Romance

Quincas Borba

1890

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Quando veio a público em forma de livro, em 1891, o romance Quincas Borba já tinha saído, aos pedaços, e bem diferente, num periódico da época, chamado A Estação.

Uma década tinha transcorrido desde a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, que causara verdadeiro abalo na literatura brasileira de então, deixando perplexos leitores e críticos: o que tinham agora em mãos fugia ao romance de costumes com cor local, padrão instaurado no Romantismo e ainda muito favorecido pelo público. Fugia também ao padrão realista-naturalista, que começava a chegar aos consumidores brasileiros de literatura, principalmente vindo da Europa, padrão este que encontraria um sucesso até certo ponto fácil entre nós. E fugia, ainda, ao padrão dos próprios romances anteriores de Machado de Assis, narrativas bem comportadas, lineares, histórias com princípio, meio e fim.

Nos dez anos (1881-1891) entre as publicações em livro dos dois romances, Machado não parou de escrever, de publicar: o contista de Papéis avulsos (1882) e de Histórias sem data (1884) bem como o cronista das Balas de estalo e de Bons dias! estavam em plena atividade, exercitando a pena, aprimorando o estilo, afiando a ironia, amadurecendo, enfim. Não é de surpreender, portanto, que Quincas Borba seja um romance menos esfuziante que o anterior, menos ousado, menos experimental. Trata-se de uma narrativa de terceira pessoa convencional (ainda que não em termos absolutos), que conta uma história bem concatenada, com personagens verossímeis, movimentando-se contra o pano de fundo nítido da sociedade da capital imperial, na segunda metade da década de 1860. Bem mais palatável.

No entanto, não se pode nunca subestimar o gênio de Machado de Assis, a começar pela ambiguidade do título do romance, que, como o narrador dirá no último capítulo, pode referir-se tanto ao "filósofo" Quincas Borba, que transita do livro anterior para este, quanto ao cão, nomeado pelo dono com o seu próprio nome, em observância a uma das facetas do seu sistema filosófico, o humanitismo. A voz narrativa apresenta também certa sofisticação e, se o narrador de terceira pessoa é o mais presente no romance, aqui e ali aflora um narrador de primeira pessoa, que, sedutor, faz do leitor um aliado, quase um cúmplice, observadores ambos das personagens e da ação.

Além da sofisticação técnico-formal, Quincas Borba apresenta um enredo bastante complexo, agenciando um número considerável de personagens, cujas relações o narrador explora com fina psicologia e com aguda observação da sociedade em que se movimentam. É talvez o mais óbvia e aparentemente realista dos livros de Machado de Assis, no qual o narrador é implacável na denúncia do arrivismo, da hipocrisia, da falta de escrúpulos da sociedade da corte, que se lança vorazmente sobre o parvo Rubião, o qual, por sua vez, se embaraça irremediavelmente na rede que sua loucura ajuda a tecer. No entanto, não se engane o leitor: o livro que tem diante dos olhos transcende escolas e se inscreve na literatura brasileira como um romance plenamente maduro, a ombrear com o que de melhor já produziu a literatura ocidental.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1998), compulsada também, em caso de dúvida, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos, recorreu-se à primeira edição em livro (1891), da Garnier, também existente na biblioteca da Fundação. Sempre que encontramos discrepâncias entre as edições mencionadas acima, seguimos, a cada caso, a edição que nos pareceu oferecer a melhor lição.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009. No entanto, nos casos em que os melhores dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "sumptuoso"/"suntuoso", "noute"/"noite"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo e não obstante o fato de que, neste romance, ora use uma forma, ora, outra ("noite" nos capítulos IX, XXXIV, L etc., e "noute" nos capítulos XLVIII e CLXI).

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia inclinada", "meia coberta"; ou como o uso de "mais ruins", em vez de "pior". Também se respeitou a regência duplamente indireta, em exemplos como: "Custa-lhe muito a acostumar-se"; e a regência indireta quando devia ser direta: "Bem pode ser que o sócio, esticando a espera, quisesse justamente fazer-lhe crer que se tratava de um terremoto". E o contrário disso, ou seja: manteve-se regência direta em casos em que o correto seria indireta: "Sim, esquecera-se que o internúncio devia casá-los". Respeitou-se, igualmente, a oscilação, presente nas edições compulsadas, entre "em todo caso" (uso mais frequente) e "em todo o caso". O mesmo com relação a "toda parte" e " toda a parte".

Quanto ao uso de iniciais maiúsculas, seguiu-se o padrão das Edições Casa de Rui Barbosa, adotando-se as mesmas, por exemplo, nos nomes de instituições ("Câmara dos Deputados"). Entretanto, em respeito ao que chamamos de atmosfera textual do romance, foram mantidas certas iniciais maiúsculas sempre que nelas percebemos um gesto estilístico do autor, como quando menciona D. Pedro II, sempre referido como "o Imperador". Essa atmosfera textual se consubstancia também no emprego de palavras estrangeiras, que mantivemos, mesmo quando edições modernas preferem a forma aportuguesada das mesmas: "tilbury", "coupé" (e não "tílburi", "cupê").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior: "Quincas Borba calou-se de exausto, e sentou-se ofegante". Nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la: "Dar-se-ia que, provada a alienação mental do testador, nulo ficaria o testamento e perdidas, as deixas?"

Nos romances anteriores publicados neste site, adotamos a convenção de recorrer às aspas sempre que a fala de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado, e, nos diálogos, preservar o travessão. No entanto, em Quincas Borba essa questão se complica, na medida em que, frequentemente, discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre se misturam de tal modo, que se torna difícil discerni-los. Por conta dessa espécie de fusão, de mistura de discursos, em todos os momentos em que o narrador parece reproduzir a confusão mental de Rubião (como no capítulo XCV, em que a personagem fica fora de si, por ciúmes de Sofia), procurou-se preservar a pontuação do autor, de acordo com as edições consultadas.

Acerca das notas, "Deus" e "Diabo" só foram considerados personagens e merecedores de links quando a referência era especificamente à tradição religiosa ocidental em geral e à católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "quando Deus quiser", ou "mandou o moço ao diabo".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Em breve, estará disponível neste site uma edição de Quincas Borba tal como foi publicado em A Estação, com texto estabelecido por Ana Cláudia Suriani da Silva e anotada por John Gledson.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

novembro de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

CAPÍTULO CIII

Ao sétimo dia da morte de D. Maria Augusta, rezou-se a missa de uso, em São Francisco de Paula; Rubião lá foi, lá viu Carlos Maria. Tanto bastou para precipitar a devolução da carta; três dias depois, meteu-a no bolso e correu ao Flamengo. Eram duas horas da tarde. Maria Benedita fora visitar as amigas da vizinhança, que a tinham acompanhando nos primeiros dias de aflição; Sofia estava só, vestida para sair.

- Mas, não importa - disse ela convidando-o a sentar-se -; fico ou saio mais tarde.

Rubião retorquiu que a demora era curta; vinha dar-lhe um papel.

- Em todo caso, sente-se; também se pode dar um papel sentado.

Estava tão bonita, que ele hesitou em dizer-lhe as palavras duras que trazia de cor. O luto ia-lhe muito bem, e o vestido parecia uma luva. Sentada, via-se-lhe metade do pé, sapato raso, meia de seda, cousas todas que pediam misericórdia e perdão. Quanto à espada daquela bainha - assim chama à alma um velho autor -, parecia não ter gume nem campanhas; era uma ingênua faca de marfim. Rubião esteve a pique de fraquear; a primeira palavra arrastou as outras.

- Que papel? - perguntou Sofia.

- Um papel, que suponho grave - respondeu ele contendo-se -; não se recorda ou não sabe que perdeu uma carta?

- Não.

- Costuma escrever cartas?

- Tenho escrito algumas; mas não me lembra se grave. Deixe ver.

Rubião tinha os olhos desvairados. Não disse nem fez nada. Levantou-se para sair, não saiu. Depois de alguns instantes de silêncio e inquietação, continuou sem raiva:

- Não é segredo para a senhora que lhe quero bem. A senhora sabe disto, e não me despede, nem me aceita, anima-me com os seus bonitos modos. Não me esqueci ainda de Santa Teresa, nem da nossa viagem no trem de ferro, quando vínhamos os dous com seu marido no meio. Lembra-se? Foi a minha desgraça aquela viagem; desde aquele dia a senhora me prendeu. A senhora é má, tem gênio de cobra; que mal lhe fiz eu? Vá que não goste de mim; mas, podia desenganar-me logo...

- Cale-se, vem gente - interrompeu Sofia erguendo-se também e olhando para o lado da porta.

Não vinha ninguém; entretanto, podiam ouvi-lo, porque a voz do Rubião ia aquecendo e crescendo. Cresceu ainda mais. Já não pleiteava esperanças; abria e despejava a alma.

- Não me importa que ouçam - bradou ele -; podem ouvir-me; agora digo tudo, a senhora bota-me para fora e tudo acaba. Não, não se pode fazer sofrer assim um homem...

- Cale-se, pelo amor de Deus!

- Qual Deus! Ouça-me o resto, porque eu estou disposto a não guardar nada...

Desatinada, receando deveras que algum criado ouvisse, Sofia levantou a mão e tapou-lhe a boca. Ao contato daquela epiderme querida, Rubião perdeu a voz. Sofia retirou a mão, e dispôs-se a deixar a sala; mas, chegando à porta, parou. Rubião caminhara até à janela, para convalescer da explosão.

CAPÍTULO CIV

Sofia, depois de estar alguns segundos à escuta, tornou à sala, e foi sentar-se com grande rumor de saias, na otomana de cetim azul, compra de poucos dias. Rubião voltou-se, e deu com ela, abanando repreensivamente a cabeça. Antes que ele falasse, Sofia pôs o dedo na boca, pedindo-lhe silêncio; depois chamou com a mão; Rubião obedeceu.

- Sente-se naquela cadeira - disse ela; e continuou, depois de o ver sentado -: Tenho razão para zangar-me com o senhor; não o faço, porque sei que é bom, e estou que é sincero, arrependa-se do que me disse, e tudo lhe será perdoado.

Sofia bateu com o leque no lado direito do vestido para o abaixar e compor; depois levantou os braços sacudindo as pulseiras de vidro preto; finalmente pousou-os sobre os joelhos, e, abrindo e fechando as varetas do leque, aguardou a resposta. Ao contrário do que esperava, Rubião abanou a cabeça negativamente.

- Não tenho de que me arrepender - disse ele -; prefiro que me não perdoe. A senhora ficará cá dentro, quer queira, quer não; podia mentir, mas que é que rende a mentira? A senhora é que não tem sido sincera comigo, porque me tem enganado...

Sofia retesou o busto.

- ... Não se zangue; não desejo ofendê-la; mas, deixe-me dizer que a senhora é que me tem enganado, e muito, e sem compaixão. Que ame a seu marido, vá; perdoava-lhe; mas que...

- Mas quê? - repetiu ela espantada.

Rubião meteu a mão no bolso, tirou a carta, e entregou-lha. Sofia, ao ler o nome de Carlos Maria, ficou sem pinga de sangue; ele viu-lhe a palidez. Dominando-se logo, perguntou o que era, que queria dizer essa carta.

- A letra é sua.

- É minha. Mas que diria eu aqui dentro? - continuou tranquila -. Quem lhe deu isto?

Rubião quis referir o achado; mas entendeu ter alcançado o bastante; cortejou-a para sair.

- Perdão - disse ela -, abra o senhor mesmo a carta.

- Não tenho mais nada a fazer aqui.

- Fique, abra a carta, aqui a tem; leia tudo - dizia a moça pegando-lhe na manga; mas, Rubião puxou violentamente o braço, foi buscar o chapéu, e saiu. Sofia, com medo dos criados, deixou-se ficar na sala.

CAPÍTULO CV

Tão nervosa esteve durante os primeiros instantes, que não cuidou da carta. Afinal, virou-a de um lado para outro, sem adivinhar o conteúdo; mas, pouco a pouco, já senhora de si, lembrou-se que devia ser a circular da comissão das Alagoas. Rasgou a sobrecarta: era a circular. Como é que semelhante papel fora ter às mãos dele? E donde lhe vinha a suspeita? De si mesmo ou de fora? Correria algum boato? Foi ter com o criado que levara a circular a Carlos Maria e perguntou-lhe se a entregara. Soube que não. Quando o criado chegou à rua dos Inválidos, não achou o papel no bolso, e, com medo, não dissera nada à ama.

Sofia tornou à sala, disposta a não sair. Recolheu a carta e a sobrecarta, para mostrá-las a Rubião, a fim de que ele visse bem que não era nada; mas, provavelmente, suporia a substituição do papel.

- Maldito homem! - murmurou -. E começou a andar à toa.

Uma revoada de memórias entrou na alma de Sofia. A imagem de Carlos Maria veio postar-se ante ela, com os seus grandes olhos de espectro querido e aborrecido. Sofia quis arredá-lo, mas não pôde; ele acompanhava-a de um lado para outro, sem perder o tom esbelto e másculo, nem o ar de riso sublime. Às vezes, via-o inclinar-se, articulando as mesmas palavras de certa noite de baile, que lhe custaram a ela horas de insônia, dias de esperança, até que se perderam na irrealidade. Nunca Sofia compreendera o malogro daquela aventura. O homem parecia querer-lhe deveras, e ninguém o obrigava a declará-lo tão atrevidamente, nem a passar-lhe pelas janelas, alta noite, segundo lhe ouviu. Recordou ainda outros encontros, palavras furtadas, olhos cálidos e compridos, e não chegava a entender que toda essa paixão acabasse em nada. Provavelmente, não haveria nenhuma; puro galanteio; - quando muito, um modo de apurar as suas forças atrativas... Natureza de pelintra, de cínico, de fútil.

Que lhe importava o mistério? Era um sujeito fútil. Cresceu-lhe o nojo e o desdém. Chegou a rir-se dele; podia encará-lo sem remorsos. E foi andando por ali fora, vingando-se do bobo - chamava-lhe bobo - e fitando no ar os olhos de imaculada. Em verdade, era ocupar-se demais com tal assunto; começou a maldizer do Rubião, que evocara semelhante homem do esquecimento, por causa daquela triste circular... Depois, tornou às primeiras lembranças, às palavras de Carlos Maria. Se todos a achavam bela, por que não o acharia ele, que lho disse? Talvez o tivesse a seus pés, se não se houvesse mostrado tão agradecida, tão rasteira...

De repente, a criada, que estava na outra sala, ouvindo rumor de alguma cousa que se quebrava, correu à de visitas, e viu a ama, sozinha, de pé.

- Não é nada - disse-lhe esta.

- Pareceu-me que ouvi...

- Foi aquele boneco que caiu; apanhe os cacos.

- O chinês! - exclamou a criada.

De feito, era um mandarim de porcelana, pobre-diabo que estava muito quieto, em cima de uma estante. Sofia achou-se com ele entre os dedos, sem saber como, nem desde quando; ao cuidar na sua voluntária humilhação, teve um impulso - parece que raiva de si mesma - e deu com o boneco em terra. Pobre mandarim! Não lhe valeu ser de porcelana; não lhe valeu sequer ser dado pelo Palha.

- Mas, minha ama, como é que o chinês...

- Vá-se embora!

Sofia recordou todo o seu proceder diante de Carlos Maria, as aquiescências fáceis, os perdões antecipados, os olhos com que o buscava, os apertos de mão tão fortes... Era isso; tinha-se-lhe lançado aos pés. Depois, o sentimento foi mudando. Apesar de tudo, era natural que ele gostasse dela, e a conformidade moral de ambos não traria o abandono de um. Talvez a culpa fosse outra. Escavou razões possíveis, algum gesto duro e frio, alguma falta de atenção para com ele; lembrou-se que, uma vez, por medo de o receber sozinha, mandou dizer que não estava em casa. Sim, podia ser isso. Carlos Maria era orgulhoso; a menor desfeita pungia-o. Soube que era mentira... Essa era a culpa.

CAPÍTULO CVI

... ou, mais propriamente, capítulo em que o leitor, desorientado, não pode combinar as tristezas de Sofia com a anedota do cocheiro. E pergunta confuso:

- Então a entrevista da rua da Harmonia, Sofia, Carlos Maria, esse chocalho de rimas sonoras e delinquentes, é tudo calúnia?

Calúnia do leitor e do Rubião, não do pobre cocheiro, que não proferiu nomes, não chegou sequer a contar uma anedota verdadeira. É o que terias visto, se lesses com pausa. Sim, desgraçado, adverte bem que era inverossímil que um homem, indo a uma aventura daquelas, fizesse parar o tilbury diante da casa pactuada. Seria pôr uma testemunha ao crime. Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia - ruas transversais, onde o tilbury podia ficar esperando.

- Bem; o cocheiro não soube compor. Mas que interesse tinha em inventar a anedota?

Conduzira Rubião a uma casa, onde o nosso amigo ficou quase duas horas, sem o despedir; viu-o sair, entrar no tilbury, descer logo e vir a pé, ordenando-lhe que o acompanhasse. Concluiu que era ótimo freguês; mas, ainda assim, não se lembrou de inventar nada. Passou, porém, uma senhora com um menino - a da rua da Saúde - e Rubião quedou-se a olhar para ela com vistas de amor e melancolia. Aqui é que o cocheiro o teve por lascivo, além de pródigo, e encomendou-lhe as suas prendas. Se falou em rua da Harmonia foi por sugestão do bairro donde vinham; e, se disse que trouxera um moço da rua dos Inválidos, é que naturalmente transportara de lá algum, na véspera - talvez o próprio Carlos Maria -, ou porque lá morasse -, ou porque lá tivesse a cocheira -, qualquer outra circunstância que lhe ajudou a invenção, como as reminiscências do dia servem de matéria aos sonhos da noite. Nem todos os cocheiros são imaginativos. Já é muito concertar farrapos da realidade.

Resta só a coincidência de morar na rua da Harmonia uma das costureiras do luto. Aqui, sim, parece um propósito do acaso. Mas a culpa é da costureira; não lhe faltaria casa mais para o centro da cidade, se quisesse deixar a agulha e o marido. Ao contrário disso, ama-os sobre todas as cousas deste mundo. Não era razão para que eu cortasse o episódio, ou interrompesse o livro.

CAPÍTULO CVII

Das reflexões de Sofia é que não há que explicar. Todas tinham o pé na verdade. Era certo e certíssimo que Carlos Maria não correspondera às primeiras esperanças - nem às segundas e terceiras -, porque as houve em quadras diversas, ainda que menos verdes e bastas. Quanto à causa disso, vimos que Sofia, à míngua de uma, atribuiu-lhe sucessivamente três. Não chegou a pensar em alguns amores que ele porventura trouxesse e lhe tornassem insípidos quaisquer outros. Seria uma quarta causa, e talvez a verdadeira.

CAPÍTULO CVIII

Durante alguns meses, Rubião deixou de ir ao Flamengo. Não foi resolução fácil de cumprir. Custou-lhe muita hesitação, muito arrependimento; mais de uma vez chegou a sair com o propósito de visitar Sofia e pedir-lhe perdão. De quê? Não sabia; mas queria ser perdoado. Em todas as tentativas desse gênero, a lembrança de Carlos Maria fazia-o recuar. De certo ponto em diante, foi o próprio lapso de tempo que o tolheu; era esquisito aparecer lá um dia, como um triste filho pródigo, unicamente para suplicar o calor dos belos olhos da dona da casa. Ia ao armazém, visitar o Palha; este, ao fim de cinco semanas, reprochou-lhe a ausência; e, passados dous meses, perguntou-lhe se era formal propósito.

- Tenho tido muito que fazer - acudiu Rubião -; estes negócios políticos tomam todo o tempo a uma pessoa. Vou lá domingo.

Sofia aparelhou-se para recebê-lo. Espiaria a ocasião de lhe dizer o que era a carta, jurando por todas as cousas santas, para que ele visse que a verdade não era contra ela. Planos perdidos; Rubião não compareceu. Veio outro domingo, vieram outros domingos... Não obstante, Sofia remeteu-lhe um dia a subscrição para as Alagoas; ele assinou cinco contos de réis.

- É muito - disse-lhe o sócio, no armazém, quando ele lhe foi levar o papel.

- Não dou menos.

- Mas olhe que pode dar muito, sem dar tanto. Parece-lhe então que esta subscrição é feita entre meia dúzia de pessoas? Anda nas mãos de muitas senhoras e de alguns homens; está nos mostradores das lojas, na praça do Comércio, etc. Assine menos.

- Como, se está escrito?

- Deste "5" pode-se fazer muito bem um "3". Três contos já é uma boa assinatura. Há maiores, mas são de pessoas obrigadas pelo cargo ou pelos milhões; o Bonfim, por exemplo, assinou dez contos.

Rubião não pôde reter um risinho irônico; abanou a cabeça, e não recuou dos cinco contos. Só emendaria, escrevendo o algarismo "1" atrás - 15 contos -, mais que o Bonfim.

- Seguramente, que pode dar cinco, dez e quinze contos - tornou o Palha -; mas o seu capital precisa cautelas, você está entrando muito por ele... Repare que já lhe rende menos.

Palha era agora o depositário dos títulos de Rubião (ações, apólices, escrituras) que estavam fechados na burra do armazém. Cobrava-lhe os juros, os dividendos e os aluguéis de três casas, que lhe fizera comprar algum tempo antes, a vil preço, e que lhe rendiam muito. Guardava também uma porção de moedas de ouro, porque Rubião tinha a mania de as colecionar, para a contemplação. Conhecia, mais que o dono, a soma total dos bens, e assistia aos rombos feitos na caravela, sem temporal, mar de leite. Três contos bastavam, insistiu ele; e provou a sinceridade pelo fato de ser justamente marido da fundadora da comissão. Mas o Rubião não desistiu dos cinco; aproveitou a ocasião para pedir-lhe mais dez; precisava de dez contos. Palha coçou a cabeça.

- Você desculpe - disse-lhe ao cabo de alguns instantes -, mas para que é que os quer? Não está certo que vai perdê-los, ou arriscá-los, ao menos?

Rubião riu da objeção.

- Se eu estivesse certo de que os perdia, não vinha buscá-los. Pode ser arriscado, mas não é sem arriscar que se ganha. Preciso deles para um negócio - quero dizer, três negócios. Dous são empréstimos seguros, e não passam de um conto e quinhentos. Os oito contos e quinhentos são para uma empresa. Por que abana a cabeça, se não sabe de que se trata?

- Por isso mesmo. Se você me consultasse, se me dissesse que empresa e que pessoas eram, eu veria logo se podia arriscar-se; e receio muito que nada preste, a não ser o dinheiro que se perder. Lembra-se das ações daquela Companhia União dos Capitais Honestos? Disse-lhe logo que este título era enfático, um modo de embair a gente, e dar emprego a sujeitos necessitados. Você não quis crer, e caiu. As ações estão por baixo, e já este semestre não há dividendos.

- Pois venda justamente essas ações; contento-me com o sólido. Ou então dê-me da caixa da nossa casa... Passo logo por aqui, se você quiser - ou mande-me lá a Botafogo. Caucione umas apólices, se lhe parecer melhor...

- Não, não faço nada, não dou os dez contos - atalhou fogosamente o Palha -. Basta de ceder a tudo; o meu dever é resistir. Empréstimos seguros? Que empréstimos são esses? Não vê que lhe levam o dinheiro, e não lhe pagam as dívidas? Sujeitos que vão ao ponto de jantar diariamente com o próprio credor, como um tal Carneiro, que lá tenho visto. Dos outros não sei se lhe devem também; é possível que sim. Vejo que é demais. Falo-lhe por ser amigo; não dirá algum dia que não foi avisado em tempo. De que há de viver, se estragar o que possui? A nossa casa pode cair.

- Não cai - acudiu o Rubião.

- Pode cair; tudo pode cair. Eu vi cair o banqueiro Souto, em 1864.

Rubião remoía os conselhos do sócio, não por serem bons nem prováveis, mas por achar neles uma intenção maviosa, revestida de forma crua. Agradeceu-os de coração, mas rejeitou-os; precisava dos dez contos. Podia ter mais tento, dali em diante, e afirmava-lhe que seria menos fácil. De resto, possuía de sobra, tinha dinheiro para dar e vender...

- Para vender só - emendou o Palha.

E, depois de um instante:

- Bem, agora é tarde, amanhã levo-lhe os dez contos. E por que os não há de ir buscar lá à nossa casa ao Flamengo? Que mal lhe fizemos nós? Ou que lhe fizeram elas, porque a zanga parece ser com elas, visto que o vejo aqui. Que foi, para castigá-las? - concluiu rindo.

Rubião desviou os olhos do sócio, cuja palavra lhe parecia afiada de ironia - como de pessoa que soubesse tudo, e risse dele. Quando lhos tornou, viu o mesmo semblante interrogativo, e respondeu:

- Não me fizeram nada; lá irei amanhã à noite.

- Vá jantar.

- Jantar, não posso, tenho uns amigos em casa; vou de noite. - E querendo rir: - Não as castigue, que não me fizeram nada.

"Alguém o possui", refletiu Palha logo que ele saiu; "alguém, por inveja às nossas relações... Também pode ser que Sofia lhe fizesse alguma para arredá-lo de casa..."

Rubião assomou outra vez à porta; não tivera tempo de chegar à esquina. Voltava para dizer que, precisando do dinheiro cedo, viria buscá-lo ao armazém; de noite iria então visitá-los. Precisava do dinheiro até às duas horas da tarde.

CAPÍTULO CIX

Nessa noite, Rubião sonhou com Sofia e Maria Benedita. Viu-as num grande terreiro, apenas vestidas de saia, costas inteiramente despidas; o marido de Sofia, armado de um azorrague de cinco pontas de couro, rematando em bicos de ferro, castigava-as despiedadamente. Elas gritavam, pediam misericórdia, torciam-se, alagadas em sangue, as carnes caíam-lhes aos bocados. Agora, por que razão Sofia era a imperatriz Eugênia, e Maria Benedita, uma aia sua, é o que não sei dizer com exatidão. "São sonhos, sonhos, Penseroso!" - exclamava um personagem do nosso Álvares de Azevedo. Mas eu prefiro a reflexão do velho Polonius, acabando de ouvir uma fala tresloucada de Hamlet: "Desvario embora, lá tem seu método". Também há método aqui, nessa mistura de Sofia e Eugênia; e ainda há método no que se lhe seguiu, e que parece mais extravagante.

Sim, Rubião, indignado, mandou logo cessar o castigo, enforcar o Palha e recolher as vítimas. Uma delas, Sofia, aceitou um lugar na carruagem aberta que esperava pelo Rubião, e lá foram a galope, ela, garrida e sã, ele, glorioso e dominador. Os cavalos, que eram dous à saída, eram daí a pouco, oito, quatro belas parelhas. Ruas e janelas cheias de gente, flores chovendo em cima deles, aclamações... Rubião sentiu que era o imperador Luís Napoleão; o cachorro ia no carro aos pés de Sofia...

Tudo acabou sem fim, nem fracasso. Rubião abriu os olhos; talvez alguma pulga o mordeu; qualquer cousa: "Sonhos, sonhos, Penseroso!" Ainda agora prefiro o dito de Polonius: "Desvario embora, lá tem seu método!"

A+
A-