Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO V

Rubião achou um rival no coração de Quincas Borba - um cão, um bonito cão, meio tamanho, pelo cor de chumbo, malhado de preto. Quincas Borba levava-o para toda parte, dormiam no mesmo quarto. De manhã, era o cão que acordava o senhor, trepando ao leito, onde trocavam as primeiras saudações. Uma das extravagâncias do dono foi dar-lhe o seu próprio nome; mas, explicava-o por dous motivos, um doutrinário, outro particular.

- Desde que Humanitas, segundo a minha doutrina, é o princípio da vida e reside em toda a parte, existe também no cão, e este pode assim receber um nome de gente, seja cristão ou muçulmano...

- Bem, mas por que não lhe deu antes o nome de Bernardo? - disse Rubião com o pensamento em um rival político da localidade.

- Esse agora é o motivo particular. Se eu morrer antes, como presumo, sobreviverei no nome do meu bom cachorro. Ris-te, não?

Rubião fez um gesto negativo.

- Pois devias rir, meu querido. Porque a imortalidade é o meu lote ou o meu dote, ou como melhor nome haja. Viverei perpetuamente no meu grande livro. Os que, porém, não souberem ler, chamarão Quincas Borba ao cachorro, e...

O cão, ouvindo o nome, correu à cama. Quincas Borba, comovido, olhou para Quincas Borba:

- Meu pobre amigo! Meu bom amigo! Meu único amigo!

- Único!

- Desculpa-me, tu também o és, bem sei, e agradeço-te muito; mas a um doente perdoa-se tudo. Talvez esteja começando o meu delírio. Deixa ver o espelho.

Rubião deu-lhe o espelho. O doente contemplou por alguns segundos a cara magra, o olhar febril, com que descobria os subúrbios da morte, para onde caminhava a passo lento, mas seguro. Depois, com um sorriso pálido e irônico:

- Tudo o que está cá fora corresponde ao que sinto cá dentro; vou morrer, meu caro Rubião... Não gesticules, vou morrer. E que é morrer, para ficares assim espantado?

- Sei, sei que você tem umas filosofias... Mas falemos do jantar; que há de ser hoje?

Quincas Borba sentou-se na cama, deixando pender as pernas, cuja extraordinária magreza se adivinhava por fora das calças.

- Que é? Que quer? - acudiu Rubião.

- Nada - respondeu o enfermo sorrindo -. Umas filosofias! Com que desdém me dizes isso! Repete, anda, quero ouvir outra vez. Umas filosofias!

- Mas não é por desdém... Pois eu tenho capacidade para desdenhar de filosofias? Digo só que você pode crer que a morte não vale nada, porque terá razões, princípios...

Quincas Borba procurou com os pés as chinelas; Rubião chegou-lhas; ele calçou-as e pôs-se a andar para esticar as pernas. Afagou o cão e acendeu um cigarro. Rubião quis que se agasalhasse, e trouxe-lhe um fraque, um colete, um chambre, um capote, à escolha. Quincas Borba recusou-os com um gesto. Tinha outro ar agora; os olhos metidos para dentro viam pensar o cérebro. Depois de muitos passos, parou, por alguns segundos, diante de Rubião.

CAPÍTULO VI

- Para entenderes bem o que é a morte e a vida, basta contar-te como morreu minha avó.

- Como foi?

- Senta-te.

Rubião obedeceu, dando ao rosto o maior interesse possível, enquanto Quincas Borba continuava a andar.

- Foi no Rio de Janeiro - começou ele -, defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a esperava no largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em que minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar-se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou-a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram-lhe por cima. Foi levada em braços para uma botica da rua Direita, veio um sangrador, mas era tarde; tinha a cabeça rachada, uma perna e o ombro partidos, era toda sangue; expirou minutos depois.

- Foi realmente uma desgraça, disse Rubião.

- Não.

- Não?

- Ouve o resto. Aqui está como se tinha passado o caso. O dono da sege estava no adro, e tinha fome, muita fome, porque era tarde, e almoçara cedo e pouco. Dali pôde fazer sinal ao cocheiro; este fustigou as mulas para ir buscar o patrão. A sege no meio do caminho achou um obstáculo e derribou-o; esse obstáculo era minha avó. O primeiro ato dessa série de atos foi um movimento de conservação: Humanitas tinha fome. Se em vez de minha avó, fosse um rato ou um cão, é certo que minha avó não morreria, mas o fato era o mesmo; Humanitas precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso no sentido de dar matéria a muitos necrológios; mas o fundo subsistia. O universo ainda não parou por lhe faltarem alguns poemas mortos em flor na cabeça de um varão ilustre ou obscuro; mas Humanitas (e isto importa, antes de tudo), Humanitas precisa comer.

Rubião escutava, com a alma nos olhos, sinceramente desejoso de entender; mas não dava pela necessidade a que o amigo atribuía a morte da avó. Seguramente o dono da sege, por muito tarde que chegasse a casa, não morria de fome, ao passo que a boa senhora morreu de verdade, e para sempre. Explicou-lhe, como pôde, essas dúvidas, e acabou perguntando-lhe:

- E que Humanitas é esse?

- Humanitas é o princípio. Mas não, não digo nada, tu não és capaz de entender isto, meu caro Rubião; falemos de outra cousa.

- Diga sempre.

Quincas Borba, que não deixara de andar, parou alguns instantes.

- Queres ser meu discípulo?

- Quero.

- Bem, irás entendendo aos poucos a minha filosofia; no dia em que a houveres penetrado inteiramente, ah, nesse dia terás o maior prazer da vida, porque não há vinho que embriague como a verdade. Crê-me, o Humanitismo é o remate das cousas; e eu, que o formulei, sou o maior homem do mundo. Olha, vês como o meu bom Quincas Borba está olhando para mim? Não é ele, é Humanitas...

- Mas que Humanitas é esse?

- Humanitas é o princípio. Há nas cousas todas certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível - ou, para usar a linguagem do grande Camões:

Uma verdade que nas cousas anda
Que mora no visíbil e invisíbil.

Pois essa substância ou verdade, esse princípio indestrutível é que é Humanitas. Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem. Vais entendendo?

- Pouco; mas, ainda assim, como é que a morte de sua avó...

- Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

- Mas a opinião do exterminado?

- Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.

- Bem; a opinião da bolha...

- Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares; devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, as bolhas ficam na água. Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores. Eterna e bela, belamente eterna, como este mundo divino e supradivino.

CAPÍTULO VII

Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante. Rubião acudiu, levando-lhe água e pedindo que se deitasse para descansar; mas o enfermo, após alguns minutos, respondeu que não era nada. Perdera o costume de fazer discursos, é o que era. E, afastando com o gesto a pessoa de Rubião, a fim de poder encará-la sem esforço, empreendeu uma brilhante descrição do mundo e suas excelências. Misturou ideias próprias e alheias, imagens de toda sorte, idílicas, épicas, a tal ponto que Rubião perguntava a si mesmo como é que um homem que ia morrer dali a dias podia tratar tão galantemente aqueles negócios.

- Ande repousar um pouco.

Quincas Borba refletiu.

- Não, vou dar um passeio.

- Agora não; você está muito cansado.

- Qual! Passou.

Ergueu-se e pôs paternalmente as mãos sobre os ombros de Rubião.

- Você é meu amigo?

- Que pergunta!

- Diga

- Tanto ou mais do que este animal - respondeu Rubião, em um arroubo de ternura.

Quincas Borba apertou-lhe as mãos.

- Bem.

CAPÍTULO VIII

No dia seguinte, Quincas Borba acordou com a resolução de ir ao Rio de Janeiro, voltaria no fim de um mês, tinha certos negócios... Rubião ficou espantado. E a moléstia, e o médico? O doente respondeu que o médico era um charlatão, e que a moléstia precisava espairecer, tal qual a saúde. Moléstia e saúde eram dous caroços do mesmo fruto, dous estados de Humanitas.

- Vou a alguns negócios pessoais - concluiu o enfermo - e levo, além disso, um plano tão sublime, que nem mesmo você poderá entendê-lo. Desculpe-me esta franqueza; mas eu prefiro ser franco com você a sê-lo com qualquer outra pessoa.

Rubião fiou do tempo que este projeto lhe passasse, como tantos outros; mas enganou-se. Acrescia que, em verdade, o doente parecia estar melhorando; não ia à cama, saía à rua, escrevia. No fim de uma semana, mandou chamar o tabelião.

- Tabelião? - repetiu o amigo.

- Sim, quero registrar o meu testamento. Ou vamos lá os dous...

Foram os três, porque o cão não deixava partir o amo e senhor sem acompanhá-lo. Quincas Borba registrou o testamento, com as formalidades do estilo, e tornou tranquilo para casa. Rubião sentia bater-lhe o coração violentamente.

- Está claro que eu não o deixo ir só para a Corte - disse ele ao amigo.

- Não, não é preciso. Demais, Quincas Borba não vai, e não o confio a outra pessoa, senão a você. Deixo a casa como está. Daqui a um mês estou de volta. Vou amanhã; não quero que ele pressinta a minha saída. Cuide dele, Rubião.

- Cuido, sim.

- Jura?

- Por esta luz que me alumia. Então sou alguma criança?

- Dê-lhe leite às horas apropriadas, as comidas todas do costume, e os banhos; e quando sair a passeio com ele, olhe que não vá fugir. Não, o melhor é que não saia... não saia...

- Vá sossegado.

Quincas Borba chorava pelo outro Quincas Borba. Não quis vê-lo à saída. Chorava deveras, lágrimas de loucura ou de afeição, quaisquer que fossem, ele as ia deixando pela boa terra mineira, como o derradeiro suor de uma alma obscura, prestes a cair no abismo.

CAPÍTULO IX

Horas depois, teve Rubião um pensamento horrível. Podiam crer que ele próprio incitara o amigo à viagem, para o fim de o matar mais depressa, e entrar na posse do legado, se é que realmente estava incluso no testamento. Sentiu remorsos. Por que não empregou todas as forças, para contê-lo? Viu o cadáver do Quincas Borba, pálido, hediondo, fitando nele um olhar vingativo; resolveu, se acaso o fatal desfecho se desse em viagem, abrir mão do legado.

Pela sua parte o cão vivia farejando, ganindo, querendo fugir; não podia dormir quieto, levantava-se muitas vezes, à noite, percorria a casa, e tornava ao seu canto. De manhã, Rubião chamava-o à cama, e o cão acudia alegre; imaginava que era o próprio dono; via depois que não era, mas aceitava as carícias, e fazia-lhe outras, como se Rubião tivesse de levar as suas ao amigo, ou trazê-lo para ali. Demais havia-se-lhe afeiçoado também e para ele era a ponte que o ligava à existência anterior. Não comeu durante os primeiros dias. Suportando menos a sede, Rubião pôde alcançar que bebesse leite; foi a única alimentação por algum tempo. Mais tarde, passava as horas, calado, triste, enrolado em si mesmo, ou então com o corpo estendido e a cabeça entre as mãos.

Quando o médico voltou, ficou espantado da temeridade do doente; deviam tê-lo impedido de sair; a morte era certa.

- Certa?

- Mais tarde ou mais cedo. Levou o tal cachorro?

- Não, senhor, está comigo; pediu que cuidasse dele, e chorou, olhe que chorou que foi um nunca acabar. Verdade é - disse ainda Rubião para defender o enfermo -, verdade é que o cachorro merece a estima do dono: parece gente.

O médico tirou o largo chapéu de palha para concertar a fita; depois sorriu. Gente? Com que então parecia gente? Rubião insistia, depois explicava; não era gente como a outra gente, mas tinha cousas de sentimento, e até de juízo. Olhe, ia contar-lhe uma...

- Não, homem, não; logo, logo, vou a um doente de erisipela... Se vierem cartas dele, e não forem reservadas, desejo vê-las, ouviu? E lembranças ao cachorro - concluiu saindo.

Algumas pessoas começaram a mofar do Rubião e da singular incumbência de guardar um cão em vez de ser o cão que o guardasse a ele. Vinha a risota, choviam as alcunhas. Em que havia de dar o professor! Sentinela de cachorro! Rubião tinha medo da opinião pública. Com efeito, parecia-lhe ridículo; fugia aos olhos estranhos, olhava com fastio para o animal, dava-se ao diabo, arrenegava da vida. Não tivesse a esperança de um legado, pequeno que fosse. Era impossível que lhe não deixasse uma lembrança.

CAPÍTULO X

Sete semanas depois, chegou a Barbacena esta carta, datada do Rio de Janeiro, toda do punho do Quincas Borba:

Meu caro senhor e amigo,

Você há de ter estranhado o meu silêncio. Não lhe tenho escrito por certos motivos particulares, etc. Voltarei breve; mas quero comunicar-lhe desde já um negócio reservado, reservadíssimo.

Quem sou eu, Rubião? Sou santo Agostinho. Sei que há de sorrir, porque você é um ignaro, Rubião; a nossa intimidade permitia-me dizer palavra mais crua, mas faço-lhe esta concessão, que é a última. Ignaro!

Ouça, ignaro. Sou santo Agostinho; descobri isto anteontem: ouça e cale-se. Tudo coincide nas nossas vidas. O santo e eu passamos uma parte do tempo nos deleites e na heresia, porque eu considero heresia tudo o que não é a minha doutrina de Humanitas; ambos furtamos, ele, em pequeno, umas peras de Cartago, eu, já rapaz, um relógio do meu amigo Brás Cubas. Nossas mães eram religiosas e castas. Enfim, ele pensava, como eu, que tudo que existe é bom, e assim o demonstra no capítulo XVI, livro VII das Confissões, com a diferença que, para ele, o mal é um desvio da vontade, ilusão própria de um século atrasado, concessão ao erro, pois que o mal nem mesmo existe, e só a primeira afirmação é verdadeira; todas as cousas são boas, omnia bona, e adeus.

Adeus, ignaro. Não contes a ninguém o que te acabo de confiar, se não queres perder as orelhas. Cala-te, guarda, e agradece a boa fortuna de ter por amigo um grande homem, como eu, embora não me compreendas. Hás de compreender-me. Logo que tornar a Barbacena, dar-te-ei em termos explicados, simples, adequados ao entendimento de um asno, a verdadeira noção do grande homem. Adeus; lembranças ao meu pobre Quincas Borba. Não esqueças de lhe dar leite; leite e banhos; adeus, adeus... Teu do coração

QUINCAS BORBA

Rubião mal sustinha o papel nos dedos. Passados alguns segundos advertiu que podia ser um gracejo do amigo, e releu a carta; mas a segunda leitura confirmou a primeira impressão. Não havia dúvida; estava doudo. Pobre Quincas Borba! Assim, as esquisitices, a frequente alteração de humor, os ímpetos sem motivo, as ternuras sem proporção, não eram mais que prenúncios da ruína total do cérebro. Morria antes de morrer. Tão bom! Tão alegre! Tinha impertinências, é verdade, mas a doença explicava-as. Rubião enxugou os olhos úmidos de comoção. Depois veio a lembrança do possível legado, e ainda mais o afligiu, por lhe mostrar que bom amigo ia perder.

Quis ainda uma vez ler a carta, agora devagar, analisando as palavras, desconjuntando-as, para ver bem o sentido e descobrir se realmente era uma troça de filósofo. Aquele modo de o descompor brincando era conhecido; mas o resto confirmava a suspeita do desastre. Já quase no fim, parou enfiado. Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas? Rubião teve uma vertigem. Estava ainda com a carta aberta nas mãos, quando viu aparecer o doutor, que vinha por notícias do enfermo; o agente do correio dissera-lhe haver chegado uma carta. Era aquela?

- É esta, mas...

- Tem alguma comunicação reservada...?

- Justamente, traz uma comunicação reservada, reservadíssima; negócios pessoais. Dá licença?

Dizendo isto, Rubião meteu a carta no bolso; o médico saiu; ele respirou. Escapara ao perigo de publicar tão grave documento, por onde se podia provar o estado mental de Quincas Borba. Minutos depois, arrependeu-se, devia ter entregado a carta, sentiu remorsos, pensou em mandá-la à casa do médico. Chamou por um escravo; quando este acudiu, já ele mudara outra vez de ideia; considerou que era imprudência; o doente viria em breve – dali a dias –, perguntaria pela carta, argui-lo-ia de indiscreto, de delator... Remorsos fáceis, de pouca dura.

- Não quero nada - disse ao escravo. E outra vez pensou no legado. Calculou o algarismo. Menos de dez contos, não. Compraria um pedaço de terra, uma casa, cultivaria isto ou aquilo, ou lavraria ouro. O pior é se era menos, cinco contos... Cinco? Era pouco; mas, enfim, talvez não passasse disso. Cinco que fossem, era um arranjo menor, e antes menor que nada. Cinco contos... Pior seria se o testamento ficasse nulo. Vá, cinco contos!

CAPÍTULO XI

No começo da semana seguinte, recebendo os jornais da Corte (ainda assinaturas do Quincas Borba), leu Rubião esta notícia em um deles:

Faleceu ontem o Sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda nos há de chegar aqui um dia; é a moléstia do século. A última palavra dele foi que a dor era uma ilusão, e que Pangloss não era tão tolo como o inculcou Voltaire... Já então delirava. Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena.

CAPÍTULO XII

- Acabou de sofrer! - suspirou Rubião.

Em seguida, atentando na notícia, viu que falava de um homem que tinha apreço, consideração, a quem se atribuía uma peleja filosófica. Nenhuma alusão a demência. Ao contrário, o final dizia que ele delirara a última hora, efeito da moléstia. Ainda bem! Rubião leu novamente a carta, e a hipótese da troça pareceu outra vez mais verossímil. Concordou que ele tinha graça; com certeza, quis debicá-lo; foi a santo Agostinho, como iria a santo Ambrósio ou a santo Hilário, e escreveu uma carta enigmática, para confundi-lo, até voltar e rir-se do logro. Pobre amigo! Estava são - são e morto. Sim, já não padecia nada. Vendo o cachorro, suspirou:

- Coitado do Quincas Borba! Se pudesse saber que o senhor morreu...

Depois, consigo:

"Agora, que já acabou a obrigação, vou dá-lo à comadre Angélica".

A+
A-