Romance

Quincas Borba - A Estação

1886

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

 A primeira versão de Quincas Borba foi publicada na forma de folhetim na revista feminina quinzenal A Estação, entre 1886 e 1891, e difere bastante da versão romance (publicada em 1891 pela editora de B.L. Garnier), também disponível neste portal. Se o livro pode ser considerado plena expressão da maturidade do autor, o folhetim mostra-se obra em progresso, que sugere muito sobre o processo produtivo de Machado de Assis e a sociedade brasileira do século XIX.

Embora o cerne da narrativa permaneça o mesmo em ambas as versões, há entre elas significativas diferenças estruturais, com inversões, capítulos inteiros existentes em folhetim e suprimidos no livro e mudanças de nomes de personagens. O romance, por exemplo, inicia-se com Rubião - aí Pedro Rubião de Alvarenga e no folhetim Rubião José de Castro - vislumbrando a enseada de Botafogo de seu palacete na Corte, "coteja[ndo] o passado com o presente", preparando o leitor para a analepse que revelaria seu trajeto até ali e, mais tarde, encontraria novo sentido em sua loucura. O folhetim, ao contrário, se desenrola cronologicamente, abusando dos "ganchos" característicos do gênero, estendendo situações e cenas que parecem ter pouca função na trama principal. Durante os cinco anos em que foi escrito, é possível que Machado tenha repensado algumas vezes o enredo, o que talvez possa ter-se refletido na numeração dos capítulos, que várias vezes aparece errada, ora saltando números, ora repetindo-os.

Por outro lado, nesse longo desenrolar-se da narrativa podem-se observar e acompanhar flutuações de estilo e inconsistências que permitem uma série de reflexões. É interessante notar, através da obra, a modernização dos costumes cotidianos, como é o caso das noções de "almoço" e "jantar", que no folhetim não parecem estáveis, sugerindo o atravessamento de valores socioculturais que ultrapassam os termos objetivos da simples hora do dia em que são realizadas essas refeições. Tal modernização, é claro, é acompanhada pelos sentidos e sensibilidades, visíveis nas pulsões de loucura e sensualidade das personagens, bastante evidentes em Quincas Borba.

Curiosamente, a personagem de Rubião torna-se cada vez mais altiva (à medida que enlouquece) quanto menos dinheiro tem. Paralelamente, nota-se que a linguagem também marca diferenças segundo a condição social das personagens. O linguajar do cocheiro do tílburi que leva Rubião à rua da Harmonia, por exemplo, é muito mais próximo do português brasileiro contemporâneo que o das personagens mais abastadas. Mesmo nos casos de Palha e Sofia, parece que, ao longo do folhetim, conforme vão enriquecendo e ganhando status, suas falas vão ficando mais formais e carregadas, mais corretas do ponto de vista linguístico. Além de tornar mais complexa a construção social e psicológica das personagens, essas transformações sugerem também dados sobre o processo de criação do romance, cuja publicação passou por diversos intervalos no decorrer do tempo.

O primeiro esforço de divulgar a versão folhetim de Quincas Borba, respeitando sua configuração original, foi da Comissão Machado de Assis, que decidiu publicá-la como apêndice ao livro. Após muitas dificuldades em encontrar e reunir todos os números da revista, a edição em livro do romance foi publicada em 1959, sem os números de 15 de janeiro e 15 de abril de 1887. Em 2004, Ana Cláudia Suriani da Silva encontrou em um sebo um desses números desaparecidos, incluído nesta nova edição.

O texto desta edição foi estabelecido e anotado em conjunto por John Gledson e Ana Cláudia Suriani da Silva, na Grã-Bretanha. Acompanha a edição um "Guia para melhor entender o texto da versão-folhetim de Quincas Borba", da autoria dos dois pesquisadores do Reino Unido, cujo propósito é explicar os métodos adotados no trabalho de preparação e facilitar a leitura do folhetim, considerado por vezes de difícil compreensão. O trabalho de revisão e preparação de algumas notas foi realizado no Brasil, por Marta de Senna e Manuela Fantinato.

Na análise dos critérios editoriais e preparação das notas, optou-se por não repetir aquelas já dispostas na versão romance disponível neste portal, por se compreender que esta obra é dirigida a um leitor já ambientado na ficção de Machado, possivelmente um estudante de pós-graduação ou mesmo um especialista, que está menos interessado em informações básicas do que em questões históricas, da confecção da prosa machadiana e relativas às diferenças entre os dois romances. Além das citações e alusões histórico-literárias, foram inseridas notas esclarecendo expressões idiomáticas em desuso no português brasileiro contemporâneo, detalhes da história dos costumes cotidianos do século XIX e, sobretudo, diferenças deveras significativas entre ambas as versões de Quincas Borba (como nomes de personagens da irmã de Rubião e do próprio protagonista). Não foram anotadas diferenças estruturais em relação à ordem dos capítulos ou ao uso de palavras diferentes, deixando o trabalho e o prazer de desvendá-las ao próprio leitor.

Embora se tenha modernizado a ortografia segundo o Novo Acordo Ortográfico vigente desde 1º de janeiro de 2009, esta edição foi mantida o mais próxima possível daquela de A Estação, preservando as estruturas narrativas e usos de pontuação típicos de Machado e sua época, assim como as inconsistências originais. Nos casos de palavras cuja versão antiga ainda é aceita pelo dicionário, como "cousa", "dous", "calefrio" ou "céptico", foi mantida a grafia exata que aparece na revista. Enquanto as duas últimas permaneceram com suas grafias originais em todo o texto, não há padronização no uso das duas primeiras. Inconsistência similar aparece no caso de palavras estrangeiras, como "tílburi", que foi aportuguesado em todo o texto-fonte, diferentemente de "pouff", mantido em francês. Mais uma vez, o critério adotado foi usar as palavras exatamente como apareciam em A Estação.

Para melhor situar o leitor e envolvê-lo no clima original da revista, foram marcadas todas as datas e números das edições, assinalando-se aqueles em que Quincas Borba não foi publicado.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o universo de referências de Machado de Assis e seu tempo. O fato de ter-se previsto como público-alvo deste trabalho um leitor mais qualificado não significa que a obra seja restritiva. Ao contrário, espera-se que esta edição facilite o acesso de todos os interessados.

Registre-se aqui a colaboração, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, de Eduardo Pinheiro da Costa, Técnico em Ciência e Tecnologia da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Manuela Fantinato, bolsista do Programa de Incentivo à Produção do Conhecimento
Fundação Casa de Rui Barbosa

julho de 2014

Guia para melhor entender o texto da versão-folhetim de Quincas Borba

Esta edição da primeira versão de Quincas Borba, publicada em forma de folhetim na revista feminina quinzenal A Estação, entre 1886 e 1891, destina-se a facilitar o acesso a esse documento fascinante, que fornece muita informação sobre a composição do romance, as intenções e decisões de Machado de Assis, assim como as hesitações e dúvidas que o assaltaram ao longo desses cinco anos. Esta introdução expõe os fatos principais acerca dessa publicação e explica os métodos que adotamos no processo de edição, para facilitar a leitura desse documento às vezes difícil de entender.

Machado começou a publicação do romance no dia 15 de junho de 1886 a e terminou no dia 15 de setembro de 1891. O romance completo, em forma de livro, saiu pouco mais tarde; estava à venda em novembro de 1891. NT 1 Publicaram-se mais duas edições em vida do autor, em 1896 e 1899. Adotamos o sistema da Comissão Machado de Assis na sua edição crítica do romance ao chamarmos a versão publicada n`A Estação de versão A; a de 1891, de B; a de 1896, de C; e a de 1899, de D. NT 2 Interessam-nos apenas A, B e C, pois D é quase idêntica a C, ou, como diz o autor: "sem outra alteração além da emenda de alguns erros tipográficos, tais e tão poucos que, ainda conservados, não encobririam o sentido". Entre B e C, porém, há bastantes diferenças, que afetam mais de 400 parágrafos do romance; mas são infinitamente menos numerosas, e menos importantes, que as diferenças entre A e B - pode-se dizer que seus efeitos estão limitados à frase em que aparecem. Como dizem com razão os editores da edição da Comissão "nenhuma delas [...] vai ao cerne do livro". NT 3 As diferenças entre a versão em folhetim (A) e as em livro (B e C), pelo contrário, são enormes. Afetam, em maior ou menor grau, a grande maioria dos capítulos do romance. Há de tudo, desde palavras substituídas a frases, capítulos inteiros presentes na versão A, mas omitidos em B e C. Por outro lado, alguns capítulos (e palavras, frases e parágrafos) são ausentes em A, mas presentes em B e C. São menos numerosas, mas nem por isso menos importantes. Um exemplo só: na versão em folhetim, faltam os capítulos 6, 7 e 18, em que Quincas Borba expõe o Humanitismo para o "ignaro" Rubião, e este, já de posse da herança, aceita a teoria e sintetiza tudo na famosa frase "Ao vencedor, as batatas" - frase que, nessa altura do romance, nem existe no folhetim. NT4

A versão d`A Estação foi mais ou menos esquecida até os anos 1950, quando foi instaurada a Comissão Machado de Assis, sob a autoridade do Ministério de Educação e Cultura, para produzir edições críticas das obras. A edição de Quincas Borba talvez seja a sua realização mais importante: procuraram em muitas bibliotecas, dentro e fora do Brasil, localizar os números da revista e no fim recuperaram quase todos. Faltavam só quatro números, e, quanto a dois desses quatro (de 31 de maio de 1887 e 31 de julho de 1891), concluíram, a partir de evidências internas, que não se publicou o romance. Como veremos, houve várias lacunas na publicação, em boa parte causadas pelas incertezas do autor. Faltavam dois, os números de 15 de janeiro e de 15 de abril de 1887, que continham dois episódios importantes: o enforcamento do escravo no capítulo XLV e o salvamento de Deolindo no capítulo LX (ao final do fascículo sobrevivia apenas um fragmento). Felizmente, porém, um exemplar desse número e dos números de 31 de maio de 1887 e de 31 de julho de 1891 foram localizados por Ana Cláudia Suriani da Silva. NT 5 Podemos portanto confirmar, como a Comissão Machado de Assis já havia indicado, que naqueles dois números não se publicou o romance. Incluímos, é claro, os capítulos localizados, sobre o salvamento de Deolindo, nesta nossa edição. Significa que falta só um, e devemos esperar que um dia se encontre. Não há a menor dúvida que continha o episódio do escravo; NT 6 é verdade que está em uma parte do romance na qual as variantes são relativamente poucas, mas mesmo assim sua ausência é de se lamentar.

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A edição da Comissão foi publicada pela primeira vez em 1959 e, numa segunda edição em 1977, pela editora Civilização Brasileira, em convênio com o Instituto Nacional do Livro, do Ministério de Educação e Cultura. Apesar de ser uma edição indispensável, voltamos para o texto-fonte, o da própria revista. Tentamos ser fiéis às intenções do autor, como foram expressas, de duas em duas semanas, à medida que o folhetim se publicava.

Nosso texto distingue-se do da Comissão em dois aspectos importantes:

1) Modernizamos a ortografia. Na edição da Comissão, modernizaram (com certas restrições) o texto da versão final em livro. A versão A, a do folhetim, foi publicada num volume separado, intitulado "Apêndice", e, nesse segundo volume, é reproduzida a ortografia original, do século XIX.

2) Na edição da Comissão, as palavras da versão da revista retidas no romance final apareceram em itálico; as que foram excluídas, em redondo. Esse procedimento tem um interesse óbvio, mas decidimos que seria mais iluminador deixar ao leitor ou à leitora buscar as semelhanças e diferenças. Melhor que confrontá-lo com uma massa de detalhes, difíceis de digerir, oferecemos aqui, nesta introdução, um guia do processo de composição e suas peripécias, que visa dar um contexto mais abrangente, em que a relação entre os dois textos pode ser estudada. Os únicos itálicos usados nesta edição, portanto, são do original, do texto da revista.

Como veremos, o texto pode ser dividido, com relativa facilidade, em quatro estágios cronológicos, nos quais as relações entre os dois textos - grosso modo, A e C - são determinadas em boa medida pelo estágio da composição. Num apêndice, damos uma tabela mostrando as equivalências entre os capítulos de ambas as edições. Deve ser lembrado, porém, que essas equivalências variam muito, desde capítulos inteiros que são idênticos, a outros em que apenas duas ou três palavras são repetidas. E, claro, há capítulos inteiros, em cada versão, completamente ausentes na outra. Este, portanto, é um guia bastante rudimentar às mudanças entre as duas versões.

Antes de entrar em detalhes, devemos mencionar duas inovações desta nossa edição, cuja intenção é simplificar o processo de comparação.

1) Referimo-nos aos capítulos do folhetim por algarismos romanos (I, II, III etc.) e aos do romance em forma de livro por algarismos arábicos (1, 2, 3 etc.). Devemos sublinhar que este sistema não é o do livro, em quase todas as suas edições, nas quais se usam algarismos romanos. É uma questão exclusivamente de conveniência, para que se saiba imediatamente a qual versão nos referimos. Também por razões de simplicidade, excluímos as mudanças (mais de 600) entre B (1891) e C (1896). Como já foi dito, nenhuma delas afeta a substância do romance. A maioria são ajustes menores; em muitos casos, Machado manteve as palavras do folhetim, só eliminando-as para a versão definitiva. São consignados fielmente na edição crítica da Comissão Machado de Assis, no primeiro volume (ou seja, o do texto final, versão C).

2) Precisamos mencionar mais uma dificuldade na edição deste trabalho. Há vários casos em que a numeração dos capítulos está "errada". Ou omite-se um número de capítulo, ou, o que é muito mais frequente, a numeração vai para trás (vamos, por exemplo, de LVII para LVI). Alguns desses erros, é provável que sejam realmente deslizes do escritor ou do tipógrafo, ou melhor, paginador da revista, que durante pelo menos boa parte da publicação do romance era o poeta Alfredo Leite. NT7 Outros, pensamos, são intencionais - isto é, Machado publicou capítulos na versão A que sabia que não manteria na versão definitiva e ajustou a numeração para quadrar com o que, sabia, seria o romance final. Isso acontece sobretudo na segunda metade do romance, quando - veremos - algumas incertezas já deixaram de existir. Nesses casos, para facilitar a diferenciação entre os capítulos que levam o mesmo número, acrescentamos um (i), um (ii), ou até, em alguns casos, um (iii). É óbvio que estes (i), (ii) e (iii) não são da edição original, mas, na sua ausência, os riscos de confusão aumentam bastante. Na tabela das equivalências entre os capítulos das duas versões, comenta-se cada caso de "erro", dando uma possível razão e explicação dele.

Há uma exceção a esta regra, que nos traz a um tópico crucial e nos faz pensar que o leitor do folhetim tenha tido dificuldade em acompanhar a publicação quinzenal do romance em A Estação. Em quase 40 números da revista, publicados entre junho de 1885 e setembro de 1891, o romance não apareceu. O primeiro desses vácuos aconteceu em 31 de maio de 1887, onze meses após o começo da publicação; o último durou três números, em julho e agosto de 1891, um mês antes do fim. Não podemos duvidar que a maioria desses vácuos foi causada por dificuldades e hesitações na composição, sobretudo porque se congregam num período entre, grosso modo, maio de 1888 (poderíamos dizer até de julho de 1887), em que as diferenças das duas versões se acentuam, e novembro de 1889. Nesse período, uma pletora de evidências (muitos capítulos publicados mas omitidos no livro, muitas renumerações, números em que o romance não foi publicado) contribui para uma sensação de caos, de dúvida, de confusão. Em particular, ao longo de dois períodos estendidos, os cinco meses entre maio e outubro de 1888, e os quatro meses entre julho e novembro de 1889, o romance não foi publicado. Quando Machado recomeçou a publicação em 30 de novembro, tendo parado em julho no capítulo CXXII, começou no capítulo CVI, que reteve este número (106, portanto, no nosso "sistema"), na versão final do romance.

Já dissemos que há vários casos de renumeração, errados ou deliberados, no folhetim. Operam, porém, geralmente num âmbito pequeno (dois ou três capítulos, salvo num caso entre os capitulos CLII e CLVI, que mencionaremos adiante). Esta mudança é de outra ordem: de CXXII para CVI não é erro tipográfico. O que é mais: em novembro de 1889 inicia-se um período relativamente longo (até 31 de agosto de 1890), como entre os capítulos 21 e 70 mais ou menos (15 de setembro de 1886 a 31 de julho de 1887), em que as duas versões são quase idênticas. Ademais, certos elementos centrais são presentes depois de novembro de 1889, dos quais não há sinal antes dessa data, o mais importante sendo a identificação de Rubião com Napoleão III (já presente no último capítulo do primeiro episódio "pós-crise", o de 30 de novembro de 1889, onde, no sonho de Rubião, Sofia se identifica com a Imperatriz Eugênia). Dona Fernanda aparece pela primeira vez, também, no 1o de janeiro de 1890. Ela não é só central ao romance do ponto de vista temático: Machado depende dela para arranjar o casamento entre Carlos Maria e Maria Benedita, que, entre outras coisas, prova a Rubião que são infundadas as suas suspeitas de uma ligação clandestina entre Carlos Maria e Sofia.

Não há dúvida que, nesse período, Machado repensou e reeescreveu o romance. Este fato, despercebido por críticos da envergadura de Augusto Meyer e Alexandre Eulálio, é, porém, um fato. Chegamos, portanto, a uma conclusão que pode parecer paradoxal: não é possível pensar a primeira versão como um romance completo, uma obra de arte coerente, como se fosse um texto fixo, a que o autor tivesse simplesmente voltado, e polido. Ao contrário, é, até certo ponto, uma obra incoerente, que leva as marcas indeléveis das hesitações e mudanças do autor, os impasses que teve que superar - o que, claro, é grande parte do seu fascínio. Para dar um exemplo simples: no fim do romance, em Barbacena (Capítulo CXCVI, publicado em 31 de agosto de 1891, que se tornou 195 no livro), Rubião grita o famoso mote "Ao vencedor, as batatas". Se a infeliz leitora tentasse se lembrar dessas palavras, de que Rubião "se esquecera", mesmo se ela estivesse dotada de boníssima memória, não se poderia lembrar da "fórmula e da alegoria", porque não estavam na versão do romance que ela estava lendo. Como já foi mencionado, entre as duas versões, Machado acrescentou os capítulos 6 e 7, em que Quincas Borba expõe a alegoria das tribos e as batatas; acrescentou vários trechos em que se traça a forma peculiar da loucura de Rubião - o episódio da baronesa que encontra ao sair do escritório de Camacho (Cap. 62), as leituras de Dumas e Feuillet, e os sonhos do matrimônio de estrondo (Caps. 80 e 81), e até mesmo o momento, no Cap. 91, em que Rubião quer dar a mão a beijar aos seus comensais, mas retém-se a tempo, "espantado de si próprio". Tudo isso só aparece no livro.

O primeiro crítico a estabelecer a importância dessa quebra no folhetim foi John Kinnear, num importante artigo publicado em 1976, em Modern Language Review, "Machado de Assis: to Believe or not to Believe", que infelizmente nunca foi traduzido para o português. Ele acredita que a quebra marca o momento em que Machado conscientemente deixa de ser um narrador confiável (em que podemos acreditar - "believe") para adotar uma posição mais distante e não confiável (adotada novamente, com acréscimos, em Dom Casmurro). É por isso que, no primeiro parágrafo do Cap. CVI, ele ataca o leitor ludibriado, dizendo que não devia acreditar no "chocalho de rimas sonoras e delinquentes" que fez com que Rubião imaginasse um caso entre Sofia e Carlos Maria, que de fato não chegou a existir. E é verdade que, na versão pré-julho de 1889, o leitor sabe que Rubião está enganado, enquanto na versão pós-novembro do mesmo ano, é possível concluir que está certo. Digo "é possível" - a leitora também muito bem pode concluir, ou no mínimo suspeitar - que Rubião está enganado. Essa mudança é importante, sem dúvida, mas está longe de ser a causa única da quebra, que tem suas raízes numa constelação de dificuldades interligadas que impediram o progresso do romance - a começar pela natureza da loucura de Rubião, como mostram os acréscimos mencionados acima.

Dada a importância e a natureza dessa quebra na composição do romance, optamos por não estender suas consequências no sistema que adotamos para assinalar os números repetidos, o que faria com que distinguíssemos dois capítulos CVI, (i) e (ii) e assim por diante. Como no caso dos números romanos e arábicos, esta decisão é uma questão de simplicidade: é a consequência das causas contrastantes das respectivas repetições. Neste caso, onde há risco de confusão, é melhor referir-se simplesmente ao folhetim pré-julho de 1889 e pós-novembro de 1889.

***

Uma vez aceito este fato central, estamos prontos para entender a versão A como sujeita às mudanças na evolução do conceito do romance pela qual Machado passou. Com esta condição, esse texto, a primeira vista confuso, recupera a sua própria "coerência". Sem muita dificuldade, a versão em folhetim pode ser dividida em quatro partes, nas quais a relação entre as versões A e (B e) C é diferente.

1) A: Capítulos I-XXIII (15.06.1886 a 15.09.1886) C: Capítulos 1-20

Esta seção contém o começo do romance, situado em Barbacena; a amizade entre Quincas Borba e Rubião; a viagem do primeiro ao Rio de Janeiro; sua morte; o testamento; e o estabelecimento final de Rubião na Corte. Ainda que com certeza escrita antes do começo da publicação, e sem as pressões da publicação imediata, há diferenças consideráveis entre esta versão e a do livro.

Dessas diferenças, a mais importante é a remoção dos capítulos XX-XXIII para o começo do romance (capítulos 1 a 3). Assim, o romance em livro começa com Rubião já instalado, a contemplar a enseada de Botafogo. No folhetim, começamos em Barbacena, ao lado da cama do doente; o romance começa em ordem cronológica. De fato, mesmo no folhetim, os capítulos XX-XXIII, equivalentes aos 1-3, quebram a ordem cronológica, pois aparecem antes do encontro com Palha e Sofia no trem de Vassouras ao Rio, mas a decisão de colocá-los no começo do romance tem consequências importantes, mencionadas frequentemente na crítica. No nível mais simples, elimina uma complicação: o fato de já sabermos que Rubião enriqueceu fabulosamente tira o elemento de suspense um pouco postiço do começo do romance (será que vai herdar?), característica (é claro) do folhetim, mas que Machado evidentemente julgou desnecessário no contexto do livro. Vale a pena repetir que os capítulos 6, 7, 18 e 19 da versão-livro não estão no folhetim. Contêm a explicação do Humanitismo para o "ignaro" Rubião e a sua adoção do mote "Ao vencedor, as batatas".

2) A: Capítulos XXIV-LXXII (15.09.1886 a 15.08.1887) C: Capítulos 21-71

Esta seção nos leva ao encontro de Rubião com Palha e Sofia; seu estabelecimento no Rio de Janeiro; o "dia tão comprido" da reunião em casa dos Palhas, que culmina na cantada de Rubião no jardim; a memória da execução do escravo que lhe ocorre de volta para casa; e o longo capítulo (L), em que o casal discute o caso. Quinze dias depois, somos apresentados ao Camacho; vamos para o episódio de Deolindo; a introdução de Maria Benedita; e outra reunião, um baile em casa de Camacho, onde Carlos Maria continua a sua campanha de sedução de Sofia.

Durante boa parte desta seção, as duas versões são praticamente idênticas, e a publicação foi regular. Podemos concluir que boa parte foi escrita antes do começo da publicação, ou que, no mínimo, Machado sabia exatamente o que ia dizer: controlava o romance com confiança. Há, porém, bastantes ajustes importantes: um dos capítulos em que há mais mudanças é, justamente, o primeiro, Cap. XXIV (21) em que o encontro no trem é reescrito, a conversa fica mais natural, e o contexto histórico, mais detalhado. O Cap. XXVIII foi excluído praticamente inteiro; parece que Machado se deu conta de que a "volubilidade", a leviandade pseudofilosófica de Brás Cubas, não convinha tanto ao narrador em terceira pessoa. Já mencionamos os acréscimos que visam traçar mais abertamente a loucura de Rubião. No próprio episódio de Deolindo, no número redescoberto por Ana Cláudia Suriani da Silva, há mudanças importantes - até a idade do menino muda de "dois anos, se tanto" para "três ou quatro anos". O primeiro número em que o romance não foi publicado é o de 31 de maio de 1887 e pode ser que isto reflita o começo das dúvidas sobre o andamento do romance. Os elementos básicos do enredo central, que acompanham a crescente loucura de Rubião - o caso (gorado) de Carlos Maria com Sofia, o aparecimento de Maria Benedita em casa dos Palhas -, estão nos seus lugares. Mas parece que Machado não sabia como continuar.

3) A: Capítulos LXXXIII-CXXII (15.08.1887 a 31.07.1889) C: Capítulos 72-105

Nesta parte do romance, há mudanças enormes entre as duas versões, e é fácil ver que Machado tinha perdido o rumo. No Cap. XCVII, a publicação parou durante cinco meses, entre 31 de maio e 31 de outubro de 1888. Quando recomeçou, porém, foi com hesitação considerável. Aparecem de novo os intervalos na publicação, e surgem capítulos inteiros que é difícil imaginar que Machado tencionava publicar na versão definitiva; parecem escritos unicamente para cumprir com o dever quinzenal. Tamanhos foram os problemas, aparentemente, que a publicação parou de novo em julho de 1889, para recomeçar, dessa vez definitivamente, quatro meses mais tarde, em novembro do mesmo ano. Como já foi dito, parece que Machado já tinha reescrito e reorganizado o romance numa forma muito mais semelhante, embora não idêntica, ao Quincas Borba final, ou quase final, da versão B, a de 1891.

Esta seção é melhor compreendida como um todo, apesar da importante cisão, a mais longa de todas, entre maio e outubro de 1888. Machado deve ter acreditado que podia continuar onde abandonara o romance, sem remodelar fundamentalmente o que já escrevera. Há uma discrepância na numeração nesse intervalo também, mas é pequena (XCVII é seguido por XCVI), e bem possívelmente um simples erro.

Quais foram os problemas que Machado encontrou? É impossível ter certeza de compreender essa crise na sua totalidade, porque é complexa e envolve todas as áreas do romance - o enredo, o tom, o estilo, os personagens, a narração. Como já vimos, John Kinnear achava que tinha as suas raízes na narração - é uma parte da verdade, mas só uma parte. Diríamos que, se olharmos primeiro para o enredo, e em particular para os ciúmes crescentes e a incipiente loucura de Rubião, temos mais chances de entender o que aconteceu.

Vamos propor uma versão possível do que aconteceu. Podemos presumir que Machado sempre tencionou que Rubião suspeitaria de um caso entre Carlos Maria e Sofia - enganar-se-ia, e a prova do engano seria o casamento entre Carlos Maria e Maria Benedita (não podemos duvidar que este casamento estava nos planos originais do romance). Mas essas suspeitas infundadas levariam Rubião a sair da realidade e enlouquecer. Essa era a forma básica do que ia acontecer; mas revelou-se mais difícil de pôr em prática do que o autor tinha imaginado. Uma parte da dificuldade sem dúvida era a própria loucura, e como caracterizá-la. Como já se disse, a identificação com Napoleão III só apareceu em novembro de 1889. Lá, de fato, já aparece no fim do primeiro fascículo publicado depois do intervalo, no capítulo CIX, em que Rubião sonha com Sofia e Maria Benedita, e acrescenta: "Agora, por que razão Sofia era a imperatriz Eugênia, e Maria Benedita uma aia sua, é o que não sei dizer com exatidão." Machado se dera conta, parece, que a loucura tinha que ter um conteúdo concreto. Ao mesmo tempo, construiu a alegoria complexa que fez com que Rubião José de Castro se tornasse Pedro Rubião de Alvarenga, e portanto se identificasse com D. Pedro II (Pedro de Alcântara), e com o regime que, nesse mesmo mês, acabava de ser deposto no golpe de 15 de novembro. NT 8

Se olharmos para os textos das duas versões, devemos notar primeiro que, nessa seção do romance, a versão do folhetim é enormemente mais extensa que a do livro - mais que o dobro. Na versão A há mais de 26.500 palavras, na C, mais ou menos 11.500. Em boa parte isto é porque, no folhetim, há trechos extensos em que Machado estica situações que simplesmente não sabe resolver. Ele quer manter Rubião num estado de incerteza, de hesitação e, assim, de divisão mental. Isto significa que deve haver uma base para tais dúvidas, que aparecem na invenção do cocheiro, e umas poucas, mas essenciais, coincidências (o "moço" ficcional que vive na mesma rua dos Inválidos que o Carlos Maria real; a costureira real que vive na mesma Rua da Harmonia da história inventada; a circular endereçada a Carlos Maria que o moleque deixa cair...), que fornecem uma base para a sua hesitação. Mas a hesitação do Rubião acaba se transferindo, por extraordinário que pareça, ao próprio Machado. Entra no texto e faz com que (entre outras coisas) ele perca toda tensão, e a leitura se torne penosa.

Durante o primeiro intervalo longo, o de 1888, Machado empurrou o problema para frente, sem contudo solucioná-lo. Parece que foi nesse momento que inventou a Comissão de Senhoras, que permite a ascensão social de Sofia e Palha, mas que também permite à primeira mandar a Carlos Maria uma mensagem perfeitamente inocente, que, no entanto, atiça o fogo dos ciúmes de Rubião. Note-se que a importância da Comissão é dupla: contribui, por um acaso, para fazer subir de um grau os ciúmes do Rubião e também ilustra a mudança de cenário social que acontece na segunda metade do romance, em que saímos definitivamente da classe média baixa e ombreamos com a aristocracia, os políticos de alto escalão, e o mundo das finanças. A Comissão aparece logo no primeiro episódio depois do intervalo - XCVI (ii), portanto. Também, mais tarde, permitiu a entrada de D. Fernanda em cena. Mas, ou Machado ainda não a inventara, ou ainda não estava preparado para ela.

Aqui arrolamos alguns dos episódios que ou foram excluídos totalmente do romance final, ou de que só sobreviveram umas poucas palavras:

a) Antes do primeiro intervalo grande, em 1888, temos, primeiro, os Cap. LXXIII-LXXVIII, que tratam de Maria Benedita e Sofia, e as suspeitas que a primeira tem da segunda, dissipadas finalmente quando Maria Benedita acha - injustificadamente, claro - que Sofia vai avançar a sua causa com Carlos Maria. A origem do engano, o fato de Sofia "não querer perder o que não quer possuir" - e portanto não pronunciar o nome de Rubião e assim desfazer as ilusões da moça - talvez seja o momento mais genial da construção do enredo, porque permite à moça viver bem até que a felicidade chegue por outros caminhos; Rubião não é o único iludido. Segundo, os Cap. LXXX-LXXXI, trecho muito comprido que conta uma visita de Rubião à casa de Carlos Maria, querendo satisfazer as suas suspeitas sobre o caso (no romance final, vai à rua dos Inválidos três vezes, mas "não o encontrando, mudou de parecer" [Cap. 78]). Terceiro, os Cap. LXXXVII e LXXXIX, em que as visitas ao armazém do Palha, e ao Freitas moribundo, são muito mais extensas.

b) Na segunda seção, publicada entre outubro de 1888 e julho de 1889, os Cap. CI a CV se alongam mais na corrida de Rubião no encalço da costureira, e no encontro com o marido. O Cap. CVIII conta a ajuda dada por Rubião a um velho que foi atacado na rua - acontecimento irrelevante para o resto do enredo e que verossimilmente Machado queria que funcionasse como contraste com o episódio de Deolindo. Os Cap. CXII (ii) a CXII (iii) esticam (muito) a indecisão de Rubião sobre abrir ou não a carta-circular - o Cap. CXII (iii) focaliza, ao longo de mais de mil palavras, um dos comensais, Sarmento, que fica à espera de o Rubião descer para que possa comer (este personagem desaparece inteiramente no romance final). Nos Cap. CXVII (ii) a CXIX, Rubião primeiro diz a Sofia que tem uma carta dela - mas neste ponto, interrompe-os Maria Benedita; volta no dia seguinte, com um revólver, nada menos! Sofia abre a carta, que revela ser a circular. Rubião sai, completamente confuso e envergonhado. Os pensamentos de Sofia ocupam o Cap. CXX - do qual uma boa parte é retomada no capítulo 105 do livro, o último antes da quebra do capítulo 106 ("[...] ou, mais propriamente, capítulo em que o leitor, desorientado [...]"). Os Cap. CXXI e CXXII tratam de outros assuntos marginais ao enredo central (uma reunião da Comissão de Senhoras e um encontro de Rubião com o Major Siqueira), e as poucas palavras que reaparecem no livro ocorrem depois da mesma quebra, após novembro de 1889.

É importante assinalar que nesta seção, embora haja muita coisa excluída, e alguma coisa que, podemos ter quase certeza, Machado nunca pensou seriamente em incluir no romance, há também acréscimos no livro, notadamente os já mencionados Cap. 80 (o último parágrafo), 81 e 82, centrais para mapear o progresso da loucura ("que misterioso Próspero transformava assim uma ilha banal em mascarada sublime?").

4) A: Capítulos CVI-CCII (30.11.1889-15.09.1891) C: Capítulos 106-201

Nesta seção final, já solucionados os problemas precedentes, do enredo e do progresso da loucura de Rubião, esperaríamos que tudo corresse facilmente, "sem temporal, mar de leite". Até certo ponto, assim é. Contudo, há diferenças importantes entre as duas versões, que mostram que Machado ainda tinha suas dificuldades, embora menos fundamentais. Entre os Cap. 106 e 141, a identidade é quase completa, mas entre este ponto (31 de maio de 1890) e o fim, há, o que surpreende, oito números em que o romance não foi publicado, e alguns episódios muito curiosos que sumiram na versão definitiva. Parece que (um pouco como na segunda seção), Machado tinha preparado o texto até certo ponto, mas só até certo ponto, tanto que reaparecem as incertezas e as longueurs. Contudo, também nos parece que, às vezes deliberadamente, inventou passagens que sabia (ou suspeitava) que não sobreviveriam na versão final. A evidência disto em parte reside no fato de renumerar os capítulos, voltando sempre atrás na numeração, talvez tentando manter alguma semelhança com o romance final, tal como saberia que seria. Notamos que a diferença entre os capítulos finais é só de um algarismo (CCII contra 201), enquanto no folhetim há 114 capítulos nesta seção, no livro só 95.

O primeiro intervalo na publicação nesse período aparece no dia 30 de abril de 1890, e o primeiro trecho excluído vem pouco depois: os Cap. CXLII a CXLVIII (i) (31 de maio de 1890), sete capítulos que cobrem dois fascículos e que contam com algum detalhe a excursão à Tijuca dos três personagens centrais, Rubião, Sofia e Palha, durante a qual Sofia cai do cavalo e fica alarmada que Rubião possa ter vislumbrado mais do que a decência permite. Deste momento em diante há várias mudanças. Uma das mais interessantes acontece depois do passeio de carro que Rubião e Sofia fazem juntos, muito contra a vontade dela. No folhetim, Palha até pensa que ela pode ter inventado a história porque alguém os tivesse visto, e para explicar o que de fato fosse um encontro amoroso. O Palha, mordido de ciúmes, vai ao Alcazar Lírico, teatro popular de vaudeville. Lá encontra dois dos comensais do Rubião, que contam os sinais de loucura que já viam nele, e assim curam-se os ciúmes. Como se vê, é um episódio que pouco ou nada acrescenta ao enredo - mostra os ciúmes do Palha, para logo dissipá-los. Outros episódios excluídos, em parte ou inteiramente, encenam Teófilo e D. Fernanda (CLXXX-CLXXXI [i]); Carlos Maria, Maria Benedita, e Sofia (CLXXXI [ii] e CLXXXII; D. Fernanda e Dr. Falcão (CLXXXIX); e as reações de Sofia e D. Fernanda ao nascimento do filho de Maria Benedita (CXIV).

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