Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO LXIII

Na rua, encontrou Sofia com uma senhora idosa e outra moça. Não teve olhos para ver bem as feições destas; todo ele foi pouco para Sofia. Falaram-se acanhadamente, dous minutos apenas, e seguiram o seu caminho. Rubião parou adiante, e olhou para trás; mas as três senhoras iam andando sem voltar a cabeça. Depois do jantar, consigo:

"Irei lá hoje?"

Reflexionou muito sem adiantar nada. Ora que sim, ora que não. Achara-lhe um modo esquisito; mas lembrava-se que sorriu - pouco, mas sorriu. Pôs o caso à sorte. Se o primeiro carro que passasse viesse da direita, iria; se viesse da esquerda, não. E deixou-se estar na sala, no pouf central, olhando. Veio logo um tilbury da esquerda. Estava dito; não ia a Santa Teresa. Mas aqui a consciência reagiu; queria os próprios termos da proposta: um carro. Tilbury não era carro. Devia ser o que vulgarmente se chama carro, uma caleça inteira ou meia, ou ainda uma vitória. Daí a pouco vieram chegando da direita muitas caleças, que voltavam de um enterro. Foi.

CAPÍTULO LXIV

Sofia deu-lhe a mão gentilmente, sem sombra de rancor. As duas senhoras do passeio estavam com ela, em trajes caseiros; apresentou-as. A moça era prima, a velha era tia - aquela tia da roça, autora da carta que Sofia recebeu no jardim das mãos do carteiro que logo depois deu uma queda. A tia chamava-se D. Maria Augusta; tinha uma fazendola, alguns escravos e dívidas, que lhe deixara o marido, além das saudades. A filha era Maria Benedita - nome que a vexava, por ser de velha, dizia ela; mas a mãe retorquia-lhe que as velhas foram algum dia moças e meninas, e que os nomes adequados às pessoas eram imaginações de poetas e contadores de histórias. Maria Benedita era o nome da avó dela, afilhada de Luís de Vasconcelos, o vice-rei. Que queria mais?

Contaram isto ao Rubião, sem que ela se vexasse. Sofia, ou por atenuar o caso, ou por outro motivo, acrescentou que os mais feios nomes eram lindos, segundo a pessoa. Maria Benedita era lindíssimo.

- Não lhe parece? - concluiu voltando-se para Rubião.

- Deixa de caçoada, prima! - acudiu Maria Benedita, rindo.

Podemos crer que a velha nem Rubião entenderam o dito - a velha, porque começava a cochilar, Rubião porque afagava um cãozinho que tinham dado a Sofia, pequeno, delgado, leve, buliçoso, olhos negros, com um guizo ao pescoço. Mas, insistindo a dona da casa, ele respondeu que sim, sem saber o que era. Maria Benedita deu um muxoxo. Em verdade, não era uma beleza; não lhe pedissem olhos que fascinam, nem dessas bocas que segredam alguma cousa, ainda caladas; era natural, sem acanho de roceira; e tinha um donaire particular, que corrigia as incoerências do vestido.

Nascera na roça e gostava da roça. A roça era perto, Iguaçu. De longe em longe vinha à cidade, passar alguns dias; mas, ao cabo dos dous primeiros, já estava ansiosa por tornar a casa. A educação foi sumária: ler, escrever, doutrina e algumas obras de agulha. Nos últimos tempos (ia em dezenove anos), Sofia apertou com ela para aprender piano; a tia consentiu; Maria Benedita veio para a casa da prima, e ali esteve uns dezoito dias. Não pôde mais; doeram-lhe as saudades da mãe e voltou para a roça, deixando consternado o professor, que anunciou nela, desde os primeiros dias, um grande talento musical.

- Oh! Sem dúvida, um grande talento!

Maria Benedita riu-se quando a prima lhe contou isto, e nunca mais pôde ver a sério o homem. Às vezes, no meio de uma lição, deitava a rir; Sofia contraía as sobrancelhas, a modo de ralho, e o pobre homem perguntava o que era, e de si mesmo explicava que havia de ser alguma lembrança de moça, e continuava a lição. Nem piano nem francês - outra lacuna, que Sofia mal podia desculpar. D. Maria Augusta não compreendia a consternação da sobrinha. Para que francês! A sobrinha dizia-lhe que era indispensável para conversar, para ir às lojas, para ler um romance...

- Sempre fui feliz sem francês - respondia a velha -; e os meias-línguas da roça são a mesma cousa; não vivem pior que os crioulos.

Um dia acrescentou:

- Nem por isso lhe hão de faltar noivos. Pode casar, já lhe disse que pode casar quando quiser, que eu também casei; e até deixar-me na roça, sozinha, morrer como uma besta velha...

- Mamãe!

- Não tenha pena; é só aparecer o noivo. Em aparecendo, vá com ele, e deixe-me ficar. Olha Maria José o que fez comigo? Vive lá pelo Ceará.

- Mas se o marido é juiz de direito - ponderava Sofia.

- Torto que seja! Para mim é a mesma cousa. Cá fica o frangalho da velha. Casa, Maria Benedita, casa depressa; eu morrerei com Deus. Não terei filhos, mas terei Nossa Senhora, que é mãe de todos. Casa, anda, casa!

Toda essa rabugem era cálculo; tinha em mira arredar a filha do matrimônio, excitando-lhe o terror e a piedade. Quando menos, retardar-lho. Não creio que revelasse esse pecado ao confessor, nem que chegasse a entendê-lo: era obra de um egoísmo idoso e melindroso. D. Maria Augusta fora longamente querida; a mãe era douda por ela, o marido amou-a até o último dia com a mesma intensidade. Mortos ambos, todas as suas saudades filiais e matrimoniais foram postas na cabeça das duas filhas. Uma fugira-lhe, casando. Ameaçada da solidão, se a outra casasse também, D. Maria Augusta fazia tudo o que podia por evitar o desastre.

CAPÍTULO LXV

Curta foi a visita de Rubião. Às nove horas levantou-se ele discretamente, esperando qualquer palavra de Sofia, um pedido para que ficasse ainda algum tempo, que esperasse o marido que já vinha, um espanto que fosse: Já! Mas nem isso. Sofia estendeu-lhe a mão, em que ele mal pôde tocar. Contudo, a moça, durante a visita, mostrou-se tão natural, tão sem azedume... Não teve seguramente os olhos longos e loquazes, como dantes; parecia até que não houvera nada, nem bem nem mal, nem morangos, nem lua. Rubião tremia, não achava palavras; ela achava todas as que queria, e, se era preciso olhar para ele, fazia-o direitamente, tranquilamente.

- Lembranças ao nosso Palha - murmurou ele de chapéu e bengala na mão.

- Obrigada! Foi fazer uma visita; parece que ouço passos; há de ser ele.

Não era ele; era Carlos Maria. Rubião ficou espantado de o ver ali, mas achou logo que a presença da fazendeira e da filha explicaria tudo; podia ser até que fossem aparentados.

- Ia saindo, quando o senhor entrou - disse-lhe Rubião depois de o ver sentado ao pé de D. Maria Augusta.

- Ah! - respondeu o outro, olhando para o retrato de Sofia.

Sofia foi até à porta despedir-se do Rubião; disse-lhe que o marido ficaria com pena de não estar em casa; mas que a visita era imperiosa. Negócios... Iria pedir-lhe desculpa.

- Que desculpa? - acudiu Rubião.

Parece que quis dizer ainda alguma cousa; mas o aperto de mão de Sofia e a reverência que esta lhe fez deram-lhe o sinal de despedida. Rubião inclinou-se, atravessou o jardim, ouvindo a voz de Carlos Maria, na sala:

- Vou denunciar seu marido, minha senhora; é homem de muito mau gosto.

Rubião parou.

- Por quê? - disse Sofia.

- Tem este seu retrato na sala - continuou Carlos Maria -; a senhora é muito mais bela, infinitamente mais bela que a pintura. Comparem, minhas senhoras.

CAPÍTULO LXVI

"Como ele diz aquelas cousas tão naturalmente!", pensou Rubião, em casa, relembrando as palavras de Carlos Maria. "Desfazer no retrato só para elogiar a pessoa! Note-se que o retrato é muito parecido."

CAPÍTULO LXVII

De manhã, na cama, teve um sobressalto. O primeiro jornal que abriu foi a Atalaia. Leu o artigo editorial, uma correspondência e algumas notícias. De repente, deu com o seu nome.

"Que é isto?"

Era o seu próprio nome impresso, rutilante, multiplicado, nada menos que uma notícia do caso da rua da Ajuda. Depois do sobressalto, aborrecimento. Que diacho de ideia aquela de imprimir um fato particular, contado em confiança? Não quis ler nada; desde que percebeu o que era deitou a folha ao chão, e pegou em outra. Infelizmente, perdera a serenidade, lia por alto, pulava algumas linhas, não entendia outras, ou dava por si no fim de uma coluna sem saber como viera escorregando até ali.

Ao levantar-se, sentou-se na poltrona, ao pé da cama, e pegou da Atalaia. Lançou os olhos pela notícia: era mais de uma coluna. Coluna e tanto para cousa tão diminuta! - pensou consigo. E a fim de ver como é que Camacho enchera o papel, leu tudo, um pouco às pressas, vexado dos adjetivos e da descrição dramática do caso.

- Foi bem feito! - disse em voz alta -. Quem me mandou ser linguarudo?

Passou ao banho, vestiu-se, penteou-se, sem esquecer a bisbilhotice da folha, acanhado com a publicação de um negócio, que ele reputava mínimo, e ainda mais pelo encarecimento que lhe dera o escritor, como se se tratasse de dizer bem ou mal em política. Ao café, pegou novamente na folha, para ler outras cousas, nomeações do governo, um assassinato em Garanhuns, meteorologia, até que a vista desastrada foi cair na notícia, e leu-a então com pausa. Aqui confessou Rubião que bem podia crer na sinceridade do escritor. O entusiasmo da linguagem explicava-se pela impressão que lhe ficou do fato; tal foi ela que lhe não permitiu ser mais sóbrio. Naturalmente é o que foi. Rubião recordou a sua entrada no escritório do Camacho, o modo por que falou; e daí tornou atrás, ao próprio ato. Estirado no gabinete, evocou a cena: o menino, o carro, os cavalos, o grito, o salto que deu, levado de um ímpeto irresistível. - Agora mesmo não podia explicar o negócio; foi como se lhe tivesse passado uma sombra pelos olhos... Atirou-se à criança, e aos cavalos, cego e surdo, sem atender ao próprio risco... E podia ficar ali, embaixo dos animais, esmagado pelas rodas, morto ou ferido; ferido que fosse... Podia ou não podia? Era impossível negar que a situação foi grave... A prova é que os pais e a vizinhança...

Rubião interrompeu as reflexões para ler ainda a notícia. Que era bem escrita, era. Trechos havia que releu com muita satisfação. O diabo do homem parecia ter assistido à cena. Que narração! Que viveza de estilo! Alguns pontos estavam acrescentados - confusão de memória -, mas o acréscimo não ficava mal. E certo orgulho que lhe notou ao repetir-lhe o nome? "O nosso amigo, o nosso distintíssimo amigo, o nosso valente amigo..."

Ao almoço, riu-se de si mesmo; achou-se mortificado em demasia. Afinal, que tinha que o outro desse aos seus leitores uma notícia que era verdadeira, que era interessante, dramática - e, seguramente, - não vulgar? Saindo, recebeu alguns cumprimentos; Freitas chamou-lhe São Vicente de Paula. E o nosso amigo sorria, agradecia, diminuía-se, não era nada.

- Nada? - replicou alguém -. Dê-me muitos desses nadas. Salvar uma criança com risco da própria vida...

Rubião ia concordando, ouvindo, sorrindo; contava a cena a alguns curiosos, que a queriam da própria boca do autor. Certos ouvintes respondiam com proezas suas - um que salvara uma vez um homem, outro uma menina, prestes a afogar-se no Boqueirão do Passeio, estando a tomar banho. Vinham também suicídios malogrados, por intervenção do ouvinte, que tomou a pistola ao infeliz e fê-lo jurar... Cada gloriazinha oculta picava o ovo, e punha a cabeça de fora, olho aberto, sem penas, em volta da glória máxima do Rubião. Também teve invejosos, alguns que nem o conheciam, só por ouvi-lo louvar em voz alta. Rubião foi agradecer a notícia ao Camacho, não sem alguma censura pelo abuso de confiança, mas uma censura mole, ao canto da boca. Dali foi comprar uns tantos exemplares da folha para os amigos de Barbacena. Nenhuma outra transcreveu a notícia; ele, a conselho do Freitas, fê-la reimprimir nos apedidos do Jornal do Commercio, interlinhada.

CAPÍTULO LXVIII

Maria Benedita consentiu finalmente em aprender francês e piano. Durante quatro dias a prima teimou com ela, a todas as horas, de tal arte e maneira, que a mãe da moça resolveu apressar a volta à fazenda, para evitar que ela acabasse aceitando. A filha resistiu muito; respondia que eram cousas supérfluas, que moça de roça não precisa de prendas da cidade. Uma noite, porém, estando ali Carlos Maria, pediu-lhe este que tocasse alguma cousa; Maria Benedita fez-se vermelha. Sofia acudiu com uma mentira:

- Não lhe peça isso; ainda não tocou depois que veio. Diz que agora só toca para os roceiros.

- Pois faça de conta que somos roceiros - insistiu o moço.

Mas passou logo a outra cousa, ao baile da baronesa do Piauí (a mesma que o nosso amigo Rubião encontrou no escritório do Camacho), um baile esplêndido, oh! Esplêndido! A baronesa prezava-o muito, disse ele. No dia seguinte, Maria Benedita declarou à prima que estava pronta a aprender piano e francês, rabeca e até russo, se quisesse. A dificuldade era vencer a mãe. Esta, quando soube da resolução da filha, pôs as mãos na cabeça. Que francês? Que piano? Bradou que não, ou então que deixasse de ser sua filha; podia ficar, tocar, cantar, falar cabinda ou a língua do diabo que os levasse a todos. Palha é que a persuadiu finalmente; disse-lhe que, por mais supérfluas que lhe parecessem aquelas prendas, eram o mínimo dos adornos de uma educação de sala.

- Mas eu criei minha filha na roça e para a roça - interrompeu a tia.

- Para a roça? Quem sabe lá para que cria os filhos? Meu pai destinava-me a padre; é por isso que arranho algum latim. A senhora não há de viver sempre; os seus negócios andam atrapalhados. Pode acontecer que Maria Benedita fique ao desamparo... Ao desamparo, não digo; enquanto vivermos somos todos uma só pessoa. Mas não é melhor prevenir? Podia ser até que, se lhe faltássemos todos, ela vivesse à larga, só com ensinar francês e piano. Basta que os saiba para estar em condições melhores. É bonita, como a senhora foi no seu tempo; e possui raras qualidades morais. Pode achar marido rico. Sabe a senhora se já tenho alguém em vista, pessoa séria?

- Sim? Então ela vai aprender francês, piano e namoro?

- Que namoro? Refiro-me a um pensamento íntimo, a um plano que me parece adequado à felicidade dela e de sua mãe... Pois eu havia... Ora, tia Augusta!

Palha mostrou-se tão mortificado, que a tia deixou o tom áspero pelo tom seco. Resistiu ainda; mas a noite deu-lhe bons conselhos. O estado dos seus negócios, e a possibilidade de um genro abastado fizeram mais que outras razões. Os melhores genros da roça aliavam-se a outras fazendas, a famílias de representação e riqueza segura. Dous dias depois acharam um modus vivendi: Maria Benedita ficaria com a prima; iriam de quando em quando à roça, e a tia também viria à capital, para vê-las. Palha chegou a dizer que, logo que o estado da praça o permitisse, arranjaria meio de liquidar-lhe os negócios e transportá-la para aqui. Mas a isto a boa senhora abanou a cabeça.

Não se pense que tudo isso foi tão fácil como aí fica escrito. Na prática, vieram os óbices, amofinações, saudades, rebeliões de Maria Benedita. Dezoito dias depois da volta da mãe à fazenda, quis ir visitá-la, e a prima acompanhou-a; estiveram lá uma semana. A mãe, dous meses depois, veio passar uns dias aqui. Sofia acostumava habilmente a prima às distrações da cidade, teatros, visitas, passeios, reuniões em casa, vestidos novos, chapéus lindos, joias. Maria Benedita era mulher, posto que mulher esquisita; gostou de tais cousas, mas tinha para si que, logo que quisesse, podia arrebentar todos esses liames, e andar para a roça. A roça vinha ter com ela, às vezes, em sonho ou simples devaneio. Depois dos primeiros saraus, quando voltava para casa, não eram as sensações da noite que lhe enchiam a alma, eram as saudades de Iguaçu. Cresciam-lhe mais a certas horas do dia, quando a quietação da casa e da rua era completa. Então batia as asas para a varanda da velha casa, onde bebia café, ao pé da mãe; pensava na escravaria, nos móveis antigos, nas bonitas chinelas que lhe mandara o padrinho, um fazendeiro rico de São João d'El-Rei - e que lá ficaram em casa. Sofia não consentiu que ela as trouxesse.

Os mestres de francês e piano eram homens sabedores do ofício. Sofia teve modo de dizer-lhes em particular que a prima vexava-se de aprender tão tarde, e pediu-lhes que não falassem nunca de tal discípula. Prometeram que sim; o de piano apenas referiu o pedido a alguns colegas d'arte, que lhe acharam graça, e contaram outras anedotas da clientela. O certo é que Maria Benedita aprendia com singular facilidade, estudava com afinco, quase todas as horas, a tal ponto que a mesma prima julgava acertado interrompê-la.

- Descansa, filha de Deus!

- Deixa recobrar o tempo perdido - respondia ela rindo.

Então Sofia inventava passeios, à toa, para fazê-la descansar. Ora um bairro, ora outro. Em certas ruas, Maria Benedita não perdia tempo: lia as tabuletas francesas, e perguntava pelos substantivos novos, que a prima, algumas vezes, não sabia dizer o que eram, tão estritamente adequado era o seu vocabulário às cousas do vestido, da sala e do galanteio.

Mas não era só nessas disciplinas que Maria Benedita fazia progressos rápidos. A pessoa ajustara-se ao meio, mais depressa do que fariam crer o gosto natural e a vida da roça. Já competia com a outra, embora houvesse nesta um desgarre, e não sei que expressão particular que, para assim dizer, dava cor a todas as linhas e gestos da figura. Não obstante essa diferença, é certo que a outra era vista e notada ao pé dela, de tal jeito que Sofia, que começara por louvá-la em toda a parte, não a deslouvava agora, mas ouvia calada as admirações. Falava bem; - mas, quando calava, era por muito tempo; dizia que eram os seus "calundus". Contradançava sem vida, que é a perfeição desse gênero de recreio; gostava muito de ver polcar e valsar. Sofia, imaginando que era por medo que a prima não valsava nem polcava, quis dar-lhe algumas lições em casa, sozinhas, com o marido ao piano; mas a prima recusava sempre.

- Isso é ainda um bocadinho de casca da roça - disse-lhe uma vez Sofia.

Maria Benedita sorriu de um modo tão particular, que a outra não insistiu. Não foi riso de vexame, nem de despeito, nem de desdém. Desdém, por quê? Contudo, é certo que o riso parecia vir de cima. Não menos o é que Sofia polcava e valsava com ardor, e ninguém se pendurava melhor do ombro do parceiro; Carlos Maria, que era raro dançar, só valsava com Sofia - dous ou três giros, dizia ele -; Maria Benedita contou uma noite quinze minutos.

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