Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO CXLI

- Está dito, vamos amanhã - repetiu Rubião, que espreitava o rosto aceso de Sofia.

Mas o corcel viera fatigado da carreira, e deixou-se estar sonolento na cavalariça. Sofia era já outra; passara a vertigem da empresa, o ardor sonhado, o gosto de subir com ele a estrada da Tijuca. Dizendo-lhe Rubião que pediria ao marido que a deixasse ir ao passeio, redarguiu sem alma:

- Está tonto! Fica para o domingo que vem!

E fixou os olhos no trabalho de linha que fazia - frioleira é o nome - enquanto Rubião voltava os seus para um trechozinho de jardim mofino, ao pé da saleta de trabalho onde estavam. Sofia, sentada no ângulo da janela, ia meneando os dedos. Rubião viu em duas rosas vulgares uma festa imperial, e esqueceu a sala, a mulher e a si. Não se pode dizer, ao certo, que tempo estiveram assim calados, alheios e remotos um do outro. Foi uma criada que os despertou, trazendo-lhes café. Bebido o café, Rubião concertou as barbas, tirou o relógio e despediu-se. Sofia, que espreitava a saída, ficou satisfeita, mas encobriu o gosto com o espanto.

- Já!

- Devo estar com um sujeito antes das quatro horas - explicou Rubião -. Estamos entendidos; passeio de amanhã gorado. Vou mandar desavisar os cavalos. Mas será certo no domingo que vem?

- Certo, certo, não posso afirmar; mas resolvendo-se em tempo o Cristiano, creio que sim. Sabe que meu marido é o homem dos impedimentos.

Sofia acompanhou-o até à porta, estendeu-lhe a mão indiferente, respondeu sorrindo alguma cousa chocha, tornou à salinha em que estivera – ao mesmo ângulo – da mesma janela. Não continuou logo o trabalho, pôs uma perna sobre outra, fazendo descer, por hábito, a saia do vestido, e lançou uma olhada ao jardim, onde as duas rosas tinham dado ao nosso amigo uma visão imperial. Sofia não viu mais que duas flores mudas. Fitou-as, não obstante, algum tempo; em seguida, pegou da frioleira, trabalhou um pouco, deteve-se outro pouco, deixando as mãos no regaço; e voltou à obra, outra vez, para tornar a deixá-la. De repente, levantou-se e atirou as linhas e a navette à cestinha de junco, onde guardava os seus petrechos de trabalho. A cesta era ainda uma lembrança de Rubião!

- Que homem aborrecido!

Dali foi encostar-se à janela, que dava para o jardim mofino, onde iam murchando as duas rosas vulgares. Rosas, quando recentes, importam-se pouco ou nada com as cóleras dos outros; mas, se definham, tudo lhes serve para vexar a alma humana. Quero crer que este costume nasce da brevidade da vida. "Para as rosas", escreveu alguém, "o jardineiro é eterno." E que melhor maneira de ferir o eterno que mofar das suas iras? Eu passo, tu ficas; mas eu não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a donzelas, fui letra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio arbusto, e todas as mãos, e todos os olhos me trataram e me viram com admiração e afeto. Tu não, ó eterno; tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te! A tua eternidade não vale um só dos meus minutos.

Assim, quando Sofia chegou à janela que dava para o jardim, ambas as rosas riram-se a pétalas despregadas. Uma delas disse que era bem feito! Bem feito! Bem feito!

- Tens razão em te zangares, formosa criatura - acrescentou -, mas há de ser contigo, não com ele. Ele que vale? Um triste homem sem encantos, pode ser que bom amigo, e talvez generoso, mas repugnante, não? E tu, requestada de outros, que demônio te leva a dar ouvidos a esse intruso da vida? Humilha-te, ó soberba criatura, porque és tu mesma a causa do teu mal. Tu juras esquecê-lo, e não o esqueces. E é preciso esquecê-lo? Não te basta fitá-lo, escutá-lo, para desprezá-lo? Esse homem não diz cousa nenhuma, ó singular criatura, e tu...

- Não é tanto assim - interrompeu a outra rosa, com a voz irônica e descansada -; ele diz alguma cousa, e di-la desde muito sem desaprendê-la, nem trocá-la; é firme, esquece a dor, crê na esperança. Toda a sua vida amorosa é como o passeio à Tijuca, de que vocês conversavam há pouco: "Fica para o domingo que vem!" Eia, piedade ao menos; sê piedosa, ó boníssima Sofia! Se hás de amar a alguém, fora do matrimônio, ama-o a ele, que te ama e é discreto. Anda, arrepende-te do gesto de há pouco. Que mal te fez ele, e que culpa lhe cabe se és bonita? E quando haja culpa, a cesta é que a não tem, só porque ele a comprou, e menos ainda as linhas e a navette que tu mesma mandaste comprar pela criada. Tu és má, Sofia, és injusta...

CAPÍTULO CXLII

Sofia deixou-se estar ouvindo, ouvindo... Interrogou outras plantas, e não lhe disseram cousa diferente. Há desses acertos maravilhosos Quem conhece o solo e o subsolo da vida, sabe muito bem que um trecho de muro, um banco, um tapete, um guarda-chuva são ricos de ideias ou de sentimentos, quando nós também o somos, e que as reflexões de parceria entre os homens e as cousas compõem um dos mais interessantes fenômenos da terra. A expressão: "Conversar com os seus botões", parecendo simples metáfora, é frase de sentido real e direto. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções.

CAPÍTULO CXLIII

Fez-se o passeio à Tijuca, sem outro incidente mais que uma queda do cavalo, ao descerem. Não foi Rubião que caiu, nem o Palha, mas a senhora deste, que vinha pensando em não sei quê, e chicoteou o animal com raiva; ele espantou-se e deitou-a em terra. Sofia caiu com graça. Estava singularmente esbelta, vestida de amazona, corpinho tentador de justeza. Otelo exclamaria, se a visse: "Oh! Minha bela guerreira!" Rubião limitara-se a isto, ao começar o passeio: "A senhora é um anjo!"

CAPÍTULO CXLIV

- Fiquei com o joelho dorido - disse ela entrando em casa e coxeando.

- Deixa ver.

No quarto de vestir, Sofia levantou o pé sobre um banquinho e mostrou ao marido o joelho pisado; inchara um pouco, muito pouco, mas tocando-lhe, fazia-a gemer. Palha, não querendo machucá-la, chegou-lhe a pontinha dos beiços apenas.

- Fiquei descomposta quando caí?

- Não. Pois com um vestido tão comprido... Mal se pôde ver o bico do pé. Não houve nada, acredita.

- Jura que não?

- Que desconfiada que você é, Sofia! Juro por tudo o que há mais sagrado, pela luz que me alumia, por Deus Nosso Senhor. Estás satisfeita?

Sofia ia cobrindo o joelho.

- Deixa ver outra vez. Creio que não será nada maior; bota um pouco de qualquer cousa. Manda perguntar à botica.

- Está bom, deixa-me ir despir - disse ela forcejando por descer o vestido.

Mas o Palha baixara os olhos do joelho até ao resto da perna, onde pegava com o cano da bota. De feito, era um belo trecho da natureza. A meia de seda mostrava a perfeição do contorno. Palha, por graça, ia perguntando à mulher se se machucara aqui, e mais aqui, e mais aqui, indicando os lugares com a mão que ia descendo. Se aparecesse um pedacinho desta obra-prima, o céu e as árvores ficariam assombrados, concluiu ele enquanto a mulher descia o vestido e tirava o pé do banco.

- Pode ser, mas não havia só o céu e as árvores - disse ela -, havia também os olhos do Rubião.

- Ora, o Rubião! É verdade; ele nunca mais teve aquelas tolices de Santa Teresa?

- Nunca; mas, enfim, não me agradaria... Jura de verdade, Cristiano?

- O que você quer é que eu vá subindo de sagrado em sagrado, até à cousa mais sagrada. Jurei por Deus; não bastou. Juro por você; está satisfeita?

Pieguices de lascivo. Saiu finalmente do quarto da mulher e foi para o seu. Aquele pudor medroso e incrédulo de Sofia fazia-lhe bem. Mostrava que ela era sua, totalmente sua; mas, por isso mesmo que ele a possuía, considerava que era de grande senhor não se afligir com a vista casual e instantânea de um pedaço oculto do seu reino. E lastimava que o casual tivesse parado na ponta da bota. Era apenas a fronteira; as primeiras vilas do território, antes da cidade machucada pela queda, dariam ideia de uma civilização sublime e perfeita. E ensaboando-se, esfregando a cara, o colo e a cabeça na vasta bacia de prata, escovando-se, enxugando-se, aromando-se, Palha imaginava o pasmo e a inveja da única testemunha do desastre, se este fosse menos incompleto.

CAPÍTULO CXLV

Foi por esse tempo que Rubião pôs em espanto a todos os seus amigos. Na terça-feira seguinte ao domingo do passeio (era então janeiro de 1870) avisou a um barbeiro e cabeleireiro da rua do Ouvidor que o mandasse barbear a casa, no outro dia, às nove horas da manhã. Lá foi um oficial francês, chamado Lucien, que entrou para o gabinete de Rubião, segundo as ordens dadas ao criado.

- Uhm!... - rosnou Quincas Borba, de cima dos joelhos do Rubião.

Lucien cumprimentou o dono da casa; este, porém, não viu a cortesia, como não ouvira o sinal do Quincas Borba. Estava em uma longa cadeira de extensão, ermo do espírito, que rompera o teto e se perdera no ar. A quantas léguas iria? Nem condor nem águia o poderia dizer. Em marcha para a lua - não via cá embaixo mais que as felicidades perenes, chovidas sobre ele, desde o berço, onde o embalaram fadas, até à praia de Botafogo, aonde elas o trouxeram por um chão de rosas e bogaris. Nenhum revés, nenhum malogro, nenhuma pobreza; - vida plácida, cosida de gozo, com rendas de supérfluo. Em marcha para a lua!

O barbeiro relanceou os olhos pelo gabinete, onde fazia principal figura a secretária, e sobre ela os dous bustos de Napoleão e Luís Napoleão. Relativamente a este último, havia, ainda pendentes da parede, uma gravura ou litografia representando a Batalha de Solferino, e um retrato da imperatriz Eugênia.

Rubião tinha nos pés um par de chinelas de damasco, bordadas a ouro; na cabeça, um gorro com borla de seda preta. Na boca um riso azul claro.

CAPÍTULO CXLVI

- Senhor...

- Uhm! - repetiu Quincas Borba, de pé nos joelhos do senhor.

Rubião voltou a si e deu com o barbeiro. Conhecia-o por tê-lo visto ultimamente na loja; ergueu-se da cadeira. Quincas Borba latia, como a defendê-lo contra o intruso.

- Sossega! Cala a boca! - disse-lhe Rubião; e o cachorro foi, de orelha baixa, meter-se por trás da cesta de papéis. Durante esse tempo, Lucien desembrulhava os seus aparelhos.

- O senhor vai perder uma bela barba - dizia ele em francês -. Conheço pessoas que fizeram a mesma cousa, mas para servir a alguma dama. Tenho sido confidente de homens respeitáveis...

- Justamente! - interrompeu Rubião.

Não entendera nada; posto soubesse algum francês, mal o compreendia lido - como sabemos - e não o entendia falado. Mas, fenômeno curioso, não respondeu por impostura; ouviu as palavras, como se fossem cumprimento ou aclamação; e, ainda mais curioso fenômeno, respondendo-lhe em português, cuidava falar francês.

- Justamente! - repetiu -. Quero restituir a cara ao tipo anterior; é aquele.

E, como apontasse para o busto de Napoleão III, respondeu-lhe o barbeiro pela nossa língua:

- Ah! O imperador! Bonito busto, em verdade. Obra fina. O senhor comprou isto aqui ou mandou vir de Paris? São magníficos. Lá está o primeiro, o grande; este era um gênio. Se não fosse a traição, oh, os traidores, vê o senhor? Os traidores são piores que as bombas de Orsini.

- Orsini! Um coitado!

- Pagou caro.

- Pagou o que devia. Mas não há bombas nem Orsini contra o destino de um grande homem - continuou Rubião -. Quando a fortuna de uma nação põe na cabeça de um grande homem a coroa imperial, não há maldades que valham... Orsini! Um bobo!

Em poucos minutos, começou o barbeiro a deitar abaixo as barbas de Rubião, para lhe deixar somente a pera e os bigodes de Napoleão III; encarecia-lhe o trabalho; afirmava que era difícil compor exatamente uma cousa como a outra. E à medida que lhe cortava as barbas, ia-as gabando:

- Que lindos fios! Era um grande e honesto sacrifício que fazia, em verdade...

- Seu barbeiro, você é pernóstico - interrompeu Rubião -. Já lhe disse o que quero; ponha-me a cara como estava. Ali tem o busto para guiá-lo.

- Sim, senhor, cumprirei as suas ordens, e verá que semelhança vai sair.

E zás, zás, deu os últimos golpes às barbas de Rubião, e começou a rapar-lhe as faces e os queixos. Durou longo tempo a operação, o barbeiro ia tranquilamente rapando, comparando, dividindo os olhos entre o busto e o homem. Às vezes, para melhor cotejá-los, recuava dous passos, olhava-os alternadamente, inclinava-se, pedia ao homem que se virasse de um lado ou de outro, e ia ver o lado correspondente do busto.

- Vai bem? - perguntava Rubião.

Lucien pedia-lhe com um gesto que se calasse, e prosseguia. Recortou a pera, deixou os bigodes, e escanhoou à vontade, lentamente, amigamente, aborrecidamente, adivinhando com os dedos alguma pontinha imperceptível de cabelo no queixo ou na face. Às vezes Rubião, cansado de estar a olhar para o teto, enquanto o outro lhe aperfeiçoava os queixos, pedia para descansar. Descansando, apalpava o rosto e sentia pelo tato a mudança.

- Os bigodes é que não estão muito compridos - observava.

- Falta arranjar-lhes as guias; aqui trago os ferrinhos para encurvá-los bem sobre o lábio, e depois faremos as guias. Ah! Eu prefiro compor dez trabalhos originais a uma só cópia.

Volveram ainda dez minutos, antes que os bigodes e a pera fossem bem retocados. Enfim, pronto, Rubião deu um salto, correu ao espelho, no quarto, que ficava ao pé; era o outro, eram ambos, era ele mesmo, em suma.

- Justamente! - exclamou tornando ao gabinete, onde o barbeiro, tendo arrecadado os aparelhos, fazia festas ao Quincas Borba.

E indo à secretária, abriu uma gaveta, tirou uma nota de vinte mil-réis, e deu-lha.

- Não tenho troco - disse o outro.

- Não precisa dar troco - acudiu Rubião com um gesto soberano; tire o que houver de pagar à casa, e o resto é seu.

CAPÍTULO CXLVII

Ficando só, Rubião atirou-se a uma poltrona, e viu passar muitas cousas suntuosas. Estava em Biarritz ou Compiègne, não se sabe bem; Compiègne, parece. Governou um grande Estado, ouviu ministros e embaixadores, dançou, jantou - e assim outras ações narradas em correspondências de jornais, que ele lera e lhe ficaram de memória. Nem os ganidos de Quincas Borba logravam espertá-lo. Estava longe e alto. Compiègne era no caminho da lua. Em marcha para a lua!

CAPÍTULO CXLVIII

Quando desceu da lua, ouviu os ganidos do cachorro e sentiu frio nos queixos. Correu ao espelho e verificou que a diferença entre a cara barbada e a cara lisa era grande mas que, assim lisa, não lhe ficava mal. Os comensais chegaram à mesma conclusão.

- Está perfeitamente bem! Há muito que devia ter feito isso. Não é que as barbas grandes lhe tirassem a nobreza do rosto; mas, assim como está agora, tem o que tinha, e mais um tom moderno...

- Moderno - repetiu o anfitrião.

Fora, igual espanto. Todos achavam sinceramente que este outro aspecto lhe ia melhor que o anterior. Uma só pessoa, o Dr. Camacho, posto julgasse que os bigodes e a pera ficavam muito bem no amigo, ponderou que era de bom aviso não alterar o rosto, verdadeiro espelho da alma, cuja firmeza e constância devia reproduzir.

- Não é por lhe falar de mim - concluiu -; mas, nunca me há de ver a cara de outro modo. É uma necessidade moral da minha pessoa. Minha vida, sacrificada aos princípios - porque eu nunca tentei conciliar princípios, mas homens -, minha vida, digo, é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa.

Rubião ouvia com seriedade, e acenava de cabeça que sim, que devia ser assim por força. Sentia-se então imperador dos franceses, incógnito, de passeio; descendo à rua, voltou ao que era. Dante, que viu tantas cousas extraordinárias, afirma ter assistido no inferno ao castigo de um espírito florentino, que uma serpente de seis pés abraçou de tal modo, e tão confundidos ficaram, que afinal já se não podia distinguir bem se era um ente único, se dous. Rubião era ainda dous. Não se misturavam nele a própria pessoa com o imperador dos franceses. Revezavam-se; chegavam a esquecer-se um do outro. Quando era só Rubião, não passava do homem do costume. Quando subia a imperador, era só imperador. Equilibravam-se, um sem outro, ambos integrais.

CAPÍTULO CXLIX

- Que mudança é essa? - perguntou Sofia, quando ele lhe apareceu no fim da semana.

- Vim saber do seu joelho; está bom?

- Obrigada.

Eram duas horas da tarde. Sofia acabava de vestir-se para sair, quando a criada lhe fora dizer que estava ali Rubião - tão mudado de cara que parecia outro. Desceu a vê-lo curiosa; achara-o na sala, de pé, lendo os cartões de visita.

- Mas que mudança é essa? - repetiu ela.

Rubião, sem nenhum sentimento imperial, respondeu que supunha ficarem-lhe melhor os bigodes e a pera.

- Ou estou mais feio? - concluiu.

- Está melhor, muito melhor.

E Sofia disse consigo que talvez fosse ela a causa da mudança. Sentou-se no sofá, e começou a enfiar os dedos nas luvas.

- Vai sair?

- Vou, mas o carro ainda não veio.

Caiu-lhe uma das luvas. Rubião inclinou-se para apanhá-la, ela fez a mesma cousa, ambos pegaram na luva, e teimando em levantá-la sucedeu que as caras encontraram-se no ar, o nariz dela bateu no dele, e as bocas ficaram intactas para rir, como riram.

- Machuquei-a?

- Não! Eu é que lhe pergunto...

E riram outra vez. Sofia calçou a luva, Rubião fitou-lhe um pé que se mexia disfarçadamente, até que o criado veio dizer que a carruagem chegara. Ergueram-se, e ainda uma vez riram.

CAPÍTULO CL

Teso, descoberto, o lacaio abriu a portinhola do coupé, quando Sofia assomou à porta. Rubião ofereceu a mão para ajudá-la a entrar, ela aceitou o obséquio e entrou.

- Agora, até...

Não pôde acabar a frase; Rubião entrara após ela e sentara-se-lhe ao lado; o lacaio fechou a portinhola, trepou à almofada, e o carro partiu.

CAPÍTULO CLI

Tão rápido foi tudo, que Sofia perdeu a voz e o movimento; mas, ao cabo de alguns segundos:

- Que é isto?... Sr. Rubião, mande parar o carro.

- Parar? Mas a senhora não me disse que ia sair e esperava por ele?

- Não ia sair com o senhor... Não vê que... Mande parar...

Desatinada, quis ordenar ao cocheiro que parasse; mas o receio de um possível escândalo fê-la deter-se a meio caminho. O coupé entrara na rua Bela da Princesa. Sofia novamente pediu a Rubião que advertisse na inconveniência de irem assim, à vista de Deus e de todo mundo. Rubião respeitou o escrúpulo, e propôs que descessem as cortinas.

- Eu acho que não faz mal que nos vejam - explicou Rubião -; mas, fechando as cortinas, ninguém nos vê. Se quer?

Sem aguardar resposta, desceu as cortinas de um e outro lado, e ficaram os dous a sós, porque, se de dentro podiam ver uma ou outra pessoa que passasse, de fora ninguém os via. Sós, completamente sós, como naquele dia em que às mesmas duas horas da tarde, em casa dela, Rubião lhe lançou em rosto os seus desesperos. Lá, ao menos, a moça estava livre; aqui, dentro do carro fechado, não podia calcular as consequências.

Rubião, entretanto, acomodara as pernas e não dizia nada.

CAPÍTULO CLII

Sofia encolhera-se muito ao canto. Podia ser estranheza da situação, podia ser medo; mas era principalmente repugnância. Nunca esse homem lhe fez sentir tanta aversão, asco, ou outra cousa menos dura, se querem, mas que se reduzia à incompatibilidade - como direi que não agrave os ouvidos? -, à incompatibilidade da epiderme. Onde iam os sonhos de há poucos dias? Ao simples convite de um passeio, a sós, à Tijuca, subiu com ele a montanha, a galope, desmontou, ouviu palavras de adoração, e sentiu um beijo na nuca. Onde iam essas imaginações? Onde iam os olhos fixos e grandes, as mãos amigas e longas, os pés inquietos, as palavras meigas e os ouvidos cheios de misericórdia? Tudo esqueceu, tudo desapareceu, agora que ambos se achavam deveras sós, insulados pelo carro e pelo escândalo.

E os cavalos continuavam a andar, sacudindo as patas, arrastando lentamente o carro, pelas pedras da rua Bela da Princesa. Que faria ela chegando ao Catete? Iria à cidade com ele? Pensou em seguir para a casa de alguma amiga; deixá-lo-ia dentro, diria ao cocheiro que se fosse embora. Contaria tudo ao marido. No meio daquela agonia, atravessaram-lhe o cérebro algumas memórias banais ou estranhas à situação, como a notícia de um roubo de joias lida de manhã nos jornais, a ventania da véspera, um chapéu. Afinal fixou-se em um só cuidado. Que lhe ia dizer o Rubião? Viu que ele continuava a olhar para a frente, calado, com o castão da bengala no queixo. Não lhe ficava mal a atitude, tranquila, séria, quase indiferente; mas então para que se meteu no carro? Sofia quis romper o silêncio; por duas vezes moveu nervosamente as mãos; quase que a irritou a quietação do homem, cuja ação só podia ser explicada pela paixão antiga e violenta. Depois, imaginou que ele próprio estaria arrependido, e disse-lho em bons termos.

- Não vejo que me possa arrepender de cousa nenhuma - acudiu ele, voltando-se -. Quando a senhora disse que era mau irmos assim, à vista do público, abaixei as cortinas. Não concordei, mas obedeci.

- Chegamos ao Catete - atalhou ela -; quer que o leve a casa? Não podemos ir juntos para a cidade.

- Podemos andar à toa.

- Como?

- À toa, os cavalos vão andando e nós vamos conversando, sem que nos ouçam nem adivinhem...

- Pelo amor de Deus! Não me fale assim; deixe-me, saia do carro, ou eu saio aqui mesmo, e o senhor toma conta dele. Que é que quer dizer? Bastam poucos minutos... Olhe, já dobramos para o lado da cidade; mande ir para Botafogo, vou deixá-lo à porta de casa...

- Mas eu saí há pouco de casa, vou para a cidade. Que mal há em levar-me até lá? Se é para que não nos vejam, apeio-me, em qualquer lugar - na praia de Santa Luzia, por exemplo, do lado do mar...

- O melhor é descer aqui mesmo.

- Mas por que não iremos até à cidade?

- Não, não pode ser. Peço-lhe por tudo que lhe for mais sagrado! Não faça escândalo; vamos, diga-me o que é preciso para obter uma cousa tão simples? Quer que me ajoelhe aqui mesmo?

Apesar da estreiteza do espaço, ia dobrando os joelhos; mas Rubião deu-se pressa em fazê-la sentar-se outra vez.

- Não é preciso que se ajoelhe - disse com brandura.

- Obrigada; peço-lhe então por Deus, por sua mãe, que está no céu...

- Deve estar no céu - confirmou Rubião -. Era uma santa senhora! As mães são sempre boas; mas daquela, ninguém que a conheceu poderá dizer outra cousa senão que era uma santa. E prendada, como poucas. Que dona de casa! Hóspedes, para ela, tanto fazia cinco como cinquenta, era a mesma cousa, cuidava de tudo a tempo e a hora, e criou fama. Os escravos davam-lhe o nome de Sinhá Mãe, porque era, realmente, mãe para todos. Deve estar no céu.

- Bem, bem - atalhou Sofia -. Pois faça-me isto por amor de sua mãe; faz?

- Isto quê?

- Apear-se aqui mesmo.

- E ir a pé para a cidade? Não posso. É cisma sua; ninguém nos vê. E depois estes seus cavalos são magníficos. Já reparou como atiram as patas, lentamente, plás... plás... plás... plás...

Cansada de pedir, Sofia calou-se, cruzou os braços e coseu-se ainda mais, se era possível, ao cantinho do carro.

"Agora me lembro", pensou ela; "mando parar à porta do armazém do Cristiano; digo-lhe o modo por que este homem se introduziu no coupé, os pedidos que lhe fiz e as respostas que me deu. Antes isso que fazê-lo apear misteriosamente em qualquer rua."

Entretanto, Rubião estava quieto. De vez em quando, volvia no dedo o anel de brilhante - um solitário esplêndido. Não olhava para ela, não lhe dizia nem pedia nada. Iam como um casal de aborrecidos. Sofia começava a não entender que razão o teria levado a entrar no carro. Necessidade de transporte não podia ser. Vaidade, também não; fechara as cortinas, à sua primeira queixa de publicidade. Nenhuma palavra amorosa, uma alusão remota que fosse, a medo, cheia de veneração e súplica. Era um inexplicável, um monstro.

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