Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO CLXXVI

Ao almoço, no dia seguinte, Teófilo recebeu uma carta por uma ordenança.

- Ordenança?

- Sim, senhor, diz que vem da parte do Sr. presidente do Conselho.

Teófilo abriu a carta, com a mão trêmula. Que podia ser? Tinha lido nos jornais a relação dos novos ministros; o gabinete estava completo. Não havia divergência de nomes. Que podia ser? D. Fernanda, defronte do marido, procurava ler-lhe no rosto o texto da carta. Via uma claridade; percebeu que a boca sofreava um sorriso de satisfação - de esperança, ao menos.

- Diga que espere - ordenou Teófilo ao criado.

Foi ao gabinete, e tornou minutos depois com a resposta. Sentou-se à mesa, calado, dando tempo a que o criado entregasse a carta à ordenança. Desta vez, como estava prevenido, ouviu as patas do cavalo, e logo depois a galope, rua fora, e sentiu-se bem.

- Lê - disse ele.

D. Fernanda leu a carta do presidente do Conselho; era um pedido para ir falar-lhe às duas horas da tarde.

- Mas então o ministério...?

- Está completo - deu-se pressa em dizer o deputado -; os ministros estão nomeados.

Não acreditava de todo o que dizia. Imaginava alguma vaga da última hora, e a necessidade urgente de a preencher.

- Há de ser alguma conferência política, ou talvez queira conversar sobre o orçamento – ou incumbir-me algum estudo.

Dizendo isto, para iludir a mulher, sentiu a probabilidade das hipóteses, e outra vez se abateu; mas, três minutos depois, as borboletas da esperança volteavam diante dele, não duas, nem quatro, mas um turbilhão, que cegava o ar.

CAPÍTULO CLXXVII

D. Fernanda esperou, cheia de ânsias, como se o ministério fosse para ela, e lhe viesse dar qualquer gosto, que não fosse amargo e complicado. Uma vez, porém, que satisfizesse o marido, tudo iria pelo melhor. Teófilo tornou às cinco horas e meia. Pelo aspecto reconheceu que vinha satisfeito. Correu a apertar-lhe as mãos.

- Que há?

- Pobre Nanã! Aí vamos com a trouxa às costas. O marquês pediu-me instantemente que aceitasse uma presidência de primeira ordem. Não podendo meter-me no gabinete, onde tinha lugar marcado, desejava, queria e pedia que eu partilhasse a responsabilidade política e administrativa do governo, assumindo uma presidência. Não podia, em nenhum caso, dispensar o meu prestígio (são palavras dele), e espera que na Câmara assuma o lugar de chefe de maioria. Que dizes?

- Que arranjemos a trouxa - respondeu D. Fernanda.

- Achas que podia recusar?

- Não.

- Não podia. Você sabe, não se podem negar serviços destes a um governo amigo; ou então deixa-se a política. Tratou-me muito bem o marquês; eu já sabia que era homem superior; mas que risonho e afável! Não imaginas. Quer também que compareça a uma reunião, os ministros e alguns amigos, poucos, meia dúzia. Confiou-me já o programa do gabinete, em reserva...

- Quando saímos?

- Não sei; hei de estar com ele amanhã, à noite. A reunião é amanhã às oito horas... Mas não te parece que fiz bem, aceitando?

- Decerto.

- Sim; se recusasse censurar-me-iam, e com razão. Em política a primeira cousa que se perde é a liberdade. Agora você é que, se quisesse, podia ficar; daqui a cinco meses - ou quatro -, abrem-se as câmaras; mal terei tempo de chegar e olhar.

CAPÍTULO CLXXVIII

D. Fernanda anuiu à proposta; não interrompia a educação do filho; era uma separação de quatro meses. Teófilo partiu daí a dias. Na manhã do dia do embarque, logo cedo, foi despedir-se do gabinete de trabalho. Deitou os últimos olhos aos livros, relatórios, orçamentos, manuscritos, a toda essa parte da família, que só tinha língua e interesse para ele. Havia atado os papéis e os folhetos para que se não extraviassem, e fez à mulher grandes recomendações. Parado no centro, circulou a vista pelas estantes, e dispersou a alma por todas elas. Despedia-se assim dos seus santos e amigos, com verdadeiras saudades. D. Fernanda, que estava ao pé dele, não viveu ali mais que os dez minutos da despedida. Teófilo viveu muitos anos.

- Deixa estar, eu cuidarei deles, eu mesma os espanarei todos os dias.

Teófilo deu-lhe um beijo... Outra mulher recebê-lo-ia triste, por ver que ele amava tanto os livros que parecia amá-los mais que a ela. Mas D. Fernanda sentiu-se venturosa.

CAPÍTULO CLXXIX

Rubião, desde o dia da crise ministerial, não tornou à casa de D. Fernanda; nada soube, nem da presidência, nem do embarque de Teófilo. Vivia entre o cão e um criado, sem grandes crises, nem longos repousos. O criado fazia o serviço irregularmente, comia gratificações, e recebia, amiúde, o título de marquês. Ao demais, divertia-se. Quando lhe dava ao amo para conversar com as paredes, o criado corria a espiá-lo; assistia ao diálogo, porque o Rubião incumbia-se das palavras delas, respondendo como se houvessem feito alguma pergunta. De noite, ia à palestra com os amigos da vizinhança.

- Como vai o gira?

- O gira vai bem. Hoje convidou o cachorro para cantar; o cachorro ladrou muito, e ele gostou que se pelou, mas assim um gosto de figurão. Ele, quando está de pancada, parece que é como quem governa o mundo. Ainda ontem, almoçando, disse para mim: "Marquês Raimundo... quero que tu..." e embrulhou o resto, que não entendi nada. No fim deu-me dez tostões.

- Você guardou logo...

- Ora!

Quando Rubião voltava do delírio, toda aquela fantasmagoria palavrosa tornava-se, por instantes, uma tristeza calada. A consciência, onde ficavam rastos do estado anterior, forcejava por despegá-los de si. Era como a ascensão dolorosa que um homem fizesse do abismo, trepando pelas paredes, arrancando a pele, deixando as unhas, para chegar acima, para não tombar outra vez e perder-se. Ia então à visita dos amigos, uns novos, outros velhos, como a gente do major e a do Camacho, por exemplo.

Este, desde algum tempo, era menos conversado. A mesma política não lhe dava matéria aos discursos de outrora. No escritório, quando via Rubião assomar à porta, fazia um gesto de impaciência, que sofreava logo; o outro notava essa mudança, e perdia-se em conjecturas, se lhe escapara alguma ofensa, por descuido – ou se começava a aborrecê-lo. E para desfazer o tédio ou o ressentimento, falava macio, risonho, abrindo longas pausas respeitosas, à espera que ele dissesse qualquer cousa. Em vão apelava para o marquês de Paraná, cujo retrato continuava a pender da parede; repetia os nomes que lhe ouvira - o grande marquês! O estadista consumado! Camacho ia apoiando de cabeça, e escrevendo sem parar, consultando os autos e os praxistas, Lobão, Coelho da Rocha, citando, riscando, pedindo-lhe desculpa. Tinha um libelo que dar naquele dia. Interrompia-se para ir à estante.

- Com licença...

Rubião arredava as pernas para deixá-lo passar, ele tirava um volume das Ordenações do Reino, e folheava, folheava, pulando adiante, voltando atrás, à toa, sem buscar nada, unicamente para o fim de despedir o importuno; mas o importuno ia ficando, por isso mesmo, e entreolhavam-se disfarçados. Camacho tornava ao libelo. Para ler, sentado, inclinava-se muito à esquerda, donde lhe vinha a luz, dando as costas ao Rubião.

- Aqui é escuro - aventurou Rubião um dia.

E não ouviu resposta, tão atento parecia o advogado na leitura dos autos. "Realmente, pode ser importunação", pensou o nosso amigo. Espreitava-lhe o rosto duro e sério, o gesto com que pegava da pena para continuar o interminável libelo. Vinte minutos mais de silêncio absoluto. No fim desse prazo, Rubião viu-o deixar a pena, retesar o busto, esticar os braços e passar as mãos pelos olhos. Disse-lhe com interesse:

- Cansado, não?

Camacho fez um gesto afirmativo, e preparou-se para continuar; então o nosso homem levantou-se e aproveitou o intervalo para dizer adeus.

- Voltarei, quando estiver menos atarefado.

Estendeu-lhe a mão; Camacho segurou-lha ao de leve, e tornou ao papel. Rubião desceu a escada, aturdido, magoado com a frieza do seu ilustre amigo. Que lhe teria feito?

CAPÍTULO CLXXX

Daquela vez, teve a fortuna de encontrar o major Siqueira.

- Ia agora mesmo à sua casa - disse-lhe -; vai para lá?

- Vou; mas já não estamos na mesma casa; mudamo-nos para os Cajueiros, rua da Princesa...

- Seja onde for, vamos.

Rubião precisava de um pedaço de corda que o atasse à realidade, porque o espírito sentia-se outra vez presa da vertigem. Entretanto, falou com tal acerto e propriedade, que o major o achou em pleno juízo, e disse-lhe:

- Sabe que tenho uma grande notícia que lhe dar?

- Vamos a ela.

- Há de ser quando chegarmos.

Chegaram. Era uma casa assobradada; D. Tonica veio abrir-lhes a cancela. Trazia um vestido novo e brincos.

- Olhe bem para ela - disse o major pegando na filha pelo queixo.

D. Tonica recuou envergonhada.

- Estou olhando - respondeu Rubião.

- Não se vê logo que é uma pessoa que vai casar?

- Ah! Parabéns!

- É verdade, vai casar. Custou, mas acertou. Achou por aí um noivo, que a adora, como todos eles; eu, quando fui noivo, adorei a minha defunta, que foi uma cousa nunca vista... Vai casar. Arranjou um noivo. Custou, mas acertou. Pessoa séria, meia-idade; vem aqui passar as noites. De manhã, quando passa para a repartição, creio que bate na janela, ou ela já o espera; eu finjo que não percebo...

D. Tonica dizia com a cabeça que não, mas sorrindo de modo que parecia dizer que sim. Estava tão buliçosa! Nem se lembrava já que requestara o Rubião, que este fora uma das últimas, e por fim a última das suas esperanças. Tinham entrado na sala; D. Tonica foi à janela, voltou, cabeça alta, andando à toa, reconciliada com a vida.

- Boa pessoa - repetiu o major -, boa criatura... Tonica, vai buscar o retrato... Anda, vai buscar o teu noivo...

D. Tonica foi buscar o retrato. Era uma fotografia; representava um homem de meia-idade, cabelo curto, raro, olhando espantado para a gente, cara chupada, pescoço fino e paletó abotoado.

- Que lhe parece?

- Muito bem.

D. Tonica recebeu o retrato e fitou-o alguns instantes; mas, tirou logo os olhos, e deixou-se estar sentada, enquanto a imaginação saiu a esperar o Rodrigues. Chamava-se Rodrigues. Era mais baixo que ela - cousa que o retrato não dava - e empregado em uma repartição do Ministério da Guerra. Viúvo, com dous filhos, um que estava no batalhão dos menores, outro que era tuberculoso - doze anos -, condenado à morte. Que importa? Era o noivo; todas as noites, ao recolher-se, D. Tonica ajoelhava-se ante a imagem de Nossa Senhora, sua madrinha, agradecia-lhe o favor e pedia-lhe que a fizesse feliz. Sonhava já com um filho; havia de chamar-lhe Álvaro.

CAPÍTULO CLXXXI

Rubião escutou calado um discurso do major. O casamento era dali a mês e meio; o noivo tinha que perfazer os arranjos da casa, não era capitalista, vivia do ordenado e recorrera a empréstimos. A casa era a mesma e não exigia trastes novos nem ricos; mas há sempre algumas necessidades... Em suma, dali a mês e meio, ou pelo menos, cinco semanas, estariam unidos pelos santos laços do matrimônio.

- E fico eu livre do trambolho - concluiu o major.

- Oh! - protestou Rubião.

A filha ria-se; estava acostumada às graças do pai, e tão disposta à alegria que nada a vexava; ainda mesmo que o pai se referisse aos seus quarenta anos passados não lhe daria grande golpe. Todas as noivas têm quinze anos.

- Verá como ele há de procurá-la depois, com saudades - disse Rubião a D. Tonica.

- Qual! Talvez eu me case também!

Rubião levantou-se repentino, e deu alguns passos; o major não viu a expressão do rosto, não percebeu que o espírito do homem ia talvez descarrilhar, e que ele mesmo o pressentia. Disse-lhe que se sentasse, e contou-lhe os seus tempos de casado e de campanha. Quando chegou à narração da batalha de Monte-Caseros, com as marchas e contramarchas próprias do seu discurso, tinha diante de si Napoleão III. Calado a princípio, Rubião proferiu algumas palavras de aplauso, citou Solferino e Magenta, prometeu ao Siqueira uma condecoração. Pai e filha entreolharam-se; o major disse que vinha muita chuva. Com efeito, escurecera um pouco. Era melhor que Rubião fosse, antes de cair água; não trouxera guarda-chuva, o dele era velho e único...

- Aí vem o meu coche - redarguiu Rubião tranquilamente.

- Não vem, foi esperá-lo no Campo. Não vês daí o coche, Tonica?

D. Tonica fez um gesto vago e sem vontade. Não queria mentir, mas tinha medo, e desejava que Rubião saísse. Da casa era impossível ver o campo da Aclamação. Já então o pai pegava no Rubião pelo braço e o encaminhava para a porta.

- Volte amanhã, depois, quando quiser.

- Mas por que não hei de esperar aqui até que venha o coche? - perguntou Rubião -. A imperatriz não pode apanhar chuva...

- A imperatriz já foi.

- Fez mal. Eugênia fez muito mal. General... Para que há de o senhor ficar sempre em major? General, vi o retrato do seu genro; quero dar-lhe o meu. Mande às Tulherias. Onde está o coche?

- Está no Campo, esperando.

- Mande chamá-lo.

D. Tonica, que estava à janela, disse para dentro:

- Lá vem Rodrigues.

E tornou a olhar para a rua, inclinando-se, sorrindo, enquanto na sala o pai continuava a guiar o Rubião para a porta, sem violência, mas tenaz. Este parava, repreendia:

- General, sou seu imperador!

- Decerto, mas acompanhe-me Vossa Majestade...

Tinham chegado à porta; o major abriu a cancela, justamente quando o Rodrigues punha o pé na soleira. D. Tonica entrou para receber o noivo, mas a porta estava atravancada com o pai e Rubião. Rodrigues tirou o chapéu, mostrando o cabelo, áspero e grisalho; tinha nas faces chupadas umas pintinhas de sarda, mas o riso era bom e humilde - mais humilde ainda que bom - e, não obstante a trivialidade do gesto e da pessoa, era agradável. Os olhos não mostravam o espanto da fotografia; este efeito provinha da ênfase que ele pôs em todo o corpo, a fim de que o retrato saísse bonito.

- Este senhor é o meu futuro genro - disse o major a Rubião -. Não é verdade que viu no Campo um coche e um esquadrão de cavalaria? - perguntou ao Rodrigues, piscando um olho.

- Parece que sim, senhor.

- Pois então? - continuou Siqueira, voltando-se para Rubião -. Vá, vá, dobre a rua de São Lourenço, e caminhe direito para o Campo. Adeus, até amanhã.

Rubião desceu três degraus - eram cinco - e parou diante do recém-chegado, fitou-o alguns instantes e declarou que estimava muito conhecê-lo, que fosse bom esposo e bom genro. Como se chamava?

- João José Rodrigues.

- Rodrigues. Hei de mandar-lhe uma fitinha aqui para a casaca. É o meu presente de núpcias. Lembre-me, Siqueira.

Siqueira pegou-lhe no braço para fazê-lo descer os dous últimos degraus, e pô-lo na rua.

- No Campo, dizes tu?

- No Campo.

- Adeus.

Da rua, ainda Rubião olhou para as janelas, com os dedos no chapéu, a fim de cumprimentar D. Tonica; mas D. Tonica estava na sala, onde Rodrigues acabava de entrar, fresco e delicioso, como a primeira rosa de verão.

CAPÍTULO CLXXXII

Rubião não cuidou mais do coche nem do esquadrão de cavalaria. Foi dar consigo abaixo, andou por várias ruas, até que subiu pela de São José. Desde o paço imperial, vinha gesticulando e falando a alguém que supunha trazer pelo braço, e era a imperatriz. Eugênia ou Sofia? Ambas em uma só criatura - ou antes a segunda com o nome da primeira. Homens que iam passando paravam; do interior das lojas corria gente às portas. Uns riam-se, outros ficavam indiferentes; alguns, depois de verem o que era, desviavam os olhos para poupá-los à aflição que lhes dava o espetáculo do delírio. Uma turba de moleques acompanhava o Rubião, alguns tão próximos, que lhe ouviam as palavras. Crianças de toda a sorte vinham juntar-se ao grupo. Quando eles viram a curiosidade geral, entenderam dar voz à multidão, e começou a surriada:

- Ó gira! Ó gira!

Esse vozear chamou a atenção de outras pessoas, muitas janelas dos sobrados começaram a abrir-se, apareceram curiosos de ambos os sexos e todas as idades, um fotógrafo, um estofador, três e quatro figuras juntas, cabeças por cima de outras, todas inclinadas, espiando, acompanhando o homem, que falava à parede, com o seu gesto cheio de grandeza e de obséquio.

- Ó gira! Ó gira! - berravam os vadios.

Um deles, muito menor que todos, apegava-se às calças de outro, taludo. Era já na rua da Ajuda. Rubião continuava a não ouvir nada; mas, de uma vez que ouviu, supôs que eram aclamações, e fez uma cortesia de agradecimento. A surriada aumentava. No meio do rumor, distinguiu-se a voz de uma mulher à porta de uma colchoaria:

- Deolindo! Vem para casa, Deolindo!

Deolindo, a criança que se agarrava às calças da outra mais velha, não obedeceu; pode ser que nem ouvisse, tamanha era a grita, e tal a alegria do pequerrucho, clamando com a vozinha miúda:

- Ó gira! Ó gira!

- Deolindo!

Deolindo tratou de esconder-se entre os outros, para escapar às vistas da mãe, que o chamava; esta, porém, correu ao grupo, e arrancou-o de lá. Em verdade, era pequeno demais para andar em tumultos de rua.

- Mamãe, deixa eu ver...

- Qual ver! Anda!

Meteu-o em casa, e ficou à porta, a olhar para a rua. Rubião estacara o passo; ela pôde vê-lo bem, com os seus gestos e palavras, o peito alto, e uma barretada que deu em volta.

- Os malucos têm graça, às vezes - disse ela sorrindo a uma vizinha.

Os rapazes continuavam a bradar e a rir, e Rubião foi andando, com o mesmo coro atrás de si. Deolindo, à porta da loja, vendo o grupo alongar-se, pedia chorosamente à mãe que o deixasse ir também, ou então que o levasse. Quando perdeu as esperanças, enfeixou todas as energias em um só gritozinho esganiçado:

- Ó gira!

CAPÍTULO CLXXXIII

A vizinha riu-se. A mãe riu-se também. Confessou que o filho era uma pestezinha, um endiabrado, que não sossegava; não podia perdê-lo de vista. Qualquer distração, estava na rua. E isto desde pequenino; tinha ainda dous anos, quando escapou de morrer embaixo de um carro, ali mesmo; esteve por um fio. Se não fosse um homem que passava, um senhor bem vestido, que acudiu depressa, até com perigo de vida, estaria morto e bem morto. Nisto o marido, que vinha pela calçada oposta, atravessou a rua, e interrompeu a conversação. Trazia o cenho carregado, mal cumprimentou a vizinha, e entrou; a mulher foi ter com ele. Que era? O marido contou a surriada.

- Passou por aqui - disse ela.

- Não conheceste o homem?

- Não.

O marido cruzou os braços e ficou a olhar, fixo, calado. A mulher perguntou-lhe quem era.

- É aquele homem que nos salvou o Deolindo da morte.

A mulher estremeceu.

- Viste bem? - perguntou.

- Perfeitamente. Se eu já o tinha encontrado outras vezes, mas então não estava assim. Coitado! E a molecada berrava atrás dele. Qual! Não há polícia nesta terra.

O que lhe doía à mulher não era tanto o mal do homem, nem ainda a surriada; mas a parte que teve nesta o filho - a mesma criança que o homem salvara da morte. Realmente, como podia o menino reconhecê-lo, nem saber que lhe devia a vida? Doía-lhe o encontro, a coincidência. Afinal, contentou-se de pôr todas as culpas em si. Se tivesse tido mais cuidado, o pequeno não haveria saído, e não entraria na troça. Tremia de quando em quando, e estava inquieta. O marido pegou na cabeça do filho, e deu-lhe dous beijos.

- Você viu a cena toda? - perguntou à mulher.

- Vi.

- Eu ainda quis dar o braço ao homem, e trazê-lo para aqui; mas, tive vergonha; os moleques eram capazes de dar-me uma vaia. Desviei o rosto, porque ele podia conhecer-me. Coitado! Nota que não parecia ouvir nada, e seguia satisfeito, creio que até ria... Que triste cousa que é perder o juízo!

A mulher pensava na travessura do filho; não a referiu ao marido, pediu à vizinha que não aludisse a ela, e, de noite, só pregou olho tarde. Metera-se-lhe em cabeça que, anos depois, o filho endoudecia, era castigado pela mesma troça, e que ela cuspia para o céu, indignada, blasfemando.

A+
A-