Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO LXXXIX

Como a ideia tornasse ainda, Rubião atirou-se depressa ao tilbury, entrou e sentou-se, falando ao cocheiro, para fugir a si mesmo.

- Dei uma caminhada grande; mas, sim, senhor, isto aqui é bonito, é curioso; aquelas praias, aquelas ruas, é diferente dos outros bairros. Gosto disto. Hei de vir mais vezes.

O cocheiro sorriu para si de um modo tão particular, que o nosso Rubião desconfiou. Não atinava com o motivo do riso; talvez lhe houvesse escapado alguma palavra que no Rio de Janeiro tivesse mau sentido, mas repetiu-as e não descobriu nada; eram todas usadas e comuns. Entretanto, o cocheiro sorria ainda, com o mesmo ar do princípio, meio subserviente, meio velhaco. Rubião esteve a pique de o interrogar, mas recuou a tempo. Foi o outro que reatou a conversação.

- Vossa Senhoria está então muito admirado do bairro? - disse ele -. Há de deixar que eu não acredite, sem se zangar, que não é para ofender a Vossa Senhoria, nem eu sou pessoa que agrave um freguês sério; mas não creio que esteja admirado do bairro.

- Por quê? - aventurou Rubião.

O cocheiro meneou a cabeça para um e outro lado, e insistiu em não crer - não porque o bairro não fosse digno de apreço, mas porque naturalmente já o conhecia muito. Rubião ratificou a primeira afirmação; tinha ido ali muitos anos antes, quando esteve da outra vez no Rio de Janeiro, mas não se lembrava de nada. E o cocheiro ria; e, à medida que o freguês ia demonstrando, ele ia ficando mais familiar, fazia negativas com o nariz, com os beiços, com a mão.

- Já sei disso - concluiu ele -. Nem eu sou homem que não veja as cousas. Vossa Senhoria pensa que não vi a maneira por que olhou para aquela moça que passou ainda agora? Basta só isso para mostrar que Vossa Senhoria tem faro e gosta...

Rubião, lisonjeado, sorriu um pouco; mas emendou-se logo:

- Que moça?

- Que lhe dizia eu? - redarguiu o homem -. Vossa Senhoria é fino, e faz muito bem; mas eu sou pessoa de segredo, e cá o carro tem servido para estas idas e vindas. Não há muitos dias trouxe um belo moço, muito bem vestido, pessoa fina - já se sabe, negócio de rabo de saia.

- Mas eu... - interrompeu Rubião.

Mal podia conter-se; a suposição agradava-lhe; o cocheiro cuidou que ele dissimulava a culpa.

- Olhe, eu bem digo - continuou ele -; tal qual o moço da rua dos Inválidos. Vossa Senhoria pode ficar descansado; não digo nada; cá estou para outras. Então, quer que eu acredite que é por gosto que uma pessoa, que tem carro às ordens, vem andando a pé desde a praia Formosa até aqui? Vossa Senhoria veio ao lugar marcado, a pessoa não veio...

- Que pessoa? Fui ver um doente, um amigo que está para morrer.

- Tal qual o moço da rua dos Inválidos - repetiu o homem. Esse veio ver uma costureira da mulher, como se fosse casado...

- Da rua dos Inválidos? - perguntou Rubião, que só agora atentava no nome da rua.

- Não digo mais nada - acudiu o cocheiro -. Era da rua dos Inválidos, bonito, um moço de bigodes e olhos grandes, muito grandes. Oh! Eu também, se fosse mulher, era capaz de apaixonar-me por ele... Ela não sei donde era, nem diria ainda que soubesse; sei só que era um peixão.

E vendo que o freguês o escutava com os olhos arregalados:

- Oh! Vossa Senhoria não imagina! Era de boa altura, bonito corpo, a cara meia coberta por um véu, cousa papa-fina. A gente, por ser pobre, não deixa de apreciar o que é bom.

- Mas... como foi? - murmurou Rubião.

- Ora, como foi! Ele chegou como Vossa Senhoria, no meu tilbury, apeou-se e entrou numa casa de rótula; disse que ia ver a costureira da mulher. Como eu não lhe perguntei nada, e ele tinha vindo calado toda a viagem, muito cheio de si, compreendi logo a finura. Agora, podia ser verdade, porque é mesmo uma costureira que mora na casa da rua da Harmonia...

- Da Harmonia? - repetiu Rubião.

- Mau! Vossa Senhoria está arrancando o meu segredo; mudemos de assunto; não digo mais nada.

Rubião olhava atônito para o homem, que de fato se calou por dous ou três minutos, mas logo depois continuou:

- Também não há muita cousa mais. O moço entrou; eu fiquei esperando, meia hora depois vi um vulto de mulher, ao longe, e desconfiei logo que ia para lá. Meu dito, meu feito; ela veio, veio, devagar, olhando disfarçadamente para todos os lados; ao passar pela casa, não lhe digo nada, nem precisou bater; foi como nas mágicas, a rótula abriu-se por si, e ela enfiou por ali dentro. Se eu já conheço isto. Em que é que Vossa Senhoria quer que a gente ganhe algum cobrinho mais? O preço da tabela mal dá para comer; é preciso fazer estes ganchos.

CAPÍTULO XC

"Não, não podia ser ela", refletiu Rubião, em casa, vestindo-se de preto.

Desde que chegara, não pensou em outra cousa que não fosse o caso contado pelo cocheiro do tilbury. Tentou esquecê-lo, arranjando papéis, ou lendo, ou dando estalinhos com os dedos para ver pular o Quincas Borba; mas a visão perseguia-o. Dizia-lhe a razão que há muitas senhoras de boa figura, e nada provava que a da rua da Harmonia fosse ela; mas o bom efeito era curto. Daí a pouco, desenhava-se ao longe, cabisbaixa, vagarosa, uma pessoa, que era nem mais nem menos a própria Sofia, e andava, e entrava de repente pela porta de uma casa, que se fechava logo... A visão foi tal, em certa ocasião, que o nosso amigo ficou a olhar para a parede, como se ali estivesse a rótula da rua da Harmonia. De imaginação, fez uma série de ações: - bateu, entrou, lançou a mão ao gasnate da costureira, e pediu-lhe a verdade ou a vida. A pobre mulher, ameaçada da morte, confessou tudo; levou-o a ver a dama, que era outra, não era Sofia. Quando Rubião voltou a si, sentiu-se vexado.

- Não, não podia ser ela.

Vestiu o colete, e foi abotoá-lo diante de uma das janelas, que dava para os fundos, no momento em que uma caravana de formigas ia passando pelo peitoril. Quantas vira passar outrora! Mas, desta vez, nunca soube como, pegou de uma toalha, deu dous golpes, atropelou as tristes formigas, matando uma porção delas. Talvez alguma lhe pareceu "boa figura e bonita de corpo". Logo depois arrependeu-se do ato; e realmente, que tinham as formigas com as suas suspeitas? Felizmente, começou a cantar uma cigarra, com tal propriedade e significação, que o nosso amigo parou no quarto botão do colete. Sôôôô... fia, fia, fia, fia, fia, fia... Sôôôô... fia, fia, fia, fia, fia...

Oh! Precaução sublime e piedosa da natureza, que põe uma cigarra viva ao pé de vinte formigas mortas, para compensá-las. Essa reflexão é do leitor. Do Rubião não pode ser. Nem era capaz de aproximar as cousas, e concluir delas - nem o faria agora que está a chegar ao último botão do colete, todo ouvidos, todo cigarra... Pobres formigas mortas! Ide agora ao vosso Homero gaulês, que vos pague a fama; a cigarra é que se ri, emendando o texto:

Vous marchiez? J'en suis fort aise.
Eh bien! mourez maintenant.

CAPÍTULO XCI

Soou a campainha de jantar; Rubião compôs o rosto, para que os seus habituados (tinha sempre quatro ou cinco) não percebessem nada. Achou-os na sala de visitas, conversando, à espera; ergueram-se todos, foram apertar-lhe a mão, alvoroçadamente. Rubião teve aqui um impulso inexplicável - dar-lhes a mão a beijar. Reteve-se a tempo, espantado de si próprio.

CAPÍTULO XCII

De noite, correu à praia do Flamengo. Não pôde falar a Maria Benedita, que estava em cima, no quarto, com duas moças da vizinhança, amigas dela. Sofia veio recebê-lo à porta, e levou-o para o gabinete, onde duas costureiras faziam os vestidos de luto. O marido acabava de chegar; ainda não descera.

- Sente-se aqui - disse ela.

Tomou conta dele; estava divina. As palavras saíam-lhe carinhosas e graves, entrecortadas de sorrisos amigos e honestos. Falou-lhe da tia, da prima, do tempo, dos criados, dos espetáculos, da falta d'água, de uma multidão de cousas diversas, vulgares ou não, mas que, passando pela boca da moça, mudavam de natureza e de aspecto. Rubião ouvia fascinado. Ela, para não estar vadia, ia cosendo uns folhos; e, quando a conversação fazia pausa, Rubião era pouco para comer-lhe as mãos ágeis, que pareciam brincar com a agulha.

- Sabe que estou formando uma comissão de senhoras? - perguntou ela.

- Não sabia; para quê?

- Não leu a notícia daquela epidemia numa cidade das Alagoas?

Contou-lhe haver ficado tão penalizada, que resolveu logo organizar uma comissão de senhoras, para pedir esmolas. A morte da tia interrompeu os primeiros passos; mas ia continuar, passada a missa do sétimo dia. E perguntou que lhe parecia.

- Parece-me bem. Não há homens na comissão?

- Há só senhoras. Os homens apenas dão dinheiro - concluiu rindo.

Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era também verdade que a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima. As senhoras escolhidas não eram da roda da nossa dama, e só uma a cumprimentava; mas, por intermédio de certa viúva, que brilhara entre 1840 e 1850, e conservava do seu tempo as saudades e o apuro, conseguira que todas entrassem naquela obra de caridade. Desde alguns dias não pensara em outra cousa. Às vezes, à noite, antes do chá, parecia dormir na cadeira de balanço; não dormia, fechava os olhos para considerar-se a si mesma, no meio das companheiras, pessoas de qualidade. Compreende-se que este fosse o assunto principal da conversação; mas, Sofia tornava de quando em quando ao presente amigo. Por que é que ele fazia fugidas tão longas, oito, dez, quinze dias, e mais? Rubião respondeu que por nada, mas tão comovido, que uma das costureiras bateu no pé da outra. Daí em diante, ainda quando o silêncio era largo, cortado apenas pelo som das agulhas no merinó, das tesouradas, dos rasgados, uma e outra não perdiam de vista a pessoa do nosso amigo, com os olhos fisgados na dona da casa.

Veio uma visita de pêsames - um homem, diretor de banco. Foram chamar logo o Palha, que desceu a recebê-lo. Sofia pediu licença ao Rubião, por alguns segundos; ia ver Maria Benedita.

CAPÍTULO XCIII

Rubião, ficando só com as duas mulheres, entrou a andar de um lado para outro, abafando os passos, para não incomodar ninguém. Da sala vinha uma ou outra palavra do Palha: "Em todo o caso, pode crer..." - "Nem a administração de um banco é cousa de brincadeira..." - "Positivamente..." O diretor falava pouco, seco e baixo.

Uma das costureiras dobrou a costura, arrecadou apressadamente retalhos, tesouras, carretéis de linha, de retrós. Era tarde; ia-se embora.

- Dondon, espera um bocado que eu vou também.

- Não, não posso. O senhor faz favor de dizer que horas são?

- São oito e meia - respondeu Rubião.

- Jesus! É muito tarde.

Rubião, para dizer alguma cousa, perguntou-lhe por que não esperava, como a outra pedia.

- Só espero D. Sofia - acudiu Dondon com respeito -; mas o senhor sabe onde é que esta mora? Mora na rua do Passeio. E eu vou dar com os ossos na rua da Harmonia. Olha que daqui à rua da Harmonia é um estirão.

CAPÍTULO XCIV

Sofia desceu logo, achou Rubião transtornado, fugindo com os olhos. Perguntou-lhe o que era; ele respondeu que nada, dor de cabeça. Dondon saiu, o diretor do banco despedia-se; Palha agradecia-lhe a fineza, estimava-lhe a saúde. Onde estava o chapéu? Achou-o; deu-lhe também o sobretudo; e, parecendo que ele procurava outra cousa, perguntou se era a bengala.

- Não, senhor, é o guarda-chuva. Creio que é este; é este. Adeus

- Ainda uma vez, obrigado, muito obrigado - disse o Palha -. Ponha o seu chapéu, está úmido, não faça cerimônias. Obrigado, muito obrigado - concluiu apertando-lhe a mão nas suas, e curvado em ângulo.

Voltando ao gabinete, deu com o sócio, que teimava em sair. Instou também, disse-lhe que tomasse uma xícara de chá, que lhe passava logo; Rubião recusou tudo.

- A sua mão está fria - observou a moça ao Rubião, apertando-lha -; por que não espera? Água de melissa é muito bom. Vou buscar.

Rubião deteve-a; não era preciso; conhecia aqueles achaques, curavam-se com sono. Palha quis mandar vir um tilbury; mas o outro acudiu dizendo que o ar da noite lhe faria bem, e que no Catete acharia condução.

CAPÍTULO XCV

- Vou agarrá-la antes de chegar ao Catete - disse Rubião subindo pela rua do Príncipe.

Calculou que a costureira teria ido por ali. Ao longe, descobriu alguns vultos de um e outro lado; um deles pareceu-lhe de mulher. Há de ser ela, pensou; e picou o passo. Entende-se naturalmente que levava a cabeça atordoada: rua da Harmonia, costureira, uma dama e todas as rótulas abertas. Não admira que, fora de si, e andando rápido, desse um encontrão em certo homem que ia devagar, cabisbaixo. Nem lhe pediu desculpa; alargou o passo, vendo que a mulher também andava depressa.

CAPÍTULO XCVI

E o homem empurrado apenas sentiu o empurrão. Caminhava absorto, mas contente, espraiando a alma, desabafado de cuidados e fastios. Era o diretor de banco, o que acabava de fazer a visita de pêsames ao Palha. Sentiu o empurrão, e não se zangou; concertou o sobretudo e a alma, e lá foi andando tranquilamente.

Convém dizer, para explicar a indiferença do homem, que ele tivera, no espaço de uma hora, comoções opostas. Fora primeiro à casa de um ministro de Estado, tratar do requerimento de um irmão. O ministro, que acabava de jantar, fumava calado e pacífico. O diretor expôs atrapalhadamente o negócio, tornando atrás, saltando adiante, ligando e desligando as frases. Mal sentado, para não perder a linha do respeito, trazia na boca um sorriso constante e venerador; e curvava-se, pedia desculpas. O ministro fez algumas perguntas; ele, animado, deu respostas longas, extremamente longas, e acabou entregando um memorial. Depois ergueu-se, agradeceu, apertou a mão ao ministro, este acompanhou-o até à varanda. Aí fez o diretor duas cortesias - uma em cheio, antes de descer a escada - outra em vão, já embaixo, no jardim; em vez do ministro, viu só a porta de vidro fosco, e na varanda, pendente do teto, o lampião de gás. Enterrou o chapéu, e saiu. Saiu humilhado, vexado de si mesmo. Não era o negócio que o afligia, mas os cumprimentos que fez, as desculpas que pediu, as atitudes subalternas, um rosário de atos sem proveito. Foi assim que chegou à casa do Palha.

Em dez minutos, tinha a alma espanada e restituída a si mesma, tais foram as mesuras do dono da casa, os apoiados de cabeça, e um raio de sorriso perene, não contando oferecimentos de chá e charutos. O diretor fez-se então severo, superior, frio, poucas palavras; chegou a arregaçar com desdém a venta esquerda, a propósito de uma ideia do Palha, que a recolheu logo, concordando que era absurda. Copiou do ministro o gesto lento. Saindo, não foram dele as cortesias, mas do dono da casa.

Estava outro, quando chegou à rua; daí o andar sossegado e satisfeito, o espraiar da alma devolvida a si própria, e a indiferença com que recebeu o embate do Rubião. Lá se ia a memória dos seus rapapés; agora o que ele rumina saborosamente são os rapapés de Cristiano Palha.

CAPÍTULO XCVII

Quando Rubião chegou à esquina do Catete, a costureira conversava com um homem, que a esperara, e que lhe deu logo depois o braço; viu-os ir ambos, conjugalmente, para o lado da Glória. Casados? Amigos? Perderam-se na primeira dobra da rua, enquanto Rubião ficou parado, recordando as palavras do cocheiro, a rótula, o moço de bigodes, a senhora de bonito corpo, a rua da Harmonia... Rua da Harmonia; ela dissera rua da Harmonia.

Deitou-se tarde. Parte do tempo esteve à janela, matutando, charuto aceso, sem acabar de explicar aquele negócio. Dondon era por força a terceira nos amores; devia ser, tinha olhos sonsos, pensava Rubião.

"Amanhã vou lá, saio mais cedo, vou esperá-la na esquina; dou-lhe cem mil-réis, duzentos, quinhentos; ela há de confessar-me tudo."

Quando cansou, olhou para o céu; lá estava o Cruzeiro... Oh! Se ela houvesse consentido em fitar o Cruzeiro! Outra teria sido a vida de ambos. A constelação pareceu confirmar este modo de sentir, fulgurando extraordinariamente; e Rubião quedou-se a mirá-la, a compor mil cenas lindas e namoradas - a viver do que podia ter sido. Quando a alma se fartou de amores nunca desabrochados, acudiu à mente do nosso amigo que o Cruzeiro não era só uma constelação, era também uma ordem honorífica. Daqui passou a outra série de pensamentos. Achou genial a ideia de fazer do Cruzeiro uma distinção nacional e privilegiada. Já tinha visto a venera ao peito de alguns servidores públicos. Era bela, mas principalmente rara.

- Tanto melhor! - disse ele em voz alta.

Era perto de duas horas quando saiu da janela; fechou-a e foi meter-se na cama, dormiu logo; acordou ao som da voz do criado espanhol, que lhe trazia um bilhete.

CAPÍTULO XCVIII

Rubião sentou-se na cama, estremunhado, não reparou na letra do sobrescrito; abriu o bilhete, e leu:

Ficamos ontem muito inquietos, depois que o senhor saiu. Cristiano não vai lá agora, porque acordou tarde, e tem de ir ao inspetor da Alfândega. Mande-nos dizer se passou melhor. Lembranças de Maria Benedita e da

Sua amiga e obrigada

SOFIA.

- Diga ao portador que espere.

Daí a vinte minutos a resposta chegou à mão do moleque que trouxera o bilhete; foi o próprio Rubião que lha entregou, perguntando-lhe como tinham passado as senhoras. Soube que bem; deu-lhe dez tostões, recomendando-lhe que, quando precisasse algum dinheiro, viesse procurá-lo. O rapaz, espantado, arregalou os olhos e prometeu tudo.

- Adeus! - disse-lhe benevolamente o Rubião.

E ficou parado, enquanto o portador descia os poucos degraus. Indo este a meio do jardim, ouviu bradar:

- Espera!

Voltou para acudir ao chamado; Rubião já tinha descido os degraus; foram um ao outro, e pararam, calados. Correram dous minutos, sem que Rubião abrisse a boca. Afinal, perguntou alguma cousa - se as senhoras tinham passado bem. Era a mesma pergunta de há pouco; o criado confirmou a resposta. Depois, Rubião deixou vagar os olhos pelo jardim. As rosas e as margaridas estavam lindas e frescas, alguns cravos desabrochavam, outras flores e folhagens, begônias e trepadeiras, todo esse pequeno mundo parecia estender os olhos invisíveis ao Rubião, e bradar-lhe:

- Alma sem vigor, acaba de uma vez com o teu desejo; colhe-nos, manda-nos...

- Bem - disse finalmente Rubião -; lembranças às senhoras. Não se esqueça do que lhe disse; precisando de mim, venha cá. Guardou a carta?

- Está aqui, sim, senhor.

- É melhor metê-la no bolso, mas olhe não machuque.

- Não machuco, não, senhor - retorquiu o criado acomodando a carta.

CAPÍTULO XCIX

Saiu o moleque; Rubião ficou passeando no jardim, com as mãos nos bolsos do chambre, e os olhos nas flores. Que tinha que mandasse algumas? Era um presente natural, e até de obrigação para pagar uma cortesia com outra. Fez mal; correu ao portão, mas já o moleque ia longe; Rubião advertiu que o luto excluía as lembranças alegres, e ficou tranquilo.

Senão quando, ao recomeçar o passeio, viu uma carta ao pé de um canteiro. Inclinou-se, apanhou-a, leu o sobrescrito... A letra era dela, tão só dela; comparou-a com a do bilhete que recebera; era a mesma. O nome era o do diabo: Carlos Maria.

"Sim, foi isso", pensou ele ao cabo de alguns minutos, "o portador da minha carta trouxe esta, e deixou-a cair."

E, mirando a carta, de um e outro lado, perguntava-lhe pelo conteúdo. Oh! O conteúdo! Que iria ali escrito dentro daquele papel homicida? Perversidade, luxúria, toda a linguagem do mal e da demência, resumidas em duas ou três linhas. Ergueu-a ante os olhos, para ver se podia ler alguma palavra; o papel era grosso; não se podia ler nada. Ao lembrar-se que o portador, dando por falta da carta, voltaria a procurá-la, meteu-a atrapalhadamente no bolso, e correu para dentro.

Em casa, tirou-a e mirou-a outra vez; as mãos hesitavam, reproduzindo o estado da consciência. Se abrisse a carta, saberia tudo. Lida e queimada, ninguém mais conheceria o texto, ao passo que ele teria acabado por uma vez com essa terrível fascinação que o fazia penar ao pé daquele abismo de opróbrios... Não sou eu que o digo, é ele; ele é que junta esse e outros nomes ruins, ele o que para no meio da sala, com os olhos no tapete, em cuja trama figura um turco indolente, cachimbo na boca, olhando para o Bósforo... Devia ser o Bósforo.

- Infernal carta! - rosnou surdamente, repetindo uma frase ouvida no teatro, semanas antes; frase esquecida, que vinha agora exprimir a analogia moral do espetáculo e do espectador.

Teve ímpetos de abri-la; era só um gesto, um ato; ninguém o via, os quadros da parede estavam quietos, indiferentes, o turco do tapete continuava a fumar e a olhar para o Bósforo. Contudo, sentia escrúpulos; a carta, posto que achada no jardim, não lhe pertencia, mas ao outro. Era como se fosse um embrulho de dinheiro; não devolveria o dinheiro ao dono? Despeitado, meteu-a outra vez no bolso. Entre mandar a carta ao destinatário e entregá-la a Sofia, adotou afinal o segundo alvitre; tinha a vantagem de poder ler a verdade nas feições da própria autora.

"Digo-lhe que achei uma carta, assim e assim", pensou Rubião; "e antes de lhe dar a carta, vejo bem na cara dela, se fica aterrada ou não. Talvez empalideça; então ameaço-a, falo-lhe da rua da Harmonia; juro-lhe que estou disposto a gastar trezentos, oitocentos, mil contos, dous mil, trinta mil contos, se tanto for preciso para estrangular o infame..."

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