Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO CLXI

Sofia resignou-se à reclusão. Já agora tinha a alma tão confusa e difusa como o espetáculo exterior. Todas as imagens e nomes perdiam-se no mesmo desejo de amar. É justo dizer que ela, quando regressava desses estados de consciência vagos e obscuros, tentava fugir-lhes e guiava o espírito para diverso assunto; mas sucedia-lhe como aos que têm sono e forcejam por velar: os olhos fecham-se de cada vez que espertam, e tornam a espertar para se fecharem outra vez. Afinal, deixou a vista da chuva e do nevoeiro; estava cansada, e para repousar foi abrir as folhas do último número da Revista dos Dous Mundos. Um dia, no melhor dos trabalhos da comissão das Alagoas, perguntara-lhe uma das elegantes do tempo, casada com um senador:

- Está lendo o romance de Feuillet, na Revista dos Dous Mundos?

- Estou, acudiu Sofia; é muito interessante.

Não estava lendo, nem conhecia a Revista; mas, no dia seguinte pediu ao marido que a assinasse; leu o romance, leu os que saíram depois, e falava de todos os que lera ou ia lendo. Abertas as folhas daquele número, e acabada uma novela, Sofia recolheu-se ao quarto e atirou-se à cama. Passara mal a noute, não lhe custou pegar no sono - profundo, largo e sem sonhos -, exceto para o fim, em que teve um pesadelo. Estava diante da mesma parede de cerração daquele dia, mas no mar, à proa de uma lancha, deitada de bruços, escrevendo com o dedo na água um nome - Carlos Maria. E as letras ficavam gravadas, e para maior nitidez, tinham os sulcos de espuma. Até aqui nada havia que atordoasse, a não ser o mistério; mas é sabido que os mistérios dos sonhos parecem fatos naturais. Eis que a parede da cerração se rasga, e nada menos que o próprio dono do nome aparece aos olhos de Sofia, caminha para ela, toma-a nos braços e diz-lhe muitas palavras de ternura, análogas às que ela, alguns meses antes, ouvira ao Rubião. E não a afligiram, como as deste; ao contrário, escutou-as com prazer, meia caída para trás, como se desmaiasse. Já não era lancha, mas carruagem, onde ela se ia com o primo, mãos presas, namorada de uma linguagem de ouro e sândalo. Também aqui não há que aterre. O terror veio quando a carruagem parou, muitos vultos mascarados a cercaram, mataram o cocheiro, arrancaram as portinholas, apunhalaram Carlos Maria e deitaram o cadáver ao chão. Depois, um deles, que parecia ser o chefe de todos, tomou o lugar do defunto, tirou a máscara e disse a Sofia que se não assustasse, que ele a amava cem mil vezes mais que o outro. Logo em seguida, pegou-lhe nos pulsos e deu-lhe um beijo, mas um beijo úmido de sangue, cheirando a sangue. Sofia soltou um grito de horror e acordou. Tinha ao pé do leito o marido.

- Que foi? - perguntou ele.

- Ah! - respirou Sofia -. Gritei, não gritei?

Palha não respondeu nada; olhava à toa, pensava em negócios. Então um receio assaltou a mulher, se haveria efetivamente falado, murmurado alguma palavra, um nome qualquer - o mesmo que escrevera na água. E logo, espreguiçando os braços para o ar, fê-los cair sobre os ombros do marido, cruzou as pontas dos dedos na nuca, e murmurou meio alegre, meio triste:

- Sonhei que estavam matando você.

Palha ficou enternecido. Havê-la feito padecer por ele, ainda que em sonhos, encheu-o de piedade, mas de uma piedade gostosa, um sentimento particular, íntimo, profundo - que o faria desejar outros pesadelos, para que o assassinassem aos olhos dela, e para que ela gritasse angustiada, convulsa, cheia de dor e de pavor.

CAPÍTULO CLXII

No dia seguinte, o sol apareceu claro e quente, o céu, límpido, e o ar, fresco. Sofia meteu-se no carro e saiu a visitas e a passeio para desforrar-se da reclusão. Já o próprio dia lhe fez bem. Vestiu-se cantarolando. O trato das senhoras que a receberam em suas casas - e das que achou na rua do Ouvidor -, a agitação externa, as notícias da sociedade, a boa feição de tanta gente fina e amiga bastaram a espancar-lhe da alma os cuidados da véspera.

CAPÍTULO CLXIII

Assim, pois, o que parecia vontade imperiosa reduzia-se a veleidade pura, e, com algumas horas de intervalo, todos os maus pensamentos se recolheram às suas alcovas. Se me perguntardes por algum remorso de Sofia, não sei que vos diga. Há uma escala de ressentimento e de reprovação. Não é só nas ações que a consciência passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor à indiferença. Os simples pecados de pensamentos são sujeitos a essa mesma alteração, e o uso de cuidar nas cousas afeiçoa tanto a elas, que, afinal, o espírito não as estranha, nem as repele. E nestes casos há sempre um refúgio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem mácula.

CAPÍTULO CLXIV

Um só incidente afligiu Sofia naquele dia puro e brilhante - foi um encontro com Rubião. Tinha entrado em uma livraria da rua do Ouvidor para comprar um romance; enquanto esperava o troco, viu entrar o amigo. Rapidamente voltou o rosto e percorreu com os olhos os livros da prateleira - uns livros de anatomia e de estatística -; recebeu o dinheiro, guardou-o, e, de cabeça baixa, rápida como uma flecha, saiu à rua, e enfiou para cima. O sangue só lhe sossegou, quando a rua dos Ourives ficou para trás.

Dias depois, indo a entrar em casa de D. Fernanda, deu com ele no saguão. Cuidou que subisse, e dispôs-se a subir também, ainda que receosa; mas Rubião descia, apertaram-se as mãos familiarmente, e despediram-se até à tarde.

- Ele vem aqui muitas vezes? - perguntou Sofia a D. Fernanda depois de lhe contar o encontro no saguão.

- Esta é a quarta vez, quarta ou quinta; mas só da segunda vez apareceu delirando. Das outras é como viu agora, sossegado, e até conversador. Há nele sempre alguma cousa que mostra não estar completamente bem. Não reparou nos olhos, um pouco vagos? É isso; no mais, conversa bem. Creia, D. Sofia; aquele homem pode sarar. Por que não faz com que seu marido tome isto a peito?

- Cristiano tem projeto de o mandar examinar e tratar; mas, deixe estar que eu o apresso.

- Pois sim. Ele parece ser muito amigo da senhora e do Sr. Palha.

"Ter-lhe-á dito alguma inconveniência no delírio, a meu respeito?", pensou Sofia. "Convirá revelar-lhe a verdade?"

Concluiu que não; o próprio mal do Rubião explicaria as inconveniências. Prometeu que apressaria o marido, e nessa mesma tarde expôs o negócio ao Palha.

- É uma grande amolação - redarguiu este.

E perguntou que interesse tinha D. Fernanda em tornar àquele negócio. Que o tratasse ela mesma! Era uma atrapalhação ter de cuidar do outro, de o acompanhar, e, provavelmente, de recolher e gerir algum resto de dinheiro que ainda houvesse, fazendo-se curador como dissera o Dr. Teófilo. Um aborrecimento de todos os diabos.

- Já ando com grande carga sobre mim, Sofia. E depois como há de ser? Havemos de trazê-lo para casa? Parece que não. Metê-lo onde? Em alguma casa de saúde... Sim, mas se não puderem aceitá-lo? Não hei de mandá-lo para a Praia Vermelha... E as responsabilidades? Você prometeu que me falaria?

- Prometi, e afirmei que você faria isto - respondeu Sofia sorrindo -. Talvez não custe tanto como parece.

Sofia insistiu ainda. A compaixão de D. Fernanda tinha-a impressionado muito; achou-lhe um quê distinto e nobre, e advertiu que se a outra, sem relações estreitas nem antigas com Rubião, assim se mostrava interessada, era de bom-tom não ser menos generosa.

CAPÍTULO CLXV

Tudo se fez sossegadamente. Palha alugou uma casinha na rua do Príncipe, cerca do mar, onde meteu o nosso Rubião, alguns trastes, e o cachorro amigo. Rubião adotou a mudança sem desgosto, e, desde que lhe tornou o delírio, com entusiasmo. Estava nos seus paços de Saint-Cloud.

Não sucedeu assim aos amigos da casa, que receberam a notícia da mudança como um decreto de exílio. Tudo na antiga habitação fazia parte deles, o jardim, a grade, os canteiros, os degraus de pedra, a enseada. Traziam tudo de cor. Era entrar, pendurar o chapéu, e ir esperar na sala. Tinham perdido a noção da casa alheia e do obséquio recebido. Depois, a vizinhança. Cada um daqueles amigos do Rubião estava afeito a ver as pessoas do lugar, as caras da manhã, e as da tarde, alguns chegavam a cumprimentá-las, como aos seus próprios vizinhos. Paciência! Iriam agora para Babilônia, como os desterrados de Sião. Onde quer que estivesse o Eufrates, achariam salgueiros em que pendurassem as harpas saudosas - ou mais propriamente, cabides em que pusessem os chapéus. A diferença entre eles e os profetas é que, ao cabo de uma semana, pegariam outra vez dos instrumentos, e os tangeriam com a mesma graça e força; cantariam os velhos hinos, tão novos como no primeiro dia, e Babel acabaria por ser a mesma Sião, perdida e resgatada.

- O nosso amigo precisa de repouso por algum tempo - disse-lhes o Palha, em Botafogo, na véspera da mudança -. Hão de ter reparado que não anda bom; tem suas horas de esquecimento, de transtorno, de confusão, vai tratar-se, por enquanto é preciso que descanse. Arranjei-lhe uma casa pequena, mas pode ser que, ainda assim, passe para um estabelecimento de saúde.

Ouviram atônitos. Um deles, o Pio, voltando a si mais depressa que os outros, respondeu que há mais tempo se devia ter feito aquilo; mas para fazê-lo, era preciso ter influência decisiva no ânimo de Rubião.

- Muitas vezes lhe disse, por boas maneiras, que era indispensável consultar um médico, por me parecer que tinha alguma cousa no estômago... Era um modo de desviar o sentido, compreende? Mas ele respondia sempre que não tinha nada, digeria bem... "Mas come menos, dizia-lhe eu; há dias em que não come quase nada; está mais magro, um pouco amarelo..." Compreende que não podia dizer-lhe a verdade. Cheguei a consultar um médico, meu amigo; mas o nosso bom Rubião não o quis receber.

Os outros quatro iam confirmando de cabeça toda aquela invenção; era o mais que se lhes podia pedir e tudo o que lhes consentia o atordoamento do golpe. Acabaram perguntando o número da nova casa, para irem saber dele. Pobre amigo! Quando se arrancaram dali, e se despediram uns dos outros, deu-se um fenômeno com que não contavam; é que eles mesmos mal podiam separar-se. Não que os ligasse amizade nem estima; o próprio interesse os fazia antipáticos. Mas o costume de se verem todos os dias, ao almoço e ao jantar, à mesma mesa, como que os tinha fundido uns nos outros; a necessidade os fez suportáveis, o tempo os tornou mutuamente precisos. Em resumo, eram os olhos de cada um que iam padecer com a ausência das caras de uso, do gesto, das suíças, dos bigodes, da calva, dos sestros particulares, do modo de comer, de falar e de estar dos companheiros. Era mais que separação, era desarticulação.

CAPÍTULO CLXVI

Rubião notou que eles não o acompanharam à casa nova, e mandou-os chamar; nenhum veio, e a ausência encheu de tristeza o nosso amigo - durante as primeiras semanas. Era a família que o abandonava. Rubião procurou recordar se lhes fizera algum mal, por obra ou por palavra, e não achou nada.

CAPÍTULO CLXVII

- Conversei com o homem; achei-lhe ideias delirantes. Conquanto não seja alienista, acho que pode ficar bom... Mas quer saber uma descoberta interessante?

- Crê que fique bom? - disse D. Fernanda, sem atender à pergunta do Dr. Falcão.

Era deputado o Dr. Falcão, deputado e médico, amigo da casa, varão sabedor, céptico e frio. D. Fernanda tinha-lhe pedido o favor de examinar o Rubião, pouco depois que este se transportou para a casa da rua do Príncipe.

- Sim, creio que fique bom, desde que seja regularmente tratado. Pode ser que a doença não tenha antecedentes na família. Mande ver um especialista. Mas não quer saber a minha interessante descoberta?

- Qual é?

- Talvez tenha parte na moléstia uma pessoa sua conhecida - respondeu ele sorrindo.

- Quem?

- D. Sofia.

- Como assim?

- Ele falou-me dela com entusiasmo, disse-me que era a mais esplêndida mulher do mundo, e que a nomeara duquesa, por não poder nomeá-la imperatriz; mas que não brincassem com ele, que era capaz de fazer como o tio, divorciar-se e casar com ela. Concluí que terá tido paixão pela moça; e depois a intimidade, Sofia para aqui, Sofia para ali... Desculpe-me, mas eu creio que os dous se amaram...

- Oh! Não!

- D. Fernanda, creio que se amaram. Que admira? Eu mal a conheço; a senhora parece que não a conhece há muito tempo, nem viveu na intimidade dela. Pode ser que se tivessem amado, e que alguma paixão violenta... Suponhamos que ela o mandasse pôr fora de casa... É verdade que tem a mania das grandezas; mas tudo se pode juntar...

D. Fernanda não olhava para ele, vexada de lhe ouvir aquela suposição; evitava discuti-la pelo melindre do assunto. Achava a suspeita sem fundamento, absurda, inverossímil; não chegaria a crer naquele amor espúrio, ainda que o ouvisse ao próprio Rubião. Um desvairado, em suma. Quando o não fosse, é ainda provável que lhe não desse fé. Sim, não lhe daria fé. Não podia crer que Sofia houvesse amado aquele homem, não por ele, mas por ela, tão correta e pura. Era impossível. Quis defendê-la; mas, apesar da intimidade do Dr. Falcão, recuou segunda vez do assunto, e repetiu a pergunta de há pouco:

- Parece-lhe então que ele pode ficar bom?

- Pode, mas não basta o meu exame. A senhora sabe que, nestas cousas, é melhor um especialista.

Pouco depois, saindo à rua, Falcão sorria da resistência de D. Fernanda em aceitar a sua hipótese. "Com certeza, houve alguma cousa", dizia ele consigo; "boa cara, e, se não é um petimetre, é apessoado, e tem fogo nos olhos. Com certeza..." E repetia algumas frases de Rubião, evocava o gesto e a modulação terna da voz, e cada vez mais se lhe ia agravando a suspeita. "Com certeza..." Era já impossível que se não tivessem amado; a oposição de D. Fernanda parecia-lhe ingênua - se não era antes um recurso para desconversar e não tocar na matéria. Havia de ser isso...

Neste ponto, sem querer, o deputado estacou. Uma suspeita nova assaltara-lhe o espírito. Após alguns instantes rápidos, abanou a cabeça voluntariamente, como a desmentir-se, como a achar-se absurdo, e foi andando. Mas a suspeita era teimosa, e a que ocupa deveras o interior do homem não faz caso da cabeça nem dos seus gestos. "Quem sabe se D. Fernanda não suspirou também por ele? Essa dedicação não seria um prolongamento de amor, etc.?" E assim foram nascendo perguntas, que achavam no íntimo do Dr. Falcão resposta afirmativa. Resistiu ainda, era amigo da casa, tinha respeito a D. Fernanda, conhecia-a honesta; mas - ia pensando - bem podia ser que um sentimento oculto, recatado - quem sabe até se provocado pela mesma paixão da outra...? Há dessas tentações. O contágio da lepra corrompe o mais puro sangue; um triste bacilo destrói o mais robusto organismo.

Pouco a pouco, as veleidades de resistência foram cedendo à noção da possibilidade, da probabilidade e da certeza. Em verdade, tinha notícia de algumas obras de caridade de D. Fernanda; mas aquele caso era novo. Essa dedicação especial a um homem que não era familiar da casa, nem velho amigo, nem parente, aderente, colega do marido, qualquer cousa que o fizesse partícipe da vida doméstica, pelas relações, pelo sangue ou pelo costume, não era explicável sem algum motivo secreto. Amor, seguramente; curiosidade de mulher honesta, que pode descambar no vício e no remorso. Aquela teria recuado a tempo; ficou-lhe a simpatia mórbida... E daí, quem sabe?

CAPÍTULO CLXVIII

"E daí, quem sabe?", repetiu o Dr. Falcão na manhã seguinte. A noite não apagara a desconfiança do homem. "E daí, quem sabe?" Sim, não seria só simpatia mórbida. Sem conhecer Shakespeare, ele emendou Hamlet: "Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã filantropia". Ali andou dedo de amor. E não chasqueava nem lastimava nada. Já disse que era céptico; mas, como era também discreto, não transmitiu a ninguém a sua conclusão.

CAPÍTULO CLXIX

A volta de Carlos Maria e da mulher interrompeu as preocupações de D. Fernanda, relativamente a Rubião. Esta foi a bordo recebê-los, conduziu-os à Tijuca, onde um velho amigo da família de Carlos Maria alugara e trastejara uma casa, por ordem dele. Sofia não foi a bordo; mandou o coupé esperá-los no cais Pharoux, mas D. Fernanda já ali tinha uma caleça, que os levou, e mais a ela e ao Palha. De tarde, Sofia foi visitar os recém-chegados.

D. Fernanda não cabia em si de contente. As cartas de Maria Benedita os davam por felizes; ela não pôde ler desde logo nos olhos e nas maneiras do casal a confirmação do escrito. Pareciam satisfeitos. Maria Benedita não reteve as lágrimas, quando abraçou a amiga nem esta, as suas, e ambas se apertaram como duas irmãs de sangue. No dia seguinte, D. Fernanda perguntou a Maria Benedita se ela e o marido eram felizes, e, sabendo que sim, pegou-lhe nas mãos e fitou-a longamente sem achar palavra. Não logrou mais que repetir a pergunta:

- Vocês são felizes?

- Somos - respondia Maria Benedita.

- Não sabe que bem me faz a sua resposta. Não é só porque eu teria remorsos, se vocês não tivessem a felicidade que eu imaginei dar-lhes, mas também porque é bem bom ver os outros felizes. Ele gosta de você como no primeiro dia?

- Creio que mais, porque eu o adoro.

D. Fernanda não entendeu esta palavra. Creio que mais, porque eu o adoro! Em verdade, a conclusão não parecia estar nas premissas; mas era o caso de emendar outra vez Hamlet: "Há entre o céu e a terra, Horácio, muitas cousas mais do que sonha a vossa vã dialética." Maria Benedita começou a contar-lhe a viagem, a desfiar as suas impressões e reminiscências; e, como o marido viesse ter com elas, pouco depois, recorria à memória dele para preencher as lacunas.

- Como foi, Carlos Maria?

Carlos Maria lembrava, explicava, ou retificava, mas sem interesse, quase impaciente. Adivinhara que Maria Benedita acabava de confiar à outra as suas venturas, e mal podia encobrir o efeito desagradável que isto lhe trazia. Para que dizer que era feliz com ele, se não podia ser outra cousa? E por que divulgar os seus carinhos e palavras, as suas misericórdias de deus grande e amigo?

A volta ao Rio de Janeiro foi uma condescendência sua. Maria Benedita queria ter aqui o filho; o marido cedeu - a custo, mas cedeu. A custo, por quê? É difícil explicá-lo, não menos que entendê-lo. Relativamente à maternidade, Carlos Maria tinha ideias pessoais e singulares, recônditas, não confiadas a ninguém. Achava impudica a natureza em fazer da gestação humana um fenômeno público, franco às vistas, crescente até ao aleijão, sugestivo até ao desrespeito. Daí vinha o desejo da solidão, do mistério e da ausência. Viveria de boa mente os últimos tempos no interior de uma casa única, posta no alto de um morro, vedada ao mundo, donde a mulher baixasse um dia com o filho nos braços e a divindade nos olhos.

Não fez sobre isto nenhuma proposta à mulher. Teria de discutir, e ele não gostava de discutir; preferia ceder. Maria Benedita tinha naturalmente o sentimento contrário: considerava-se a si mesma um templo divino e recatado, em que vivia um deus, filho de outro deus. A gestação ia cheia de tédios, de dores, de incômodos que ela ocultava o mais que podia ao marido; mas tudo isso dava maior preço à criaturinha futura. Acolhia o mal com resignação - se não é que o agasalhava com alegria -, uma vez que era a condição da vinda do fruto. Fazia cordialmente o ofício da espécie. E repetia sem palavras a resposta de Maria de Nazaré: "Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim a sua vontade".

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