Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO CX

Rubião fez os dous empréstimos e o negócio. O negócio era uma Empresa Melhoradora dos Embarques e Desembarques no Porto do Rio de Janeiro. Um dos empréstimos tinha por fim pagar certa conta atrasada de papel da Atalaia, dívida urgente. A folha estava ameaçada de parar.

- Perfeitamente - disse Camacho, quando Rubião lhe foi levar o dinheiro à casa -. Muito obrigado. Veja você como, por uma miséria desta ordem, podia emudecer o nosso órgão. São os espinhos naturais da carreira. O povo não está educado; não reconhece, não apoia os que trabalham por ele, os que descem à arena todos os dias em defesa das liberdades constitucionais. Imagine que, de momento, não dispúnhamos deste dinheiro, tudo estava perdido, cada um ia para os seus negócios, e os princípios ficavam sem o seu leal expositor.

- Nunca! - protestou Rubião.

- Tem razão; redobraremos de esforços. A Atalaia será como o Anteu da fábula. De cada vez que cair, erguer-se-á com mais vida.

Dito isto, Camacho mirou o maço de notas.

- Um conto e duzentos, não? - perguntou; e meteu-o no bolso do fraque.

Continuou a dizer que estavam seguros agora, a folha ia de vento em popa. Tinha certas reformas materiais em vista; foi ainda mais longe:

- Precisamos desenvolver o programa, dar um empurrão aos correligionários, atacá-los, se for preciso...

- Como?

- Ora, como? Atacando. Atacar é um modo de dizer; corrigir. É evidente que o órgão do partido está afrouxando. Chamo órgão do partido, porque a nossa folha é órgão das ideias do partido; compreende a diferença?

- Compreendo.

- Vai afrouxando - continuou Camacho apertando um charuto entre os dedos, antes de o acender -; nós precisamos de acentuar os princípios, mas francamente, nobremente, dizendo a verdade. Creia que os chefes precisam ouvi-la a seus próprios amigos e aderentes. Nunca rejeitei a conciliação dos partidos, pugnei por ela; mas conciliação não é jogo de empulha. Para lhe dar um exemplo, na minha província a gente dos Pinheiros tem o apoio do governo, unicamente para me deslocar; e os meus correligionários da Corte, em vez de a combater, visto que o governo lhe dá força, que pensa que fazem? Dão também apoio aos Pinheiros.

- Têm ao menos alguma influência os Pinheiros?

- Nenhuma - respondeu Camacho fechando violentamente a caixa de fósforos que ia a abrir -. Há um réu de polícia entre eles, e há outro que até foi aprendiz de barbeiro. Matriculou-se, é verdade, na faculdade do Recife, creio que em 1855, por morte do padrinho que lhe deixou alguma cousa, mas tal é o escândalo da carreira desse homem que, logo depois de receber o diploma de bacharel, entrou na Assembléia Provincial. É uma besta; é tão bacharel como eu sou papa.

Entenderam-se sobre as modificações políticas da folha. Camacho lembrou ao Rubião que a candidatura deste naufragara por causa justamente da oposição dos chefes.

- De alguns, emendou logo.

Rubião concordou; assim lho tinha dito o amigo em tempo, e a lembrança avivou o ressentimento do desastre. Podia, devia estar na Câmara. Os tais é que o não quiseram; mas haviam de ver, pensava Rubião; tinham de amargar o mal feito. Deputado, senador, ministro, vê-lo-iam tudo, com olhos tortos e espantados. A cabeça de nosso amigo, tanto que o outro lhe pôs a faísca, foi ardendo de si mesma, não por ódio, nem inveja, mas de ambição ingênua, de cordial certeza, visão antecipada e deslumbrante das grandezas. Camacho estimou achá-lo de acordo.

- A nossa gente é de igual opinião - disse ele -. Creio que não faz mal uma pequena ameaça aos amigos.

Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo em que advertia o partido da conveniência de não ceder às perfídias do poder, apoiando em algumas províncias certa gente corrupta e sem valor. Eis aqui a conclusão:

Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Há quem pretenda (mirabile dictu!) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os benefícios que caem das mãos dos adversários. Risum teneatis! Quem pode proferir tal blasfêmia sem que lhe tremam as carnes? Mas suponhamos que assim seja, que a oposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, à postergação das leis, aos excessos da autoridade, à perversidade e aos sofismas. Quid inde? Tais casos - aliás raros - só podiam ser admitidos quando favorecessem os elementos bons, não os maus. Cada partido tem os seus díscolos e sicofantas. É interesse dos nossos adversários ver-nos afrouxar, a troco da animação dada à parte corrupta do partido. Esta é a verdade; negá-lo é provocar-nos à guerra intestina, isto é, à dilaceração da alma nacional... Mas, não, as ideias não morrem; elas são o lábaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est.

CAPÍTULO CXI

Rubião aplaudiu o artigo; achava-o excelente. Talvez pouco enérgico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões.

- Vis vendilhões? Há só um inconveniente - ponderou Camacho -. É a repetição dos vv. Vis ven... Vis vendilhões; não sente que o som fica desagradável?

- Mas lá em cima há vés vis...

- Vae victis. Mas é uma frase latina. Podemos arranjar outra cousa; vis mercadores.

- Vis mercadores é bom.

- Contudo, mercadores não tem a força de vendilhões.

- Então, por que não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forte; ninguém repara no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gosto de energia. Vis vendilhões.

- Vis vendilhões, vis vendilhões - repetiu Camacho, à meia voz -. Já estou achando melhor. Vis vendilhões. Aceito - concluiu emendando. E releu:

Os vis vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que põem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est.

- Muito bem! - disse Rubião, sentindo-se algum tanto autor do artigo.

- Parece-lhe bem? - perguntou Camacho, sorrindo -. Há pessoas que ainda me acham no estilo a frescura do meu tempo de estudante. Não sei, não digo nada; a disposição, sim, é a mesma. Hei de castigá-los; havemos de castigá-los.

CAPÍTULO CXII

Aqui é que eu quisera ter dado a este livro o método de tantos outros - velhos todos -, em que a matéria do capítulo era posta no sumário: "De como aconteceu isto assim, e mais assim." Aí está Bernardim Ribeiro; aí estão outros livros gloriosos. Das línguas estranhas, sem querer subir a Cervantes nem a Rabelais, bastavam-me Fielding e Smollet, muitos capítulos dos quais só pelo sumário estão lidos. Pegai em Tom Jones, livro IV, cap. I, lede este título "Contendo cinco folhas de papel". É claro, é simples, não engana a ninguém; são cinco folhas, mais nada, quem não quer não lê, e quem quer lê, para os últimos é que o autor conclui obsequiosamente: "E agora, sem mais prefácio, vamos ao seguinte capítulo".

CAPÍTULO CXIII

Se tal fosse o método deste livro, eis aqui um título que explicaria tudo: "De como Rubião, satisfeito da emenda feita no artigo, tantas frases compôs e ruminou, que acabou por escrever todos os livros que lera".

Lá haverá leitor a quem só isso não bastasse. Naturalmente, quereria toda a análise da operação mental do nosso homem, sem advertir que, para tanto, não chegariam as cinco folhas de papel de Fielding. Há um abismo entre a primeira frase de que Rubião era co-autor até a autoria de todas as obras lidas por ele; é certo que o que mais lhe custou foi ir da frase ao primeiro livro; - deste em diante a carreira fez-se rápida. Não importa; a análise seria ainda assim longa e fastiosa. O melhor de tudo é deixar só isto; durante alguns minutos, Rubião se teve por autor de muitas obras alheias.

CAPÍTULO CXIV

Ao contrário, não sei se o capítulo que se segue poderia estar todo no título.

CAPÍTULO CXV

Rubião foi mantendo o propósito de não tornar a ver Sofia; pelo menos, não ia ao Flamengo. Viu-a um dia passar de carro, com uma das damas da comissão das Alagoas; ela inclinou-se risonha, dizendo-lhe adeus com a mão. Ele retribuiu o cumprimento, tirando o chapéu, com tal ou qual alvoroço, mas não ficou parado como lhe aconteceria dantes; apenas lançou um olhar ao carro que ia andando. Também ele foi andando - e pensando no lance da carta, não compreendendo aquele gesto de mão, sem ódio nem vexame - como se nada houvesse entre eles. Podia ser que o serviço da comissão e a companheira que levava explicassem a benevolência graciosa de Sofia; mas Rubião não cogitou desta hipótese.

- Estará assim tão falta de brio? - perguntava ele -. Pois não se lembra da carta que achei, mandada por ela ao tal gamenho da rua dos Inválidos? É muito; é demais. Parece um desafio, um modo de dizer que não faz caso, que escreverá todas as cartas que quiser. Que as escreva, mas gaste algum dinheiro em registrá-las no correio; é barato...

Achou algum pico em si mesmo, e riu-se. Isto e um homem que passou rasgando-lhe uma cortesia tiraram-lhe o amargor das saudades, e ele esqueceu o assunto, para cuidar de outro, que o levava ao Banco do Brasil.

Ao entrar no Banco esbarrou com o sócio, que saía.

- Creio que vi agora D. Sofia - disse-lhe Rubião.

- Onde?

- Na rua dos Ourives; ia de carro, com outra senhora, que não conheço. Como tem você passado?

- Viu-a, e não se lembrou de nada - observou Palha, sem responder à pergunta -. Não se lembrou que ela faz anos, quarta-feira, depois de amanhã. Não lhe peço que vá jantar, não ouso tanto, seria convidá-lo a aborrecer-se; mas uma xícara de chá bebe-se depressa. Faz-me esse favor?

Rubião não respondeu logo.

- Vou até jantar - disse finalmente -. Quarta-feira? Conte comigo. Tinha-me esquecido, confesso; mas ando com tanta cousa na cabeça... Espere por mim daqui a meia hora, no armazém.

Antes de meia hora estava lá, pedindo-lhe dous contos de réis. Palha já não resistia ao desmoronamento do capital; e se, uma ou outra vez, dizia alguma palavrinha frouxa, agora entregou-lhe o dinheiro com indiferença. Rubião não tornou à casa sem comprar um magnífico brilhante, que, na quarta-feira, enviou a Sofia, acompanhado de um bilhete de visita, e duas palavras de felicitação.

Sofia estava só, no quarto de vestir, calçando os sapatos, quando a criada lhe entregou o pacote. Era o terceiro presente do dia; a criada esperou que ela o abrisse para ver também o que era. Sofia ficou deslumbrada, quando abriu a caixa e deu com a rica joia - uma bela pedra, no centro de um colar. Esperava alguma cousa bonita; mas, depois dos últimos sucessos, mal podia crer que ele fosse tão generoso. Batia-lhe o coração.

- O portador está aí?

- Já foi. Que bonito, minha ama!

Sofia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada, sozinha, recordando cousas idas, e levantou-se pensando:

"Aquele homem adora-me".

Tratou de vestir-se; mas, ao passar por diante do espelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços nus de cima a baixo, dos próprios olhos contempladores. Fazia vinte e nove anos, achava que era a mesma dos vinte e cinco, e não se enganava. Cingido e apertado o colete, diante do espelho, acomodou os seios com amor, e deixou espraiar-se o colo magnífico. Lembrou-se então de ver como lhe ficava o brilhante; tirou o colar e pô-lo ao pescoço. Perfeito. Voltou-se da esquerda para a direita e vice-versa, aproximou-se, afastou-se, aumentou a luz do camarim; perfeito. Fechou a joia e guardou-a.

"Aquele homem adora-me", repetiu.

"Provavelmente, ele lá estará", pensou Rubião indo jantar ao Flamengo; "duvido que tenha dado melhor presente que eu".

Carlos Maria lá estava, efetivamente, conversando, entre uma das comissárias das Alagoas, e Maria Benedita. Poucos eram os convivas; houve propósito em escolher e limitar. Não estava ali o major Siqueira, nem a filha, nem as senhoras e os homens que Rubião conheceu naquele outro jantar de Santa Teresa. Da comissão das Alagoas viam-se algumas damas; via-se mais o diretor do banco - o da visita ao ministro - com a senhora e as filhas - outro personagem bancário, um comerciante inglês, um deputado, um desembargador, um conselheiro, alguns capitalistas, e pouco mais.

Posto que evidentemente gloriosa, Sofia esqueceu por um instante os outros, quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ela. Ou mudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avesso, em suma, do antigo gesto encolhido e diminuto. Sofia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um agradecimento. À mesa fê-lo sentar ao pé de si, tendo do outro lado a presidente da comissão. Rubião olhava superiormente para tudo. A qualidade dos convivas não lhe produziu impressão, nem o ar cerimonioso, nem o luxo da mesa; nada disso o deslumbrou. O mesmo cuidado particular de Sofia, embora lhe fosse agradável, não o tonteava, como outrora. E da parte dela era mais apurada a atenção, e os olhos, excepcionalmente meigos e serviçais. Rubião procurou Carlos Maria; lá estava entre as mesmas moças da sala - Maria Benedita e a comissária das Alagoas. Verificou que só se ocupava com elas, não olhava para Sofia, nem esta para ele.

"Talvez disfarcem", pensou.

Pareceu-lhe, ao levantarem-se da mesa, que trocavam um olhar, mas o movimento geral da reunião podia iludi-lo, e Rubião não fez maior cabedal da observação. Sofia dera-se pressa em tomar-lhe o braço. De caminho, disse-lhe ela:

- Tenho esperado pelo senhor desde aquele dia, e nunca mais veio aqui. Era meu direito exigi-lo, para explicar-me. Logo falaremos.

Rubião foi daí a pouco para o gabinete dos fumantes. Ouviu calado, com os olhos erradios. Quando os outros saíram, Rubião deixou-se estar só, meio reclinado em um sofá de couro, sem pensar. A imaginação é que fazia o seu ofício, um tanto pachorrenta, agora - talvez porque ele tivesse comido muito. Lá fora iam entrando os convidados da noite; enchia-se a casa, crescia o burburinho da conversação, sem que o nosso amigo descesse dos seus belos sonhos. O próprio som do piano, que fez calar todos os rumores, não o atraiu à terra. Mas um farfalhar de sedas, entrando no gabinete, fê-lo erguer-se de golpe, acordado.

- Aí está - disse Sofia -, recolhe-se aqui para fugir ao aborrecimento; nem quer ouvir boa música. Pensei que tivesse ido embora. Vim ter com o senhor.

E sem mais demora, porque não podia perder um minuto, referiu-lhe o que sabemos da carta achada no jardim de Botafogo; lembrou-lhe que, antes de a abrir, pedira-lhe que ele mesmo a abrisse e lesse. Que melhor prova de inocência? A palavra saía-lhe rápida, séria, digna e comovida. Ocasião houve em que os olhos se lhe tornaram úmidos; ela enxugou-os, e ficaram vermelhos. Rubião pegou-lhe na mão, e viu ainda uma lágrima - uma pequena lágrima - escorregar até o canto da boca. Jurou então que sim, acreditava em tudo. Que ideia aquela de chorar? Sofia enxugou ainda os olhos, e estendeu-lhe a mão agradecida.

- Até já - disse ela.

O piano continuava; Rubião notou-lhe esta circunstância. Enquanto ouviam tocar, não viriam ter com eles.

- Mas eu é que não posso estar ausente tanto tempo - acudiu Sofia -. Demais, tenho ordens que dar. Até já.

- Olhe, escute - insistiu Rubião.

Sofia parou.

- Escute; deixe-me dizer-lhe, e não sei se pela última vez...

- Pela última vez?

- Quem sabe? Pode ser que última. Importa-me pouco que esse homem viva ou não, mas posso achá-lo aqui alguma vez, e não me sinto disposto a brigar.

- Há de encontrá-lo todos os dias. Cristiano ainda lhe não disse o que há? Vai casar com Maria Benedita.

Rubião deu um passo para trás.

- Casam-se - continuou ela -. O fato é de admirar porque surgiu quando menos contávamos com isto; - ou eram muito fingidos, ou foi cousa que lhes deu de repente. Casam-se. Maria Benedita contou-me uma história, que me foi confirmada por outra pessoa; mas, afinal, a história é sempre a mesma. Gostaram um do outro, e adeus. Casam-se brevemente. Quando ele falou a Cristiano, Cristiano respondeu que dependia de mim... Como se fosse mãe dela! Consenti logo, e desejo que sejam felizes. Ele parece bom rapaz; ela é excelente criatura; hão de ser felizes, por força. E bom negócio, sabe? Ele está de posse de todos os bens do pai e da mãe. Maria Benedita não tem nada, em dinheiro; mas tem a educação que lhe dei. Há de lembrar-se que, quando veio para minha companhia, era um bicho do mato; não sabia quase nada; fui eu que a eduquei. Minha tia merecia tudo, e ela também. Pois, é verdade, casam-se muito breve. Não os viu hoje sempre juntos? Não há ainda participação oficial; mas os íntimos da família podem saber.

Para quem tinha tanta pressa, eis aí um discurso demasiado comprido. Sofia deu por isso um pouco tarde; repetiu a Rubião que até logo, que fosse para a sala. O piano acabara; ouvia-se um burburinho discreto de aplauso e conversação.

CAPÍTULO CXVI

Iam casar? Mas como é então que?... Maria Benedita - era Maria Benedita que casava com Carlos Maria; mas então Carlos Maria... Compreendia agora; era tudo engano, confusão, o que parecia ser com uma pessoa era com outra, e aí está como a gente pode chegar à calúnia e ao crime.

Assim reflexionava Rubião, saindo para a sala de jantar, onde os copeiros adereçavam a mesa da ceia. E continuou, andando ao comprido da sala: "Ora vejam! E o Palha queria justamente casar-me com a prima, mal sabendo que o destino lhe guardava outro noivo. Não é feio rapaz; é muito mais bonito que ela. Ao pé de Sofia, Maria Benedita vale pouco ou nada; mas a simpatia é assim mesmo... Casam-se, e breve... Será de estrondo o casamento? Deve ser; o Palha vive agora um pouco melhor..." - e Rubião lançava os olhos aos móveis, porcelanas, cristais, reposteiros. "Há de ser de estrondo. E depois o noivo é rico..." Rubião pensou na carruagem e nos cavalos que levaria; tinha visto uma parelha soberba, no Engenho Velho, dias antes, que estava mesmo ao pintar. Ia fazer a encomenda de outra assim, fosse por que preço; tinha também de presentear a noiva. Ao pensar nela viu-a entrar na sala.

- Prima Sofia onde está? - perguntou ela ao Rubião.

- Não sei; esteve aqui há pouco.

E, como a visse disposta a ir adiante, pediu-lhe uma palavra, e que se não zangasse. Maria Benedita esperou; ele, sem hesitação, deu-lhe os parabéns. Sabia que ia casar... Maria Benedita ficou muito vermelha, e murmurou que não divulgasse nada. Não havia então nenhum criado ali; Rubião pegou-lhe na mão e fechou-a entre as suas.

- Eu sou da casa - disse -; a senhora merece ser feliz, e espero que seja.

Um pouco assustada, Maria Benedita puxou a mão e libertou-a; mas, para o não aborrecer, sorriu. Não era preciso tanto; ele estava encantado. Sabemos que a moça não era bonita. Pois estava linda, à força de felicidade. A natureza parecia haver posto nela as suas mais finas ideias. Sorrindo igualmente, Rubião continuou:

- Foi sua prima que me disse; recomendou-me segredo. Não direi nada antes do tempo. Mas que tem que diga à senhora? A senhora é boa e merece tudo. Não é preciso esconder os olhos; casar não é vergonha. Vamos lá; levante a cabeça e ria.

Maria Benedita pôs nele os olhos radiantes.

- Isso! - aplaudiu Rubião -. Que mal há em confessar-se a um amigo? Deixe-me dizer-lhe a verdade; creio que a senhora será feliz, mas admito que ele ainda será mais feliz. Não? Verá se não é verdade; ele mesmo lhe há de dizer o que sentir, e, se for sincero, a senhora reconhecerá que eu estou apenas profetizando. Bem sei que não tem balança para medir os sentimentos; enfim, o que eu quero dizer é que a senhora é uma linda e boa criatura... Vá, vá-se embora; se não, fico dizendo verdades, e a senhora está corando muito...

De fato, Maria Benedita corava de gosto, ouvindo a linguagem de Rubião. Em casa, achara aquiescência, nada mais. O próprio Carlos Maria não era assim terno; gostava dela com circunspecção. Falava-lhe da felicidade conjugal, como de uma taxa que ia receber do destino - pagamento devido, integral e certo. Também não era preciso que a tratasse de outro modo, para que ela o adorasse sobre todas as cousas deste mundo. Rubião repetiu a despedida, e ficou a olhar para ela, como para uma filha. Viu-a ir assim, atravessar a sala, viva e satisfeita - tão diversa do que achara em outros tempos, a desaparecer por uma das portas. Não pôde reter esta palavra:

- Linda e boa criatura!

A+
A-