Relíquias de Casa Velha
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Relíquias de casa velha (1906) é a última coletânea de textos publicada por Machado de Assis, dois anos apenas antes de morrer. Reunindo escritos de natureza muito diversa - a começar pelo belíssimo soneto "A Carolina", testemunho comoventemente autobiográfico da própria viuvez -, oferece ao leitor um punhado de contos, nove ao todo, além de algumas "Páginas críticas e comemorativas" e duas comédias "Não consultes médico" (1896) e "Lição de botânica" (1906). Fiel ao propósito de publicação da ficção de Machado como hipertexto, esta edição eletrônica apresenta as narrativas estritamente ficcionais, ou seja, os contos da coletânea.
Dos nove contos, apenas quatro foram veiculados na imprensa: "Evolução" (Gazeta de Notícias, 24 de junho de 1884), "Maria Cora" (A Estação, entre janeiro e março de 1898, com o título de "O relógio parado"), "Pílades e Orestes" e "Anedota do cabriolé" (ambos no Almanaque Brasileiro Garnier, o primeiro em 1903, o segundo, em 1905). Os demais cinco contos, segundo José Galante de Sousa afirma na sua Bibliografia de Machado de Assis (ainda hoje a mais autorizada fonte no que diz respeito às datas e locais de publicação dos textos de Machado de Assis), são todos inéditos: "Pai contra mãe", "Marcha Fúnebre", "Um capitão de voluntários", "Suje-se gordo!" e "Umas férias".
Como nos demais livros de contos, o título no plural aponta para a diversidade temática das histórias, para o caráter, por assim dizer, avulso das peças, diversidade para a qual o próprio autor chama atenção na "Advertência".
O conto de abertura de Relíquias de casa velha, "Pai contra mãe", que muitos historiadores consideram, apesar de seu estatuto de ficção, como fiel reconstituição de época - a época pré-Abolição, em que se caçavam escravos fujões pelas ruas do Rio de Janeiro, com todo o horror que isso implica - , dialoga em linha direta com a história que abre Páginas recolhidas, "O caso da vara". Ambos são peças de denúncia do regime escravagista, coisa, aliás, rara na ficção de Machado de Assis, vindo à tona só incidentalmente nos romances, como, por exemplo, o caso do moleque Prudêncio de Memórias póstumas de Brás Cubas que, uma vez liberto por Brás, compra para si um escravo que submete aos mesmos maus tratos de que fora vítima quando seu ex-dono o maltratava, em criança. A história acentua a oposição cruel entre as situações do perseguidor, branco, chamado Cândido Neves (cuja mulher, também branca, como se não bastasse o nome do marido, chama-se Clara) e da escrava fugida, a mulata Arminda. Cândido a persegue e captura para ganhar a recompensa do dono da escrava e, com aqueles cem mil-réis, comprar alimento para o filho recém-nascido, o que, como constatamos ao ler o conto, tem um conteúdo irônico avassalador. O silêncio que se instala depois da fala final de Candinho permanece na memória "auditiva" do leitor, que custa a recompor-se para prosseguir na leitura do livro.
A ironia volta a aflorar em outras histórias de Relíquias de casa velha. Pensamos em "Maria Cora" e "Um capitão de voluntários", atravessados por uma sensualidade explicitada de maneira pouco habitual no escritor "pudico" que foi Machado de Assis. Em "Maria Cora", tanto a personagem-título, quanto personagens secundárias (Dolores e Prazeres), ambas amantes do marido de Maria Cora, são mulheres movidas a paixão. Baste remeter o leitor para duas cenas do conto: a reação de Prazeres quando o narrador mata João da Fonseca e a de Maria Cora, quando, na última página do conto, o narrador lhe apresenta, como prova de que havia mesmo matado o marido que a traíra tantas vezes, os cabelos que cortara ao cadáver. Há um fosso intransponível entre o desejo do narrador por Maria Cora (o qual fora capaz de matar por ela) e a paixão dela pelo marido. O narrador escamoteia a própria perplexidade diante da reação final da moça, não comenta nada: os fatos falam por si.
Em "Um capitão de voluntários", a personagem feminina, Maria, "que era um modelo de graças finas, toda vida, toda movimento", é também uma mulher sensualíssima e, como a Genoveva de "Noite de almirante" (Histórias sem data, de 1884), é completamente amoral. Vivendo uma relação estável com X..., um dia sente-se atraída pelo jovem amigo do amante (o narrador da história), vive com ele uma paixão ardente e fugaz, enfastia-se, repudia-o. Veja o leitor a ironia final, que a pena destra de Machado de Assis resume num só adjetivo, "leal", inserido numa dedicatória de X... ao narrador do conto.
Em "Marcha fúnebre", o protagonista, Cordovil, pondo-se a conjeturar sobre a própria morte, diz desejá-la inesperada e rápida, mas, quando ela se anuncia, esquiva-se dela e, corroídas pelo medo de morrer, esboroa-se toda a sua "filosofia" sobre ela.
"Suje-se gordo!" problematiza não a amoralidade, que se pode dizer inocente, mas a imoralidade, que é sempre viciosa. O enredo apresenta um indivíduo que defende e põe em prática a ideia de que pequenos crimes merecem ser punidos porque lhes falta audácia e grandeza. Sua filosofia se resume na frase-título: se se trata de cometer um delito (no caso em questão, um desfalque), que se faça isto em grande estilo. A imoralidade triunfa, e o efeito, por assim dizer "cômico" do conto é corroído, deixando outra vez no leitor um travo amargo de desconforto ético, embora, como quase sempre, Machado dê um jeito de terminar o conto de maneira leve, com um gracejo.
"Umas férias" visita o universo infantil, como acontecera em "Conto de escola", de Várias histórias (1896). Note-se, no entanto, que, em ambos, as personagens são crianças, mas os temas abordados são de adulto. "Conto de escola" fala de corrupção e de delação, "Umas férias" fala da morte. O que é estranho e inquietante é essas questões serem tratadas a partir de um narrador menino. É como se, da incompatibilidade entre o assunto narrado e quem o narra, surgisse a possibilidade de melhor abordá-lo, a partir da inocência, que leva o menino narrador de "Umas férias" a experimentar "uma grande alegria sem férias", quando afinal lhe permitem voltar à escola.
Sob o título "Evolução", o narrador conta a história de como evolui, na mente de um conhecido seu, a gradual de apropriação de uma ideia que era, na verdade, dele, narrador. Imediatamente o leitor (tanto o de A Estação, em 1884, quanto o de Relíquias de casa velha, em 1906) associa o título com o evolucionismo de Darwin e Spencer, e o conto evolui para um final desconcertante, em que fica mais do que patente o ceticismo machadiano em relação a qualquer teoria, a qualquer explicação que desse sentido à existência humana. As cinco palavras da última frase são demolidoras, ainda que ditas em tom ligeiro, quase de brincadeira.
"Pílades e Orestes" e "Anedota do cabriolé" encerram a coleção, e tocam ambos em tabus sociais: a homossexualidade e o incesto. No primeiro, dois amigos, Quintanilha e Gonçalves, são inseparáveis, e embora não haja no mito, nem tampouco na tragédia grega de Electra, de que Machado toma emprestados os nomes que dão título ao conto, nenhuma implicação de homossexualismo entre as duas personagens, e embora no conto Quintanilha (Pílades) se sacrifique pelo amigo, a quem cede a noiva (que era sua prima) e a fortuna (quando no mito é Pílades quem se casa com a irmã de Orestes), a história permite que se infira que, há pelo menos de Quintanilha em relação a Gonçalves, uma inclinação que vai além da amizade. E, como jamais as coisas são simples ou unívocas nas narrativas machadianas, o conto deixa também no leitor a suspeita de que Gonçalves (Orestes) manipula o amigo o tempo todo, e como que alimenta a sua dedicação desmesurada, sabendo dela tirar todo proveito.
Quanto a "Anedota do cabriolé", trata-se da história de um casal que vem fugido para o Rio de Janeiro, para aqui morrer, como se esse destino estivesse predeterminado, espécie de castigo divino por serem irmãos e, sabendo-se irmãos, continuarem a amar-se como homem e mulher. Na verdade, "Anedota do cabriolé" é uma história sobre a bisbilhotice, aqui encarnada no sacristão João das Mercês.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis, bem como com a publicada pela editora Garnier, com texto estabelecido por Adriano da Gama Kury, em 1990. Em caso de discrepância, foram consultadas a primeira e a segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está nas primeiras edições: "dous" (e não "dois"), "cousa" (e não "coisa"), "açoute" (e não "açoite"). Usaram-se iniciais maiúsculas para instituições, fatos e períodos históricos ("Ministério do Império", "Proclamação da República", "Guerra do Paraguai".
Quanto aos numerais, manteve-se a forma por extenso, tal como figuram nas primeiras edições. Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Assim, preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "cognac" (e não "conhaque"), "cabriolet" (e não "cabriolé").
Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: o adjetivo "ladino", referindo-se ao escravo que domina bem a língua portuguesa; o substantivo "trocados" no sentido, hoje pouco usual, de "trocadilhos"; o substantivo "fiel", empregado com o sentido, hoje também pouco usual, de "empregado subalterno", sobretudo de cartório. Usos hoje considerados "esquisitos" foram, obviamente, mantidos: "não há negar" (em vez de "não há como negar"); "[O] estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade" (e não "fê-lo ver"); "talvez" seguido de verbo no indicativo:"uma patrulha que estava perto talvez desconfiou dos meus gestos". Respeitou-se a oscilação entre "até ao" / "até à" e "até o" / "até a", bem como a forma "Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer", embora o padrão culto prefira "de ele nascer".
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos". Observe-se que o autor, às vezes, omite a vírgula em casos absolutamente idênticos: "[...] tinha a voz presa e na rua senti uma vertigem igual à que me deu a primeira paixão da minha vida". Também se respeitou o não uso da vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era diferente do da oração anterior: "[...] fui à mesa do juiz, dei as respostas do conselho e o réu saiu condenado", valendo assinalar que às vezes o autor a emprega: "Não falou à mesa, e a dor podia explicar o silêncio". Inseriu-se vírgula para assinalar elipse do verbo, como em "Nem a pasta lhe deu glória, nem a demissão, desgosto", procedimento às vezes seguido pelo autor, como em "Chamo-me Inácio; ele, Benedito".
Respeitou-se o não uso de vírgula antes de oração consecutiva, a não ser em "tal ódio foi, que ele esteve prestes a abrir mão dela", em que se inseriu a vírgula, pela clareza. Assim também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas).
Preservaram-se algumas idiossincrasias de pontuação, como as seguintes: "Na ocasião da saída, ouvi os gritos de minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas alças do caixão, creio eu: - "vire de lado, - mais à esquerda, - assim, segure bem..."; ou "Não é muito, mas é alguma cousa, e está com a filosofia de Julieta: "Que valem nomes? perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame, terá sempre o mesmo cheiro."; o uso de vírgula depois da adversativa "mas", quando identificamos uma marcação de pausa, próxima da oralidade: "Mas, por que não tem aparecido?", ou "Mas, não; verdadeiramente ficou pálido".
Nos casos de fala de personagem em discurso indireto, no meio de um parágrafo, usaram-se aspas: "[...] Que ideia faria de mim?" perguntou-me com gesto de pudor que a transfigurou [...]". Abrimos novo parágrafo quando nas edições anteriores havia travessão (no meio de um parágrafo) introduzindo fala em discurso direto:
João da Fonseca achava-se então em um renascimento do delírio conjugal; respondeu à mulher jurando tudo e mais alguma cousa.
- Aos quarenta anos - concluiu ele -, não se fazem duas aventuras daquelas, e a minha foi de doer. Você verá, agora é para sempre.
Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi usado o travessão, mesmo quando nas edições anteriores este está no meio do mesmo parágrafo. A isso autoriza o procedimento do autor em demais passagens de diferentes contos, o que nos leva a crer que a disposição do diálogo dentro do parágrafo tenha sido antes erro tipográfico que decisão autoral.
Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Advertência
Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia delas que mereçam sair cá fora.
Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna daquela dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.