Ressurreição
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XVI
RAQUEL
Quando Raquel ficou só, atirou-se ao sofá, trêmula, fria, com os olhos secos, sem compreender bem aquele drama íntimo, mas sentindo-lhe já algum terrível desenlace. O que ela via claro é que a outra amava o mesmo homem, e com tal força, que cedera a um impulso de cólera, tão contrário aos seus hábitos de brandura.
As reflexões de Raquel não passaram daí. Nem todas as almas podem encarar as grandes crises. Quer-se um espírito robusto para estas situações complexas. Raquel ficou simplesmente atônita e abatida.
Na chácara foi notada a ausência das duas. Viana deixou os hóspedes e foi à sala.
- Que faz aqui? - perguntou ele à filha do coronel.
Raquel ficara perturbada com a presença de Viana, e ainda mais com a pergunta. Enfim, balbuciou uma resposta infantil.
- Estava pensando numa cousa - disse ela.
- Onde está Lívia? - perguntou Viana sem atender à resposta da moça nem ao sorriso forçado que lhe entreabria os lábios.
- Creio que está incomodada; foi para dentro.
- Cousa de cuidado?
- Parece que não.
Viana deu duas voltas na sala e saiu para a chácara, pedindo à moça que lá se fosse reunir aos outros.
Félix, entretanto, viera até o jardim, que ficava em frente da casa. Mal havia dado alguns passos quando viu encostada à porta da sala a filha do coronel, com os olhos postos no céu, acaso pedindo a Deus que lhe estendesse a mão para subir até lá. Era sol-posto, hora de melancolia; tudo ali em volta assumia a cor pardacenta e luminosa dos últimos instantes da tarde.
Félix caminhou cautelosamente para a casa, subiu por um dos lanços da escada, e surpreendeu a moça, dizendo-lhe:
- Está linda assim, mas nós precisamos vê-la cá fora.
Raquel retraiu o corpo sem ousar dizer uma só palavra. Félix estendeu-lhe a mão convidando-a a descer. A moça entrou para dentro; o médico deu ainda um passo, mas ela, fazendo um gesto suplicante, disse com voz aflita:
- Pelo amor de Deus, saia!
Félix não resistiu; desceu ao jardim e caminhou para a chácara a reunir-se às outras pessoas. Em vão buscava conjecturar a causa daquela súplica. Era impossível conciliar o procedimento de Raquel com a familiaridade e a confiança que entre ambos havia. A razão da diferença devia ser grave. Mas qual seria ela?
Os convidados retiraram-se cedo. Meneses e Félix foram os últimos que saíram, ao lado um do outro, ambos entregues a reflexões diversas, porque Félix pensava nas palavras de Raquel, Meneses, na pergunta do menino.
A filha do coronel desceu ao jardim. Era noite fechada. Sentou-se num banquinho, e ali ficou em triste meditação. A pobre moça tremia de susto, de incerteza, de apreensão. Não ousava encontrar os olhos de Lívia; tinha-lhe medo, medo pueril, escusado, sem razão, mas enfim medo, e nada havia que tranquilizasse a sua alma franzina e pusilânime.
Como benefício celeste, entraram-lhe a correr as lágrimas, até então retidas pela presença de estranhos. Ninguém lhas viu, que a noite era fechada e o sítio, ermo; mas a aura estiva, que começava a bafejar a folhagem ressequida do sol, acaso lhe ouviu os soluços, acaso lhos levou ao seio de Deus. Veio então, de influxo divino, uma doce consolação às suas mágoas solitárias.
Não ousando voltar para dentro, determinou esperar ali o irmão da viúva, que fora acompanhar um amigo da vizinhança. Pedir-lhe-ia então para a levar no dia seguinte à casa de seus pais. Não hesitava entre a ternura deles e o ódio de Lívia.
Assim refletia ela, quando sentiu passos no jardim. Voltou-se; era a viúva.
- Ah! - exclamou Raquel levantando-se, trêmula e assustada -; pelo amor de Deus! Eu não lhe fiz mal nenhum!
Lívia acercou-se de Raquel; travou-lhe brandamente das mãos, apesar do esforço com que ela buscava esquivar-se, e disse:
- Que mal me farias tu, criança? A culpada sou eu; sou eu que te peço perdão, porque fui cruel e injusta, e cedi ao egoísmo do meu coração... Perdoa-me!
- Perdoo-lhe tudo! - respondeu Raquel.
Caíram nos braços uma da outra. Jamais duas rivais se estreitaram mais sinceramente amigas do que essas duas. Largos minutos correram sem que nenhuma delas falasse; refletiam talvez, talvez não pudessem vencer o acanhamento da sua posição. Lívia foi a primeira que rompeu o silêncio:
- Como é que vieste a amá-lo? - perguntou ela.
- Não sei - respondeu ingenuamente Raquel -; nasceu-me o amor sem que eu reparasse nele. Nem sei se nasceria; creio que foi apenas transformação, porque eu de pequena me acostumei a admirá-lo. Foi talvez a admiração que se fez amor quando eu cresci.
- Nunca lho deste a entender?
- Oh! Nunca.
- E ele?
- Percebi que me queria. Brincava comigo, como quando eu era criança: nada mais.
- E resignavas-te à sorte?
- Que poderia fazer senão isso? Alguma esperança tive nestes últimos tempos; em que a fundava, não sei; talvez na circunstância de nos vermos mais a miúdo. Enganava-me; penso que não nasci para ser feliz.
- Quem sabe? - disse a viúva -. Nem sempre o nosso coração acerta; pode ser que mais tarde te apareça outro a quem ames do mesmo modo...
- Do mesmo modo? - interrompeu Raquel com surpresa.
Lívia pegou-lhe nas mãos.
- Não te parece que assim seja? - perguntou.
- Oh! Não. Chame-me criança, se lhe parece; a senhora há de saber mais do que eu, naturalmente; mas o meu coração me diz que eu não poderia amar a ninguém mais.
- A ninguém mais! - murmurou a viúva amargamente -. Concentraste então toda a seiva do teu coração, neste amor silencioso e quimérico? Não digas isso; amarás mais tarde a outro que te amará também, e serás feliz, creio eu. Murchará esta primeira flor do teu coração, mas há seiva nele para dar vida a outra flor, tão bela talvez, e com certeza mais afortunada. O contrário, Raquel, seria injustiça de Deus. O amor é a lei da vida, a razão única da existência. Encher de uma só vez a alma, sem que ninguém lhe beba o licor divino, e regressar ao céu sem ter conhecido a felicidade na terra? Nem o quererá Deus, nem o temerás tu. Falas pela boca da tua amargura de hoje; espera a ação do tempo, que é bom amigo.
Raquel meditava. Era a primeira vez que ela ouvia falar daquele modo em cousas do coração. A linguagem da viúva servia-lhe a um tempo de consolação e de luz.
Lívia falou ainda muito tempo, sem preconceito nem reserva; não falou como rival, senão como amiga e mãe. Não reparava sequer que lhe dava armas contra si. Falaria talvez de outro modo se se considerasse feliz; mas, como a situação de ambas era igual, ela entornou na alma de Raquel todo o sentimento de que a sua alma estava cheia, e foi eloquente, porque foi sincera.
- Sim - disse Raquel, quando ela acabou -; compreendo tudo isso que me está dizendo. A senhora sabe amar... E ainda o ama, não?
Lívia calou-se.
- Que lhe custa dizer? - insistiu a donzela.
- Custa-me lágrimas. Eu não te poderia explicar nunca este sentimento que me nasceu como erva ruim para me envenenar a existência, e que eu tanto tempo supus que seria a coroa de minha vida... Não te quero enfadar, que são tristezas para isso.
- Mas então ele? - aventurou Raquel.
- Não me perguntes mais; afirmo-te só que o amei, que talvez tornasse a amá-lo...
- E que ainda o ama - concluiu a rival.
Lívia esteve calada alguns instantes, procurando ler-lhe no rosto, apesar das sombras da noite, as impressões que lhe iriam na alma.
- Não! Já o não amo! - disse a viúva com esforço.
Seguiu-se um longo silêncio.
- E se o amasse - disse enfim Lívia -, que farias tu?
- Nada! - respondeu resolutamente Raquel.
- Deveras, nada?
- Pediria a Deus que a fizesse feliz, e estou que Deus me ouviria.
- Eras capaz disso? - perguntou a viúva segurando-lhe nos pulsos e fitando lhe os olhos em cheio.
- Era - respondeu ingenuamente a donzela.
Lívia não disse palavra. Se das comoções da sua alma algum vestígio lhe subiu ao rosto, disfarçou-lho a noite às vistas de Raquel. Ambas ficaram pensativas algum tempo. Uma forte rajada fê-las estremecer. Era sinal de chuva próxima; nuvens negras começavam a povoar o céu. As duas recolheram-se a casa.
- Vales mais do que eu - dizia a viúva entrando com Raquel na sala -. Eu sou apenas egoísta; egoísta e nada mais. Guarda essas flores evangélicas do sacrifício, do perdão e do amor. São raras; e por isso é que és um anjo.
Foi diferente a noite que ambas passaram.
Raquel estava mais tranquila depois da conversa no jardim; mas que destino teria a flor de sua alma, lírio transformado em goivo, vivido de lágrimas, medrado no silêncio? Não lhe apeteciam lutas. Faltavam-lhe as armas de combate - a astúcia ou a energia -; faltava-lhe principalmente o desejo de despertar um coração que sabia não ser seu.
Mas esse coração, possuía-o acaso Lívia? Parecia-lhe que não; o mistério, porém, a reticência, a indecisão das palavras da rival, tudo se lhe afigurava cobrir um drama que ela não compreendia nem conjecturava.
No ânimo de Lívia outras foram as preocupações. Para ela, a situação era mais clara. Sentia desvanecer-se o amor de Félix, e via surgir uma rival perigosa. Tinha medo da ignorância de Raquel; receava que a inocência dessa alma ainda em flor pudesse dominar o espírito rebelde de Félix; e tal seria a catástrofe das suas esperanças.
E quando todas essas sombras lhe povoavam o espírito, e o coração lhe pulsava com mais força, perguntava-lhe a consciência se lhe era lícito opor algum obstáculo à felicidade da donzela, dado que esta vencesse o coração do seu noivo.
Lívia não dormiu a noite toda. No dia seguinte, apenas a claridade da manhã lhe entrou no quarto, a viúva levantou-se, vestiu à pressa um roupão, e foi ao quarto de Raquel.
A filha do coronel dormia profundamente. Repousava de suas longas reflexões. Lívia abriu o cortinado muito ao de leve, contemplou-lhe o rosto sereno e risonho, os olhos cerrados, e os lábios semiabertos como se em sonhos murmurasse palavras de amor. Os cabelos esparsos lhe serviam de resplendor à sua cabeça angélica.
"Não!", pensava Lívia. "O amor não dorme assim tranquilo em dias de infortúnio e desespero. Criança inconsciente que te supões alar às regiões do sol, que sabes tu dos precipícios da viagem, que conheces tu das voragens do coração?"
- Ah! Estava aqui! - exclamou Raquel acordando -; ainda bem!
- Por quê?
- Sonhei que morria, e que era recebida no céu. Fora bom morrer assim; mas eu sempre tinha pena de deixar a terra. Acordou hoje muito cedo.
- Queria dar um passeio - disse Lívia indo abrir a janela -, mas a manhã já está quente.
Raquel olhou para ela; viu-lhe os olhos pisados e o rosto desfeito. Compreendeu que não havia dormido, e que chorara.
"Ama-o então muito?", perguntou ela a si mesma.
XVII
SACRIFÍCIO
A situação das duas moças demandava um termo. Raquel foi a primeira que resolveu deixar completamente o campo; tinha no seu restabelecimento uma excelente razão para regressar a casa.
Lívia compreendeu a intenção da amiga quando esta lhe comunicou a sua resolução. Era tão simples e tocante o sacrifício, que a viúva não resistiu a um impulso generoso. Respondeu-lhe com um beijo. O beijo era de admiração; Raquel acreditou fosse de agradecimento, e sorriu com tristeza.
Ficou assentado que Raquel iria no domingo próximo, e nesse sentido foi avisado o coronel.
Estavam ainda no dia seguinte ao do episódio do menino. Nenhuma das suas circunstâncias esquecera ao médico. A esquivança de Raquel continuava a preocupar-lhe o espírito, não menos que a infundada suspeita que nutria a respeito da viúva. Era meado o mês de dezembro. A data do casamento estava próxima. Tudo exigia um desenlace a tempo.
Não tardou que o médico descobrisse os sentimentos que a filha do coronel nutria a seu respeito. Surpreendeu-a perto de uma janela interior, a beijar uma página de um álbum de retratos. Aproximou-se cauteloso, lançou os olhos à página e viu nela o seu próprio retrato.
A descoberta fê-lo sorrir. Seria aquilo a razão da mudança que notara nela? Nesse caso sabia já da afeição que o ligava à viúva, talvez do projetado casamento. Era possível também que a volta dela à casa de seus pais não tivesse outro motivo.
Por mais isento que seja o espírito de um homem, é raro que o não lisonjeie uma afeição assim, medrosa e silenciosa, nascida e vivida na soledade da alma. Félix sentiu primeiro essa impressão de egoísmo. Veio depois outro sentimento melhor - o de uma respeitosa admiração. Seu pensamento entrou a conjecturar a data daquele singular amor; à proporção que se internava nos dias do passado, ia combinando uma série de episódios esparsos, aparentemente vagos, agora significativos e eloquentes. Não era recente a afeição dela; era talvez anterior à sua enfermidade.
Chegara o sábado, véspera da partida de Raquel. Era de noite. Félix estava em casa da viúva, e ambos, e Raquel, e até Viana, todos pareciam preocupados e tristes. O médico olhava para a filha do coronel, sem reparar que os olhos de Lívia seguiam os seus e como que buscavam ler por eles os sentimentos do coração.
Raquel esquivava-se às atenções do médico. Em certa ocasião, porém - achando-se Félix mais afastado -, aproximou-se dele com um livro.
- Já leu este romance? - perguntou ela.
- Deixe ver - disse Félix, convidando-a com um gesto a sentar-se.
Raquel não se sentou; estendeu-lhe o livro, e olhou com insistência para o médico.
Félix pegou no livro e consultou a primeira página; ia voltar distraidamente a segunda, quando lhe caiu nos joelhos um papelinho dobrado. Raquel voltou assustada a cabeça para lado de Lívia, que de pé, junto do piano, tirava notas soltas do teclado, sem olhar para o grupo. Raquel fez ao médico um sinal de silêncio e afastou-se dele. Félix guardou o papel no bolso.
"Quase uma criança!", ia ele pensando quando se retirava para casa depois do chá.
Quando ali chegou não se deu ao trabalho de tirar o chapéu. Abriu a carta logo na sala. Dizia a carta:
"Pela memória de sua mãe, não seja cruel! Lívia ama-o muito. Não a faça morrer, que seria um pecado!"
Félix esfregou os olhos e releu o bilhete.
Não havia negá-lo; a letra era de Raquel, e o conteúdo era uma súplica a favor da rival. Não sorria o médico; estava atônito. A verdade, tão inverossímil desta vez, metia-se-lhe pelos olhos, singela, eloquente, espontânea. Espontânea seria? Félix fez essa pergunta a si mesmo, e afirmativamente lhe respondeu; não atribuía à viúva tamanha influência, nem à donzela tamanha submissão, que uma inspirasse e a outra escrevesse aquela carta. A cousa pareceu-lhe o que realmente era: um sacrifício de Raquel.
Félix não era homem de grandes expansões; mas, se Raquel estivesse diante dele naquela ocasião, era capaz de cair-lhe aos pés. Abafar uma afeição silenciosa, a primeira talvez, para pedir a felicidade de outra mulher, era abnegação rara, que o surpreendia.
A ação de Raquel fez-lhe esquecer por algum tempo a viúva, objeto da carta que acabava de ler. Raquel não afirmaria tão claramente os sentimentos da amiga, se não tivesse plena certeza deles. Como conciliaria, entretanto, a afirmação de hoje com a suspeita de ontem? A mesma Raquel lhe insinuara diversa inclinação da viúva. Naturalmente reconhecera o contrário. A ideia da reabilitação de Lívia para logo dominou o espírito de Félix. Seu amor existia no mesmo estado de força e viço; fácil de desmaiar, não era menos fácil de se restabelecer. No dia seguinte parecia desfeita a nuvem que por alguns dias o abafara.
Foi à casa da viúva; era uma hora da tarde. Tinha curiosidade de encarar a filha do coronel. Achou-a tão alegre e travessa como era dantes. Era assim aparentemente; os olhos estranhos não viam a mágoa interior e encoberta que lhe roía o coração. Seu infortúnio tinha pudor.
Ao médico era impossível encobrir esse estado. A tocante generosidade da moça fez-lhe bem ao coração. Teve ele a delicadeza de não tratar a viúva por modo que magoasse a donzela; mas, tão outro se mostrava do que fora até então, que a viúva não pôde resistir-lhe, e aquele dia foi muito menos triste que os outros.
As travessuras de Luís faziam coro com as de Raquel. A porta da sala estava aberta. Luís desceu os degraus que comunicavam da sala com o jardim, na ocasião em que Lívia fechava uma pulseira de Raquel. Quando a viúva deu por falta do filho, correu à porta. O menino corria na direção da porta da rua. A mãe desceu atrás dele.
Raquel ia descer também; Félix pegou-lhe na mão. A moça estremeceu toda; afoguearam-se-lhe as faces, e ela balbuciou:
- Leu a minha carta?
- Li - respondeu Félix cravando nela um olhar que era a um tempo de simpatia e de pena -; li, e não sei se deva crer o que lá me diz.
- É a verdade.
- Mas então supõe?...
- Que ela o ama; afirmo-lho.
- E que eu a amo também? - perguntou com hesitação.
- Isso... creio - assentiu Raquel, abaixando os olhos.
Félix calou-se. Decorreram dous ou três minutos de silêncio. Raquel continha com dificuldade os movimentos do coração. Preferia estar a cem léguas dali, mas lembrava-se da outra e isso lhe dava ânimo.
O médico foi o primeiro que falou:
- Como sabe que ela me ama?
- Sei - respondeu Raquel sorrindo com afetação -, e é quanto basta. Demais, nenhuma moça escreveria semelhante carta a um homem se não tivesse certeza do que afirmava. Só lhe peço uma cousa: destrua essa carta. Nada vale, mas eu não quisera que a conservasse.
Lívia aproximava-se; sentiram passos na escada de pedra. Raquel correu à porta, enquanto Félix tirava a carteira do bolso, e procurava o bilhete de Raquel. Foi nessa ocasião que o coronel e a esposa chegaram. As duas moças desceram a recebê-los.
Félix desceu também, e caminhou a alguns passos de distância, com o coração dividido entre o amor de Lívia e a admiração de Raquel.
Os pais da moça jantaram nas Laranjeiras. Lívia acompanhou depois toda a família à cidade. Na ocasião de se despedir do médico, a filha do coronel sentiu que as forças lhe iam faltando. Reagiu, porém, sobre si mesma e, sem olhar para ele, estendeu-lhe a mão, que o médico respeitosamente apertou. Ao voltar-lhe as costas, um suspiro lhe saiu do peito; partira-se o último vínculo da esperança.
XVIII
RENOVAÇÃO
Lívia não ignorou muito tempo a existência da carta de Raquel. Félix mostrou-lha no dia seguinte, desejoso de saber como havia nascido no espírito da moça a convicção tão generosamente afirmada.
- Contei-lhe tudo - disse a viúva -, quando supunha que tudo estivesse morto no teu coração. Ela condoeu-se de mim, e vejo agora que não era sentimento estéril o que me revelara. Pobre Raquel!
- Esta carta foi excelente consolação, Lívia, porque eu sentia uma dúvida cruel a teu respeito... Mas a que propósito lhe falaste?
Lívia hesitou alguns instantes. Ou melhor, reprimiu o seu primeiro impulso, que foi referir ao médico o amor e a confissão de Raquel. Estaria no seu caráter se o fizesse; mas um vislumbre de reflexão atalhou essa confidência prestes a subir-lhe aos lábios. Recearia que a notícia de um amor tão generoso o desviasse dela? Pode ser. A explicação que lhe deu foi breve.
- Já lhe disse - respondeu a moça -; confiei-lhe a causa das minhas mágoas, num dia em que mostrava condoer-se de mim. Se errei a culpa é sua.
Félix não insistiu. Pela sua parte, deixou também de referir a razão da recente frieza nas suas relações com ela. A viúva, que o sabia, achou mais acertado não lhe falar nisso.
Tantas vezes apagada no céu, reaparecia enfim a estrela da felicidade, e para sempre? Era caso de dúvida, à vista do passado; mas a credulidade da viúva estava acima da sua experiência. A ternura de Félix nunca fora mais espontânea e viva do que então. O coração como que se lhe renovara. O sacrifício de Raquel não era estranho a essa reação, que fazia reviver todas as esperanças da amada.
A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viúva. Ela possuía a memória da felicidade, não a das tristezas. O que eram reminiscências de infortúnio apagaram-se com o tempo; a serenidade dos primeiros dias foi só o que lhe ficou.
Houve em certa ocasião uma leve nuvem passageira; foi a presença de Meneses, que ainda frequentava a casa da viúva. A maneira por que Félix recebera o amigo fez compreender à moça que no coração dele havia ainda um travo de amargura. Não lhe foi difícil extingui-lo de todo. Referiu-lhe ingenuamente tudo o que se passara entre ela e Meneses, a branda austeridade com que respondera às suas declarações amorosas, enfim o procedimento honesto do rapaz.
Félix abanou a cabeça.
- Censuras-me? - inquiriu a moça.
- Não - afirmou o médico -. Lastimo-te.
- A intenção era boa.
- Seria; mas a vida não é fábrica de sentimentos; não se vive como se romanceia. Ímpetos de generosidade são muito bons, quando se não corre perigo nenhum. Quem te afiançava a honestidade desse moço?
- Oh! Adivinha-se!... Queres uma prova? Ele não voltará cá.
- Por quê?
- Creio que percebeu tudo.
O médico ficou algum tempo pensativo. Duas vezes tentou falar e conteve-se. Enfim disse:
- Não é preciso perceber aquilo de que há de ter certeza amanhã. Casamo-nos na segunda semana de janeiro. A notícia será pública desde já.
Félix esperava um movimento expansivo da viúva, ao ouvir esta declaração. Lívia não se alterou; apenas empalideceu.
- Tens razão - disse Félix depois de olhar para ela algum tempo -; eu não tenho direito a mais. Tantas vezes te iludi, que é legítimo o teu receio.
No dia seguinte fez o médico oficialmente o seu pedido na presença de Viana, que abraçou com entusiasmo o futuro cunhado.
- Isto devia acabar assim mesmo - disse ele -; há muito que eu previa e desejava o casamento. Nasceram um para o outro; estão na força da idade; não podia haver melhor união. Pela minha parte desistirei até, se for preciso, da viagem que o senhor me prometeu. Lembra-se? Não faz mal. O que eu quero é vê-los felizes. Eu logo vi que tramavam alguma cousa, mas gabo-lhes a habilidade. Dê-me outro abraço, doutor.
Félix prestou-se às expansões do parasita. Lívia contemplava o noivo com adoração. Para ambos eles o mundo inteiro havia desaparecido. Inteiro não; Viana fez casualmente alusão a Raquel, e essa intempestiva recordação entristeceu a moça. Ela via que a sua felicidade era causa da desventura da amiga, e agora que a tinha quase realizada, sentia morder-lhe um piedoso remorso.
Adiantaram-se os preparativos do casamento. Lívia pediu ao médico a supressão de todo aparato, para não ferir o coração de Raquel, pensava ela. A publicidade seria apenas a necessária. Não contava com o irmão, que se encarregou de dar ao consórcio proporções de acontecimento.
A notícia foi referida por ele na rua do Ouvidor, esquina da rua Direita. Daí a dez minutos chegara à rua da Quitanda. Tão depressa correu que um quarto de hora depois era assunto de conversa na esquina da rua dos Ourives. Uma hora bastou para percorrer toda a extensão da nossa principal via pública. Dali espalhou-se em toda a cidade.
Foi geral o espanto. Ninguém acreditava que Félix se determinasse ao casamento. Falava-se, é verdade, no namoro; mas, além de ser boato sem importância nem generalidade, alguns não atribuíam ao médico mais do que a intenção de um passatempo, ao passo que outros davam às relações entre ele e a viúva um caráter absolutamente íntimo, sem nenhuma aspiração de legalidade.
A convicção entrou enfim no espírito público. Moreirinha atribuía o caso a um desconcerto cerebral do médico. O Dr. Luís Batista não deu opinião; parecia-lhe indiferente o casamento da viúva.
Raquel recebeu a notícia sem admiração, mas com mágoa. Esperanças, não as tinha já; o mal que nos não espanta não nos dói contudo menos por isso. Quem lhe deu a notícia foi Meneses, que a recebeu com filosófica resignação. O amor deste tinha-se convertido numa espécie de adoração religiosa. Achava na mulher amada todas as qualidades que podiam seduzir um homem como ele. Havia, além disso, aquele vínculo simpático de duas criaturas que viviam mais da imaginação que da vida prática. A recusa de Lívia não rompera, transformara as cadeias que o prendiam a ela.
Não acontecia o mesmo a Raquel, e esta circunstância não escapou ao rapaz, que habilmente a interrogou, e adivinhou tudo. Meneses sacudiu lentamente a cabeça, mas não lhe disse palavra. Apenas pensou consigo que, se o acaso ou a Providência houvesse disposto as cousas de outro modo, ambos eles podiam ser felizes.
Meneses repeliu a ideia de fazer confidências à filha do coronel; tanto, porém, lhe falou da viúva, que a outra alguma cousa desconfiou. Sabedores, enfim, do que padeciam interiormente, a comum desventura os vinculou de algum modo. Como as relações eram antes corteses que familiares, nenhum deles falou com a efusão que lhes pedia o sentimento; adivinharam-se, o que era muito, e apiedavam-se um do outro, o que era quase tudo.