Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO LXIX

Os quinze minutos foram contados no relógio do Rubião, que estava ao pé da Maria Benedita, e a quem ela perguntou duas vezes que horas eram, no princípio e no fim da valsa. A própria moça inclinou-se para ver bem o ponteiro dos minutos.

- Está com sono? - perguntou Rubião.

Maria Benedita olhou para ele de soslaio. Viu-lhe o rosto plácido sem intenção nem riso.

- Não - respondeu -; digo-lhe até que estou com medo que prima Sofia se lembre de ir cedo para casa.

- Não vai cedo. Já acabou a desculpa de Santa Teresa, por causa da subida. A casa fica perto daqui.

De fato, as duas moravam agora na praia do Flamengo, e o baile era na rua dos Arcos.

É de saber que tinham decorrido oito meses desde o princípio do capítulo anterior, e muita cousa estava mudada. Rubião é sócio do marido de Sofia, em uma casa de importação, à rua da Alfândega, sob a firma Palha & Cia. Era o negócio que este ia propor-lhe, naquela noite, em que achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo. Apesar de fácil, Rubião recuou algum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contos de réis, não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares eram já grandes; o capital precisava do regímen do bom juro e alguma poupança, a ver se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regímen que lhe indicavam não era claro; Rubião não podia compreender os algarismos do Palha, cálculos de lucros, tabelas de preço, direitos da alfândega, nada; mas, a linguagem falada supria a escrita. Palha dizia cousas extraordinárias, aconselhava ao amigo que aproveitasse a ocasião para pôr o dinheiro a caminho, multiplicá-lo. Se tinha medo, era diferente; ele, Palha, faria o negócio com John Roberts, sócio que foi da casa Wilkinson, fundada em 1844, cujo chefe voltou para a Inglaterra, e era agora membro do Parlamento.

Rubião não cedeu logo; pediu prazo, cinco dias. Consigo era mais livre mas desta vez a liberdade só servia para atordoá-lo. Computou os dinheiros despendidos, avaliou os rombos feitos no cabedal que lhe deixara o filósofo. Quincas Borba, que estava com ele no gabinete, deitado, levantou casualmente a cabeça e fitou-o. Rubião estremeceu; a suposição de que naquele Quincas Borba podia estar a alma do outro nunca se lhe varreu inteiramente do cérebro. Desta vez chegou a ver-lhe um tom de censura nos olhos; riu-se, era tolice; cachorro não podia ser homem. Insensivelmente, porém, abaixou a mão e coçou as orelhas ao animal, para captá-lo.

Atrás dos motivos de recusa vieram outros contrários. E se o negócio rendesse? Se realmente lhe multiplicasse o que tinha? Acrescia que a posição era respeitável, e podia trazer-lhe vantagens na eleição, quando houvesse de propor-se ao parlamento, como o velho chefe da casa Wilkinson. Outra razão mais forte ainda era o receio de magoar o Palha, de parecer que lhe não confiava dinheiros, quando era certo que, dias antes, recebera parte da dívida antiga, e a outra parte restante devia ser-lhe restituída dentro de dous meses.

Nenhum desses motivos era pretexto de outro; vinham de si mesmos. Sofia só apareceu no fim, sem deixar de estar nele, desde o princípio, ideia latente, inconsciente, uma das causas últimas do ato, e a única dissimulada. Rubião abanou a cabeça para expeli-la, e levantou-se. Sofia (dona astuta!) recolheu-se à inconsciência do homem, respeitosa da liberdade moral, e deixou-o resolver por si mesmo que entraria de sócio com o marido, mediante certas cláusulas de segurança. Foi assim que se fez a sociedade comercial; assim é que Rubião legalizou a assiduidade das suas visitas.

- Senhor Rubião - disse Maria Benedita depois de alguns segundos de silêncio -, não lhe parece que minha prima é bem bonita?

- Não desfazendo na senhora, acho.

- Bonita e bem feita.

Rubião aceitou o complemento. Um e outro acompanharam com os olhos o par de valsistas, que passeava ao longo do salão. Sofia estava magnífica. Trajava de azul escuro, mui decotada - pelas razões ditas no capítulo XXXV; os braços nus, cheios, com uns tons de ouro claro, ajustavam-se às espáduas e aos seios, tão acostumados ao gás do salão. Diadema de pérolas feitiças, tão bem acabadas, que iam de par com as duas pérolas naturais, que lhe ornavam as orelhas, e que Rubião lhe dera um dia.

Ao lado dela, Carlos Maria não ficava mal. Era um rapaz galhardo, como sabemos, e trazia os mesmos olhos plácidos do almoço do Rubião. Não tinha as maneiras súditas, nem as curvas reverentes dos outros rapazes; exprimia-se com a graça de um rei benévolo. Entretanto, se, à primeira vista, parecia fazer apenas um obséquio àquela senhora, não é menos certo que ia desvanecido, por trazer ao lado a mais esbelta mulher da noite. Os dous sentimentos não se contradiziam; fundiam-se ambos na adoração que este moço tinha de si mesmo. Assim, o contato de Sofia era para ele como a prosternação de uma devota. Não se admirava de nada. Se um dia acordasse imperador, só se admiraria da demora do ministério em vir cumprimentá-lo.

- Vou descansar um pouco - disse Sofia.

- Está cansada ou... aborrecida? - perguntou-lhe o braceiro.

- Oh! Cansada apenas!

Carlos Maria, arrependido de haver suposto a outra hipótese, deu-se pressa em eliminá-la.

- Sim, creio; por que é que estaria aborrecida? Mas eu afirmo que é capaz de fazer-me o sacrifício de passear ainda algum tempo. Cinco minutos?

- Cinco minutos.

- Nem mais um que seja? Pela minha parte passearia a eternidade.

Sofia abaixou a cabeça.

- Com a senhora, note bem.

Sofia deixou-se ir com os olhos no chão, sem contestar, sem concordar, sem agradecer, ao menos. Podia não ser mais que uma galanteria, e as galanterias é de uso que se agradeçam. Já lhe tinha ouvido outrora palavras análogas, dando-lhe a primazia entre as mulheres deste mundo. Deixou de as ouvir durante seis meses - quatro que ele gastou em Petrópolis, dous em que lhe não apareceu. Ultimamente é que tornou a frequentar a casa, a dizer-lhe finezas daquelas, ora em particular, ora à vista de toda a gente. Deixou-se ir; e ambos foram andando calados, calados, calados - até que ele rompeu o silêncio, notando-lhe que o mar defronte da casa dela batia com muita força, na noite anterior.

- Passou lá? - perguntou Sofia.

- Estive lá; ia pelo Catete, já tarde, e lembrou-me descer à praia do Flamengo. A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora, aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração.

Sofia tentou sorrir; ele continuou:

- O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente - com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por quê, e o meu coração sabe que batia pela senhora.

- Oh! - murmurou Sofia.

Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntas a um tempo. Estou que a própria dama não poderia responder exatamente, tal foi o abalo que lhe trouxe a declaração do moço. Em todo caso, não foi com incredulidade. Não posso dizer mais senão que a exclamação saiu tão frouxa, tão abafada que ele mal pôde ouvi-la. Pela sua parte, Carlos Maria disfarçou bem, ante os olhos de toda a sala; nem antes, nem durante, nem depois das palavras mostrou no rosto a menor comoção; tinha até umas sombras de riso cáustico, um riso de seu uso, quando mofava de alguém; parecia ter dito um epigrama. Contudo, mais de um olho de mulher espreitava a alma de Sofia, estudava o gesto da moça, tal ou qual acanhado, e as pálpebras teimosamente caídas.

- A senhora está perturbada - disse ele -; disfarce com o leque.

Sofia maquinalmente entrou a abanar-se e levantou os olhos. Viu que muitos outros a fitavam, e empalideceu. Os minutos iam correndo, com a mesma brevidade dos anos; os primeiros cinco e os segundos iam longe; estavam no décimo terceiro, atrás deste iam apontando as asas de outro, e mais outro. Sofia disse ao braceiro que queria sentar-se.

- Vou deixá-la e retiro-me.

- Não - disse ela precipitadamente.

Depois, emendou-se:

- O baile está bonito.

- Está, mas eu quero levar comigo a melhor recordação da noite. Qualquer outra palavra que ouça agora será como o coaxar das rãs depois do canto de um lindo pássaro, um dos seus pássaros lá de casa. Onde quer que a deixe?

- Ao lado de minha prima.

CAPÍTULO LXX

Rubião cedeu a cadeira, e acompanhou Carlos Maria, que atravessou a sala, e foi até o gabinete da entrada, onde estavam os sobretudos e uns dez homens conversando. Antes que o rapaz entrasse no gabinete, Rubião pegou-lhe do braço, familiarmente, para lhe perguntar alguma cousa - fosse o que fosse -, mas, em verdade, para retê-lo consigo, e procurar sondá-lo. Começava a crer possível ou real uma ideia que o atormentava desde muitos dias. Agora, a conversação dilatada, os modos dela...

Carlos Maria não tinha notícia da longa paixão do mineiro, guardada, mortificada, não se podendo confessar a ninguém - esperando os benefícios do acaso - contentando-se de pouco, da simples vista da pessoa, dormindo mal as noites, dando dinheiro para as operações mercantis... Que ele não tinha ciúmes do marido. Nunca a intimidade do casal lhe excitara os ódios contra o legítimo senhor. E lá iam meses e meses, sem alteração do sentimento, nem morte da esperança. Mas a possibilidade de um rival de fora veio atordoá-lo; aqui é que o ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue.

- Que é? - disse Carlos Maria voltando-se.

Ao mesmo tempo entrou no gabinete, onde os dez homens tratavam de política, porque este baile - ia-me esquecendo dizê-lo - era dado em casa de Camacho, a propósito dos anos da mulher. Quando os dous ali entraram, a conversação era geral, o assunto, o mesmo, e todos falavam para todos - um turbilhão de ditos, de pareceres, de afirmações diversas... Um, que era doutrinário, conseguiu dominar os outros, que se calaram por instantes, fumando.

- Podem fazer tudo - disse o doutrinário -, mas a punição moral é certa. As dívidas dos partidos pagam-se com juros até o último real e até a última geração. Princípios não morrem; os partidos que o esquecem expiram no lodo e na ignomínia.

Outro, meio calvo, não acreditava na punição moral, e dizia por quê; mas um terceiro aludiu à demissão de uns coletores, e os espíritos, meio tontos com a doutrina, tomaram pé. Os coletores não tinham outra culpa, além da opinião; e nem ao menos se podia defender o ato com o merecimento dos substitutos. Um destes trazia às costas um desfalque; outro era cunhado de um tal Marques que dera um tiro de garrucha no delegado, em São José dos Campos... E o novos tenentes-coronéis? Verdadeiros réus de polícia.

- Já se vai embora? - perguntou Rubião ao moço, quando o viu tirar o sobretudo dentre os outros.

- Já; estou com sono. Ajude-me a enfiar esta manga. Estou com sono.

- Mas ainda é cedo; fique. O nosso Camacho não deseja que os rapazes saiam; quem é que há de dançar com as moças?

Carlos Maria replicou sorrindo que era pouco dado a danças. Valsara com D. Sofia, por ser mestra no ofício; senão, nem isso. Estava com sono; preferia a cama à orquestra. E estendeu-lhe a mão com benignidade; Rubião apertou-lha, meio incerto.

Não sabia que pensasse. O fato de sair, de a deixar no baile, em vez de esperar para acompanhá-la à carruagem, como de outras vezes... Podia ser engano dele... E pensava, recordava a noite de Santa Teresa, quando ele ousou declarar à moça o que sentia, pegando-lhe na bela mão delicada... O major interrompera-os; mas por que não insistiu ele mais tarde? Nem ela o maltratou, nem o marido percebera cousa nenhuma... Aqui voltava a ideia do possível rival; é certo que se retirara com sono, mas os modos dela... Rubião ia à porta do salão, para ver Sofia, depois chegava-se a um canto ou à mesa do voltarete, inquieto, aborrecido.

CAPÍTULO LXXI

Em casa, ao despentear-se, Sofia falou daquele sarau como de uma cousa enfadonha. Bocejava, doíam-lhe as pernas. Palha discordava; era má disposição dela. Se Ihe doíam as pernas é porque dançara muito. Ao que retorquiu a mulher que, se não dançasse, teria morrido de tédio. E ia tirando os grampos, deitando-os num vaso de cristal; os cabelos caíam-lhe aos poucos sobre os ombros, mal cobertos pela camisola de cambraia. Palha, por trás dela, disse-lhe que o Carlos Maria valsava muito bem. Sofia estremeceu; fitou-o no espelho, o rosto era plácido. Concordou que não valsava mal.

- Não senhora, valsa muito bem.

- Você louva os outros porque sabe que ninguém é capaz de o desbancar. Anda, meu vaidoso, já te conheço.

Palha, estendendo a mão e pegando-lhe no queixo, obrigou-a a olhar para ele. Vaidoso por quê? Por que é que ele era vaidoso?

- Ai - gemeu Sofia -; não me machuques.

Palha beijou-lhe a espádua; ela sorriu, sem tédio, sem dor de cabeça, ao contrário daquela noite de Santa Teresa, em que relatou ao marido os atrevimentos do Rubião. É que os morros serão doentios, e as praias, saudáveis.

No dia seguinte, Sofia acordou cedo, ao som dos trilos da passarada de casa, que parecia dar-lhe um recado de alguém. Deixou-se estar na cama, e fechou os olhos para ver melhor.

Ver melhor o quê? Não, seguramente, os morros doentios. A praia era outra cousa. Posta à janela, dali a meia hora, Sofia contemplava as ondas que vinham morrer defronte, e, ao longe, as que se levantavam e desfaziam à entrada da barra. A imaginosa dama perguntava a si mesma se aquilo era a valsa das águas, e deixava-se ir por essa torrente abaixo, sem velas nem remos. Deu consigo olhando para a rua, ao pé do mar, como procurando os sinais do homem que ali estivera, na antevéspera, alta noite... Não juro, mas cuido que achou os sinais. Ao menos, é certo que cotejou o achado com o texto da conversação:

"A noite era clara; fiquei cerca de uma hora, entre o mar e a sua casa. A senhora, aposto que nem sonhava comigo? Entretanto, eu quase que ouvia a sua respiração. O mar batia com força, é verdade, mas o meu coração não batia menos rijamente; com esta diferença que o mar é estúpido, bate sem saber por quê, e o meu coração sabe que batia pela senhora."

Sofia teve um calafrio, procurou esquecer o texto, mas o texto ia-se repetindo: "A noite era clara..."

CAPÍTULO LXXII

Entre duas frases, sentiu que alguém lhe punha a mão no ombro; era o marido, que acabava de tomar café e ia para a cidade. Despediram-se afetuosamente; Cristiano recomendou-lhe Maria Benedita, que acordara muito aborrecida.

- Já de pé! - exclamou Sofia.

- Quando eu desci, já a achei na sala de jantar. Acordou com a mania de ir para a roça; teve um sonho... não sei quê...

- Calundus! - concluiu Sofia.

E com os dedos hábeis e leves concertou a gravata ao marido, puxou-lhe a gola do fraque para diante, e despediram-se outra vez. Palha desceu e saiu; Sofia deixou-se estar à janela. Antes de dobrar a esquina, ele voltou a cabeça, e, na forma do costume, disseram adeus com a mão.

CAPÍTULO LXXIII

"A noite era clara; fiquei cerca de uma hora entre o mar e a sua casa. A senhora, aposto que..."

Quando Sofia pôde arrancar-se de todo à janela, o relógio de baixo batia nove horas. Zangada, arrependida, jurou a si mesma, pela alma da mãe, não pensar mais em semelhante episódio. Considerou que não valia nada; o erro foi deixar que o rapaz chegasse ao fim dos seus atrevimentos. Verdade é que, procedendo assim, evitou algum grande escândalo, porque ele era capaz de a acompanhar até a cadeira e dizer-lhe o resto ao pé de outras pessoas. E o resto repetia-se ainda uma vez na memória dela, como um trecho musical teimoso, as mesmas palavras, e a mesma voz: "A noite era clara; fiquei cerca de uma hora..."

CAPÍTULO LXXIV

Enquanto ela repetia a declaração da véspera, Carlos Maria abria os olhos, estirava os membros, e, antes de ir para o banho, vestir-se e dar um passeio a cavalo, reconstruiu a véspera. Tinha esse costume; achava sempre nos sucessos do dia anterior algum fato, algum dito, alguma nota que lhe fazia bem. Aí é que o espírito se demorava; aí eram as estalagens do caminho, onde ele descavalgava, para beber vagarosamente um golpe d'água fresca. Se não havia sucesso nenhum desses - ou se os havia só contrários -, nem por isso as sensações eram desconfortativas; bastava-lhe o sabor de alguma palavra que ele mesmo houvesse dito - de algum gesto que fizesse, a contemplação subjetiva, o gosto de se ter sentido viver - para que a véspera não fosse um dia perdido.

Na véspera figurava Sofia. Parece até que foi o principal da reconstrução, a fachada do edifício, larga e magnífica. Carlos Maria saboreou de memória toda a conversação da noite, mas, quando se lembrou da confissão de amor, sentiu-se bem e mal. Era um compromisso, um estorvo, uma obrigação; e, posto que o benefício corrigisse o tédio, o rapaz ficou entre uma e outra sensação, sem plano. Ao recordar-se da notícia que lhe deu de haver ido à praia do Flamengo, na outra noite, não pôde suster o riso, porque não era verdade. Nascera-lhe a ideia da própria conversação; mas nem lá foi nem pensara nisso. Afinal susteve o riso, e até arrependeu-se dele; o fato de haver mentido trouxe-lhe uma sensação de inferioridade, que o abateu. Chegou a pensar em retificar o que dissera, logo que estivesse com Sofia, mas reconheceu que a emenda era pior que o soneto, e que há bonitos sonetos mentirosos.

Depressa ergueu a alma. Viu de memória a sala, os homens, as mulheres, os leques impacientes, os bigodes despeitados, e estirou-se todo num banho de inveja e admiração. De inveja alheia, note bem; ele carecia desse sentimento ruim. A inveja e a admiração dos outros é que lhe davam ainda agora uma delícia íntima. A princesa do baile entregava-se-lhe. Definia assim a superioridade de Sofia, posto lhe conhecesse um defeito capital - a educação. Achava que as maneiras polidas da moça vinham da imitação adulta, após o casamento, ou pouco antes, que ainda assim não subiam muito do meio em que vivia.

CAPÍTULO LXXV

Outras mulheres vieram ali - as que o preferiam aos demais homens no trato e na contemplação da pessoa. Se as requestava ou requestara todas? Não se sabe. Algumas, vá: é certo, porém, que se deleitava com todas elas. Tais havia de provada honestidade que folgavam de o trazer ao pé de si, para gostar o contacto de um belo homem, sem a realidade nem o perigo da culpa - como o espectador que se regala das paixões de Otelo, e sai do teatro com as mãos limpas da morte de Desdêmona.

Vinham todas rodear o leito de Carlos Maria, tecendo-lhe a mesma grinalda. Nem todas seriam moças em flor; mas a distinção supria a juvenilidade. Carlos Maria recebia-as como um deus antigo devia receber, quieto no mármore, as lindas devotas e suas oferendas. No burburinho geral distinguia as vozes de todas - não todas a um tempo, mas às três e às quatro.

A derradeira delas foi a da recente Sofia; escutou-a ainda namorado, mas sem o alvoroço do princípio, porque a lembrança das outras donas, pessoas de qualidade, diminuía agora a importância desta. Contudo, não podia negar que era mui atrativa e que valsava perfeitamente. Chegaria a amar com força? Nisto apareceu-lhe outra vez a mentira da praia. Levantou-se aborrecido da cama.

"Quem diabo me mandou dizer semelhante cousa?"

Tornou a sentir o desejo de restabelecer a verdade; e desta vez mais seriamente que da outra. Mentir, pensava ele, era para os lacaios e seus congêneres.

Daí a meia hora, trepava ao cavalo e saía de casa, que era na rua dos Inválidos. Catete adiante, lembrou-se que a casa de Sofia era na praia do Flamengo; nada mais natural que torcer a rédea, descer uma das ruas perpendiculares ao mar, e passar pela porta da valsista. Achá-la-ia talvez à janela; vê-la-ia corar, cumprimentá-lo. Tudo isto passou pela cabeça ao rapaz, em poucos segundos; chegou a dar um jeito à rédea, mas a alma - não o cavalo -, a alma empinou; era ir muito depressa atrás dela. Deu outro jeito à rédea, e continuou o passeio.

CAPÍTULO LXXVI

Montava bem. Toda a gente que passava, ou estava às portas, não se fartava de mirar a postura do moço, o garbo, a tranquilidade régia com que se deixava ir. Carlos Maria - e este era o ponto em que cedia à multidão - recolhia as admirações todas, por ínfimas que fossem. Para adorá-lo, todos os homens faziam parte da humanidade.

CAPÍTULO LXXVII

- Já de pé! - repetiu Sofia, ao ver a prima lendo os jornais.

Maria Benedita teve um sobressalto, mas aquietou-se logo; dormira mal, e acordou cedo. Não estava para aquelas folias até tão tarde, disse ela; mas a outra replicou logo que era preciso acostumar-se, a vida do Rio de Janeiro não era a mesma da roça, dormir com as galinhas e acordar com os galos. Depois perguntou-lhe que impressões trouxera do baile; Maria Benedita levantou os ombros com indiferença, mas verbalmente respondeu que boas. As palavras saíam-lhe poucas e moles. Sofia, entretanto, ponderou-lhe que dançara muito, salvo polcas e valsas. E por que não havia de polcar e valsar também? A prima lançou-lhe uns olhos maus.

- Não gosto.

- Qual não gosta! É medo.

- Medo?

- Falta de costume - explicou Sofia.

- Não gosto que um homem me aperte o corpo ao seu corpo, e ande comigo, assim, à vista dos outros. Tenho vexame.

Sofia tornou-se séria; não se defendeu nem continuou, falou da roça, perguntou se era certo o que lhe dissera Cristiano, que ela queria ir para casa. Então a prima, que folheava os jornais, à toa, respondeu animadamente que sim; não podia viver sem a mãe.

- Mas por quê? Você não estava tão contente conosco?

Maria Benedita não disse nada; passeou os olhos em um dos jornais, como se procurasse alguma notícia, trincando o beiço, trêmula, inquieta. Sofia teimou em querer saber a causa daquela mudança repentina; pegou-lhe nas mãos, achou-as frias.

- Você precisa casar - disse finalmente -. Tenho já um noivo.

Era Rubião; o Palha queria acabar por aí, casando o sócio com a prima; tudo ficava em casa, dizia ele à mulher. Esta tomou a si guiar o negócio. Acudia-lhe agora a promessa; tinha um noivo pronto.

- Quem? - perguntou Maria Benedita.

- Uma pessoa.

Crê-lo-eis, pósteros? Sofia não pôde soltar o nome de Rubião. Já uma vez, dissera ao marido havê-lo proposto, e era mentira. Agora indo a propô-lo deveras, o nome não lhe saiu da boca. Ciúmes? Seria singular que esta mulher, que não tinha amor àquele homem, não quisesse dá-lo de noivo à prima, mas a natureza é capaz de tudo, amigo e senhor. Inventou o ciúme de Otelo e o do cavaleiro Desgrieux, podia inventar este outro de uma pessoa que não quer ceder o que não quer possuir.

- Mas quem? - repetiu Maria Benedita.

- Direi depois, deixe-me arranjar as cousas - respondeu Sofia, e mudou de conversa.

Maria Benedita trocou de rosto, a boca encheu-se-lhe de riso, um riso de alegria e de esperança. Os olhos agradeceram a promessa, e disseram palavras que ninguém podia ouvir nem entender, palavras obscuras:

- Gosta de valsar; é o que é.

Gosta de valsar quem? Provavelmente a outra. Tinha valsado tanto na véspera, com o mesmo Carlos Maria, que bem se poderia achar na dança um pretexto; Maria Benedita concluía agora que era o próprio e único motivo. Conversaram muito nos intervalos, é certo, mas naturalmente era dela que falavam, uma vez que a prima tinha a peito casá-la, e só lhe pedia que deixasse arranjar as cousas. Talvez ele a achasse feia, ou sem graça. Uma vez, porém, que a prima queria arranjar as cousas... Tudo isso diziam os olhos gaios da menina.

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