motivo que me traz à sua casa.
Batista aceitou uma xícara de café que o médico lhe ofereceu. Depois, com um modo acintemente leviano, referiu ao dono da casa uma aventura amorosa daqueles últimos dias. Tratava-se de uma mulher caprichosa e requestada. Seu triunfo era portanto duas vezes glorioso. Como beleza, desafiava ao próprio médico a resistir-lhe depois de meia hora de contemplação. Achar-se-iam, talvez, outras mulheres mais formosas; nenhuma, porém, tinha como essa o misterioso encanto que sabe agrilhoar a vontade mais rebelde.
- Quando ela me fita os seus grandes olhos - continuou pinturescamente Luís Batista -, é o mesmo que se me entornasse chumbo derretido nas veias.
Todo o estilo da sua descrição era assim - galhofeiro e sensual. Falou durante vinte minutos com o entusiasmo próprio da sua situação. Félix ouvia pacientemente a narração do hóspede, sem atinar com a relação que teria aquilo com o pedido que lhe ia fazer. Interiormente estava aborrecido. Não fora o médico em sua longa vida de rapaz solteiro nem casto nem cauto; mas a atmosfera do noivado começava a arejar-lhe o espírito, e semelhante confidência, naquela ocasião, lhe parecia de todo ponto extravagante.
- Não desconheço - disse Luís Batista quando concluiu a sua expansão amorosa -, não desconheço que uma aventura destas, em véspera de noivado, produz igual efeito ao de uma ária de Offenbach no meio de uma melodia de Weber. Mas, meu caro amigo, é lei da natureza humana que cada um trate do que lhe dá mais gosto. A vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria. O senhor está num intervalo; delicie-se com o seu Weber até que se levante o pano para recomeçar o seu Offenbach. Estou certo de que virá cancanear comigo, e afirmo-lhe que achará bom parceiro.
Dizendo isto, Luís Batista engoliu o resto, já frio, do café que tinha na xícara, acendeu de novo o charuto, e recostou-se na cadeira. Félix teve tempo de reassumir a atitude tranquila que as últimas palavras de Batista lhe haviam alterado.
- Enfim - disse ele -, que ligação há entre essa aventura e o pedido que me vai fazer?
- Toda - respondeu Batista -; se ela não existisse, eu não viria pedir-lhe nenhum favor. O senhor sabe o que é um capricho de mulher amante; não ignora também que o menor desejo dela é uma ordem para o cavalheiro seu escolhido.
Félix fez um gesto afirmativo.
- Pois bem - continuou Batista. Estamos nesse caso. Ela é extremamente caprichosa, e mais ainda que caprichosa, é amante de cousas d'arte. Há dias fui achá-la aborrecida. Interroguei-a; nada me quis dizer. Pela conversa adiante falou-me duas ou três vezes numa gravura que vira na rua do Ouvidor, e que o dono vendera quando ela lá voltou, disposta a comprá-la. O assunto era o mais ortodoxo possível: a israelita Betsabé no banho e o rei Davi a espreitá-la do seu eirado. Não lhe parece galante? A gravura creio que era finíssima; mas tinha, além disso, um merecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que a figura de Betsabé era a cópia exata das suas feições. Vaidade de moça bonita. Mostrava-se tão desconsolada quando falava naquilo, que facilmente percebi não ser outro o motivo do aborrecimento em que a fui encontrar.
- E então?
- Fiz o que faria qualquer outro. Era necessário que a todo o trance ela possuísse um exemplar da gravura. Fui procurá-lo, e não achei. Gastei dous longos dias nessas pesquisas, e quando voltei à casa dela não tive remédio senão tirar-lhe a última esperança. Ela apertou-me afetuosamente as mãos, e agradeceu-me o trabalho, dizendo-me que era mais uma prova de amor que lhe dava; concluiu, porém, tudo isso com um suspiro. Eu não me atrevo a dizer ao senhor o que quer dizer um suspiro neste caso; aquele suspiro era uma insistência do desejo.
- Parece que sim - disse Félix que já adivinhara o final da exposição.
- Dir-me-á o senhor - continuou Batista - que eu devia aproveitar o paquete que partiu ontem e mandar vir da Europa a gravura. Não duvidaria fazê-lo, e ela esperaria de boa vontade; mas quem pode afirmar que o meu amor dure até à volta do paquete? Tive então uma ideia salvadora.
- Ah!
- Voltei à loja onde ela vira a gravura e inquiri do dono da casa quem lha havia comprado. Depois de algum trabalho de memória disse-me que fora o senhor. A princípio hesitei se devia importuná-lo. O pedido não seria indiscreto em qualquer outra ocasião; mas, quando o senhor está para tomar um estado moral, rogar-lhe que me ajude a enxugar as lágrimas de uma bela pecadora, é mais que indiscrição, é atrevimento. Hesitei, a voz da razão era mais fraca que a do pecado, e venceu o pecado.
Luís Batista calou-se, esperando a resposta do médico. Houve um largo silêncio.
Levantaram-se da mesa e foram para a sala, sem que Félix desse a resposta. Luís Batista foi o primeiro que tornou ao assunto.
- Não me pode fazer o que lhe peço? - disse ele.
- Tenho estado a perguntar a mim mesmo se me é lícito fazê-lo - respondeu Félix sorrindo -, e se ao entrar nas fileiras do matrimônio devo ajudar a deserção de um camarada.
Luís Batista estava naquele dia singularmente falador. A simples observação do médico deu azo a um largo discurso a respeito do regímen matrimonial. Era meio-dia; Félix estava já fatigado da visita e da palestra. Aproveitou um interstício para dizer:
- Em suma, tem grande desejo de possuir a gravura?
- Queria que ma cedesse.
- Faço-lhe presente dela.
- Eu não desejava de nenhum modo prejudicá-lo - disse Batista -; há de consentir então que eu lhe faça um presente de noivado.
Félix não respondeu; foi buscar a disputada gravura e trouxe-lha. Luís Batista não pôde reter um grito de surpresa. A figura de Betsabé, dizia ele, parecia realmente uma cópia da sua dama. A dama era talvez mais formosa do que a cópia.
Foi nesse momento que trouxeram ao médico uma carta, entregue pelo correio. Félix abriu-a distraidamente, mas tanto que lhe leu o conteúdo ficou muito pálido e encostou-se a uma cadeira. Com a mão trêmula aproximou o papel dos olhos, enquanto os dentes mordiam os lábios até deitar sangue. Luís Batista aproximou-se rapidamente de Félix e perguntou-lhe o que tinha.
- Nada - disse o médico -, uma vertigem apenas... Há de dar-me licença, preciso estar só.
O hóspede curvou-se, sorriu e saiu.
Félix encerrou-se no seu quarto. Do que lá se passou ninguém de casa soube: algum rumor se ouvia de quando em quando, mas abafado, e uma ou outra exclamação vaga e solta. Eram quatro horas quando o médico saiu à sala.
O tempo tinha melhorado. O sol reaparecera entre duas nuvens, dando de chapa nas árvores molhadas de chuva e nos telhados que escorriam um resto de água. Dissera-se que a natureza queria fazer outro contraste ao inverso do da manhã, porque, se a tarde sorria alegre, o homem dava sinais de tempestade interior. Tinha os olhos vermelhos, a boca contraída, os cabelos em desordem. Saiu com passo vacilante. De quando em quando, colhia o alento com a expressão de quem lhe custa respirar. Um escravo, a que ele deu algumas ordes, reparou no estado do senhor, e perguntou-lhe se estava doente.
Félix respondeu secamente que não. O escravo abanou a cabeça e saiu.
Félix escreveu em seguida uma carta que sobrescritou para a viúva. Vestiu-se depois. Não tardou que lhe parasse um carro à porta. Meteu-se nele e mandou tocar para a cidade.