IV
Deixando a casa de Maria Luísa, Eduardo tomou um tilbury e mandou tocar para a ponte das barcas de São Domingos.
Dentro de dez minutos estava lá.
Apeou, pagou o tilbury e entrou na estação. Aí esperou a primeira barca que devia partir, e que era a das duas horas e meia. Entre os passageiros que esperavam houve um que mereceu desde logo a atenção e os cumprimentos de Eduardo.
Era um homem de quarenta e cinco anos, baixo, meio gordo, fisionomia insinuante, destas que, mesmo sérias, trazem impresso inconstante sorriso.
Eduardo dirigiu-se para ele e cumprimentou-o afetuosamente, dizendo:
- O Sr. Almeida dá-me um grande prazer. Não contava desde já o prazer de cumprimentá-lo.
- Por quê? - perguntou o indivíduo, dando a Eduardo lugar ao pé de si.
- Porque só daqui a três quartos de hora contava estar em sua casa.
- Ah! Tanto melhor! Tanto melhor!
- Toda a família está boa?
- Tudo vai indo, obrigado. Há quantos dias não vai lá?
- Creio que há dous.
- Ainda ontem Sara falou em seu nome. Ontem não, creio que foi hoje de manhã.
- Deveras? - perguntou Eduardo sem dissimular a alegria que lhe dava esta notícia.
Neste momento, chegava a barca, os dous tomaram passagem, daí a três quartos de hora estavam à porta da chácara de Almeida.
Sara, a filha deste, o objeto do segundo amor de Eduardo, veio recebê-los à porta. Mais atrás vieram o filho e o irmão de Almeida. Eduardo foi recebido por todos com verdadeiro regozijo.
Em duas palavras apresento a família de Almeida ao leitor.
Almeida, na época em que se passam estes acontecimentos, vivia do que ganhara durante uma vida laboriosa de longos anos. Não vivia com parcimônia, mas também não era pródigo. Tinha a ciência da economia doméstica, mediante a qual sabia despender utilmente, sem faltas nem sobras.
Era viúvo. No fim de oito anos de casado, morrera-lhe a mulher, deixando dous filhos, um rapaz e uma menina.
A menina era mais velha que o rapaz; contava este seis e aquela sete anos, quando morreu a mulher de Almeida.
Almeida completou por si a educação tão zelosamente começada por sua mulher. Sara cresceu sob os melhores auspícios. Aumentou em beleza e conservou até à idade de dezessete anos a inocência e a graça da infância. Era um bom coração em toda a pureza da palavra. Nenhuma nuvem negra perturbara o céu sempre claro do seu espírito.
Quanto à beleza física, imagine o leitor o que podia fazer contraste com a beleza da viúva Maria Luísa. Esta, como disse já, acusava em suas feições uma alma dada à violência das paixões, uma rara energia moral. Sara não era assim. Parecia uma criatura do outro mundo, caída por engano no mundo dos Eduardos. Era um alfenim, uma delicadeza que não parecia natural. Delgada e um tanto alta, olhos negros, cabelos alourados, porte senhoril sem altivez, elegante sem artifício, graciosa sem afetação; tal era Sara.
Se a compararmos à viúva, teremos, conforme a respectiva presença, a disposição do gênio de cada uma. Maria Luísa amava como as italianas; era ardente, apaixonada, violenta. Sara amava como as alemãs; era meiga, resignada, sentimental.
Estas duas mulheres diversas na índole, no gênio, talvez no coração, ligavam-se em um ponto: no amor por Eduardo, em que viam, cada uma pelo prisma do seu espírito, o ideal sonhado em suas doces aspirações.
Disse acima que após Sara tinham ido receber Eduardo um irmão e um filho de Almeida. Não têm estas duas figuras máxima importância na nossa história, mas devo designá-las como partes integrantes da família de uma das heroínas.
O tio de Sara tinha por nome Silvério. Era um aposentado da atividade. Em moço, e até certa idade madura, fora incansável trabalhador. Agora, descansava à sombra da fortuna e da amizade fraterna do pai de Sara.
Tinha sido solicitador de causas, e deste emprego, exercido por longos anos, trouxera até à velhice um espírito chicaneiro e discutidor. Era, além disso, uma inteligência acanhadíssima, frívola, tola, rasteira. Dava-se à apreciação de quantas anedotas e dictérios ouvia ou lia. Fazia a autópsia das necedades escritas em jornais, com o mesmo espírito com que outrora redigia um embargo ou uma assinação de dez dias.
Era aturado, estimado mesmo, em virtude de sua velhice, de seu grau de parentesco e de algumas virtudes que tinha.
Um espírito daquela natureza não podia fugir às seduções do jogo do xadrez, do qual dizia, creio eu, a divina Staël, que para jogo era demasiado sério e para negócio, demasiado frívolo. Cito de memória.
Era, com efeito, um grande jogador de xadrez o tio Silvério. Por desgraça Eduardo não o era menos, de modo que mal se anunciou a visita deste, Silvério correu para a porta com os braços abertos.
O filho de Almeida era um rapaz de dezesseis anos. Estudava direito em São Paulo. Durante os acontecimentos que estou narrando estava ele em férias no Rio de Janeiro.
A família Almeida recebeu Eduardo, como disse, com o mais cordial acolhimento.
Parecia um filho que chegava de longa viagem.
E para aquela gente, que estremecia tanto a formosa Sara, não era um filho aquele que a salvara da morte?
Enquanto Eduardo e Almeida descansavam do pequeno caminho que tinham feito, tratou-se dos preparativos do jantar. Sara ia e vinha com uma graça encantadora. Dizia duas palavras a Eduardo, uma ao tio Silvério, duas a seu pai, sempre com aquele recato e modéstia, que tanto agradam, quando são verdadeiros, e tanto enjoam, quando são artificiais.
Na sala, sobre uma mesa, estava um livro aberto. Eduardo procurou ver o que era; levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia. Um lenço marcado com a firma de Sara, atirado sobre as folhas abertas, para marcar a página, indicava quem estivera lendo a obra-prima de Bernardin de Saint-Pierre.
Eduardo pegou no livro e no lenço e foi sentar-se junto de uma janela. Sua vaidade impava de contente. Tinha diante de si um coração virgem, completamente virgem: um coração que ainda podia ler Paulo e Virgínia. Amar, conquistar, possuir esta menina, era surpreender a flor no botão; era ensinar o catecismo do amor, soletrar o credo do coração, a uma ignorante, a uma pura, a uma ingênua. Que mais podia ambicionar o caprichoso namorado?
Se alguma das pessoas da família tivesse olhar mais perspicaz poderia decerto descobrir no olhar e no sorriso com que Eduardo folheou o volume toda a satisfação de sua alma egoísta.
Pedro Elói, esse com certeza adivinharia tudo e diria tudo quanto pensasse. De longe, Eduardo podia desdenhar os conselhos prudentes do seu amigo, a quem chamava filósofo e santo milagroso; mas de perto não seria assim. Pedro Elói tinha de fato certo ascendente sobre Eduardo, que lhe seria de maior proveito se lhes fosse possível conviver.
Depois de alguma espera, Sara mandou anunciar que o jantar se achava na mesa, e foi ela mesma buscar Eduardo, seu pai e seu tio.
- Que está lendo aí? - perguntou ela a Eduardo, entrando na sala.
- Ah! Perdão - respondeu este -. Foi uma ousadia de que me arrependo; mas este livro aberto por suas mãos, lido por seus olhos, devia ter adquirido uma virtude nova e eu quis aspirar-lha antes que outro o fizesse. Perdoa-me?
Almeida sorriu-se ouvindo estas palavras de Eduardo; Sara tomou-lhe o livro docemente, tocando com os seus dedos nos dele, e lançando-lhe um olhar da mais franca e pura satisfação; Silvério contentou-se em tomar uma pitada, dizendo:
- E contudo este moço joga bem o xadrez!
A palavra xadrez fez estremecer Eduardo. Era o sinal de um perigo iminente. Todavia, como fino cavalheiro que era, ofereceu o braço a Sara e seguiu acompanhado de todos para a mesa do jantar.
Até aquela hora um só minuto não pudera falar a sós com Sara. Durante o jantar era impossível. O jantar foi demorado mais que de costume. Aproximou-se a noite. Finalmente levantaram-se todos e foram dar um passeio pelo jardim.
Aí, graças à circunstância de dar o braço a Sara, pôde Eduardo falar-lhe mais livremente, apressando ou demorando o passo conforme as necessidades.
- Soube que tem pensado em mim - disse Eduardo a Sara caminhando ao longo de uma cerca de roseiras loucas-. É verdade?
- Não sei - respondeu a moça.
- Vejo que é uma confirmação.
- Quem foi o indiscreto?
- Foi seu pai, mas é verdade?
- É sim; creio que não fiz mal.
- Mal? Oh! Nenhum! Fez a minha felicidade.
- Só em pensar?
- Pensar é interessar-se; interessar-se é... sabe o que é?
- Não sei - respondeu Sara corando.
Eduardo queria que a confissão viesse da moça. Esta, para disfarçar a sua perturbação, voltou-se e falou a seu pai acerca de algumas necessidades do jardim.
Daí a cinco minutos a conversação entre Eduardo e Sara continuou.
- Sara...
A moça estremeceu ouvindo este modo de falar.
Depois, erguendo os olhos para Eduardo, pareceu dizer-lhe mudamente: continue!
- Sara - continuou Eduardo -, não posso, não quero, não devo ocultar-lhe por mais tempo o sentimento que a sua beleza me inspirou. Amo-a, Sara, amo-a muito, muito. Desde que eu tive a ventura de salvá-la das ondas senti que tinha achado o objeto dos meus sonhos. O ideal da minha imaginação. Para ser completamente feliz basta que o seu coração responda aos sentimentos do meu; basta, para fazer-me desgraçado, a sua recusa ou a sua indiferença. Diga, Sara, ama-me também?
A moça estava embriagada ouvindo esta linguagem. Houve um silêncio em que ela se deleitava ainda com a música das palavras de Eduardo.
Este repetiu a pergunta.
- Sim - respondeu a moça -, sim!
As duas mãos se procuraram. Pararam um instante e tinham os olhos embebidos. Assim se passou algum tempo, até que Silvério os foi chamar, clamando:
- Então, que é isso? É o jogo do sério?
Os dous voltaram à vida.
Caindo a noite voltaram todos para a casa. Eduardo ia despedir-se, quando lhe surgiu, armado de um tabuleiro de xadrez, o tio Silvério. Não havia meio de recusar, não já porque o exigisse a delicadeza, mas ainda porque Silvério era dos tais que, em pedindo qualquer cousa, põem a gente num suplício.
Eduardo viu-se obrigado a aceitar a partida de xadrez.
Para a filha de Almeida era isto uma grande felicidade. A conversa do jardim decidira-lhe o coração. O que podia haver de incerto naquela natureza fraca, indecisa, naquele espírito simples e ingênuo, desaparecia diante dos sentimentos que as palavras de Eduardo despertaram. Até então, a moça sentia alguma cousa que a arrastava para aquele homem, mas nem o dizia, nem mesmo interrogava a si própria a razão do novo estado.
Agora tinha-se-lhe clareado o horizonte. Era amor que sentia, e amor daqueles que só as almas elevadas são capazes de sentir. O admirável instinto da mulher dera-lhe o resto do que não pudera interpretar das palavras de Eduardo.
Sara sentia-se feliz. Quando Eduardo declarou aceitar a partida de xadrez a moça sentiu que o coração lhe palpitava com mais força. Ela própria foi dispor o necessário para o jogo, não sem levantar muitas vezes os olhos para Eduardo, cujo olhar, pregado nela, exercia uma como que fascinação.
Adivinha-se o resto. Entre a paixão do jogo dominante em Silvério e os olhares instantes de Sara, Eduardo viu correr as horas sem arredar pé. O jogo deu-se por terminado à meia-noite. Apenas tinham jogado duas partidas, em que Silvério ganhou sempre. Isto porque ele não estava apaixonado, e Eduardo, se não o estava, acreditava estar, o que não deixa de produzir algum efeito, como a moléstia imaginária fazia Orgon conservar-se na cama.
Silvério apertou afetuosamente a mão de Eduardo prometendo-lhe ficar pronto para dar-lhe desforra.
À despedida Sara, em quem já dominava mais o amor que a ingenuidade infantil, colheu no jardim uma flor das roseiras loucas, ao pé das quais tivera a conversa com Eduardo, e ofereceu-a.
Eduardo aceitou, sorrindo a um remoque paternal do velho Almeida, que ainda não calculava o estado do coração de sua filha.
Mas, como fosse saindo sem nada dizer, Sara fê-lo parar, e disse-lhe em voz alta, visto não poder ser de outro modo:
- Eu cuidava que me devia retribuir a dádiva com outra... com essa flor que traz aí no peito.
Eduardo olhou a casa do paletó e viu a rosa que lhe fora dada por Maria Luísa. Tirou a flor e deu-lha.
Depois saiu.
Na rua ocorreu-lhe a lembrança que tinha prometido ir tomar chá com Maria Luísa. Lembrara-se dela algumas vezes, em casa de Almeida, mas a promessa do chá varrera-se-lhe inteiramente da memória.
V
Nas cenas que até aqui tenho esboçado tentei mostrar a leviandade e a vaidade de um homem que fazia jogo com as paixões e os sentimentos ingênuos de duas criaturas.
Não há inverossimilhança nos fatos, todos concordarão; mas também não há inverossimilhança nos sentimentos de Eduardo, atendendo-se a que era um espírito para o qual nada havia fora do culto da própria personalidade.
Acreditando-se sinceramente apaixonado e não podendo distinguir a natureza do amor e a natureza dos desejos, Eduardo servia de algum modo aquele culto. Armava à incredulidade; sabia que não era fácil acreditar em que se tivesse feito apaixonar; mas o assombro da novidade, os comentários, a fé que começaria a entrar nos espíritos e que se robusteceria quando ele pudesse passar do estado de solteiro para o de casado, tudo isto eram os aguilhões com que o seu amor-próprio sentia-se brioso e compelido a prosseguir na conquista.
Sara veio complicar as cousas no que dizia respeito ao casamento de Eduardo; e por esse lado afastou-o do alvo a que pretendia chegar; mas, se o afastou, não foi senão para dar lugar a nova e maior extravagância, essa do amor por duas mulheres, a donzela e a viúva, na mesma intensidade e no mesmo grau.
Perguntará o leitor como é que um homem de tão bom senso como Pedro Elói parecia tão amigo de Eduardo. A resposta está contida nas duas cartas que eu já li. Pedro Elói, com um olhar de filósofo, via que não era impossível trazer Eduardo ao bom caminho. Os defeitos morais podem levar a consequências grandes, mas, com a austeridade da lição e da prática, são suscetíveis de desaparecer e tornar-se melhor o espírito em que eles existem: Pedro Elói tentava isto de longa data; e como vemos na carta de Eduardo, operava como um santo e um filósofo. Tinha conseguido tudo quanto desejava? A este respeito o procedimento de Eduardo desmente a submissão afetada da carta. Que alguma cousa tivesse feito, acredita-se, mas não fez tudo, nem muito.
Vejamos agora como continuavam os dous episódios amorosos que Eduardo entretinha com tanto cuidado.
Em casa de Maria Luísa, no dia seguinte, foi Eduardo mal recebido; a viúva mostrava uma frieza e uma indiferença que não eram mais do que os véus com que se cobriam o despeito contido, a dor sufocada.
A promessa não cumprida ligava-se a outras faltas de Eduardo; e para um coração amante, sobretudo para um coração como o de Maria Luísa, não eram essas faltas facilmente desculpáveis.
Maria Luísa sentia já naquilo um desdém, um sintoma de resfriamento do amor, e pressentia não sei que más novas para o futuro.
Eduardo explicou-se como pôde. Alegou a doença de um amigo, acrescentando que pouco lhe importaria perder o amigo por amor dela, mas que, instado por dous outros em tom imperativo, tivera de ceder-lhes.
Maria Luísa acreditou ou fingiu acreditar na desculpa. De um ou outro modo é certo que ainda derramou algumas lágrimas. Não sei que haja alguém que possa resistir às lágrimas de uma mulher. Falo das lágrimas sinceras. É o que há mais poderoso para desarmar a cólera ou comover o egoísmo. É como que um protesto de fraqueza, e resistir-lhe não é de alma nobre nem de consciência elevada.
As lágrimas tiveram efeito, mas um efeito excepcional; faltavam a Eduardo as qualidades delicadas para apreciar o valor de uma lágrima sincera. Era o amor-próprio que se comprazia em ver chorar aqueles olhos e comover-se aquela alma. Seguiram-se protestos descarados, velhos, repetidos, sem sentimento nem valor.
Dizia Maria Luísa, enxugando os olhos:
- Vejo que me não ama; vejo que me não compreende. Ah! Se me compreendesse e amasse...
A isto respondia Eduardo:
- O quê?... Não amo? Eu! Não diga isso! Mais que a vida... etc...
O leitor conhece o resto.
Enfim a tempestade serenou. Despontou um sorriso nos lábios de Maria Luísa, como um sinal de aliança. Eduardo mostrou-se satisfeito com o desenlace e disse:
- Vê? A dor de a ver em lágrimas retinha as minhas próprias. A alegria é mais expansiva; agora que a vejo alegre e me perdoa sou eu quem chora!
Este rasgo tinha suas dificuldades; a maior era que chorar sem lágrimas não convencia, e Eduardo tinha os olhos secos como os do leitor, que ainda não teve, nesta história, motivo de chorar. Por isso tirou da algibeira um lenço e levou aos olhos, conservando-se algum tempo nessa posição.
Foi despertado por um pequeno grito de exclamação de Maria Luísa. Tirou, ou antes foi-lhe tirado o lenço da mão. Maria Luísa, depois de olhar para o lenço, fitou os olhos em Eduardo e perguntou-lhe:
- Quem é esta Sara?
Eduardo estremeceu, olhou para o lenço, depois para Maria Luísa, depois para o teto.
- É uma prima minha.
- Nunca me falou nela... - disse Maria Luísa.
- Como não lhe falei de outros parentes. Isso que prova? É de uma prima. Fui ontem visitá-la e trouxe este lenço. Está com ciúmes?
- Não - respondeu a viúva.
E entregou-lhe o lenço.
Como o leitor adivinha, era o lenço de Sara, que marcava a página de Paulo e Virgínia.
Houve um silêncio entre ambos.
Maria Luísa refletia: "É bem possível que o lenço seja da prima; por que não? Realmente, sou exigente demais. Ele não parece mentir. Por que havia de mentir?"
Depois levantou-se e disse sorrindo a Eduardo:
- Vou tocar piano!
Eduardo levantou-se e foi sentar-se ao pé do piano. Ela começou a preludiar e depois a cantar aquela canção francesa tão conhecida e que parecia adequada à situação:
Deixo ao leitor calcular quanta paixão a bela viúva empregou na execução do canto. O próprio Eduardo pareceu um tanto convencido.
Enfim, o dia passou-se sem maior novidade no céu do amor de Maria Luísa. Dissipadas as primeiras dúvidas, Maria Luísa sentia-se feliz como dantes. Eduardo esteve contente de si.
VI
Três meses decorreram depois dos fatos que acabo de contar. Durante esse tempo houve a reprodução das mesmas visitas, alternadamente a Maria Luísa e a Sara.
Nem uma, nem outra suspeitou nunca da fidelidade de Eduardo. O episódio do lenço foi esquecido pela viúva, em cujo coração o amor crescia tanto como no de Sara, sem que entretanto o espírito de Eduardo se apercebesse de que uma tal bigamia moral podia levar a sérias consequências.
Duas vezes, no espaço dos três meses, Maria Luísa, em conversa com Eduardo, procurou encetar o assunto do casamento. O silêncio de Eduardo parecia-lhe timidez, e a coitadinha cuidava adiantar alguma cousa, iniciando uma conversação a esse respeito.
Enganara-se. Eduardo, mal pressentia que o espírito de Maria Luísa se voltara para a igreja, mudava de assunto com tão rara habilidade que a própria moça não percebia a trama.
Das apreensões às incertezas, das incertezas ao desânimo, Maria Luísa não podia atinar, nem com a natureza do amor de Eduardo, nem com os fins de sua paixão.
Quanto a Sara, sentia-se feliz e nada ousava indagar nem saber. Aquele amor eram as primícias do seu coração. Julgava-se uma Virgínia e pensava ter encontrado o seu Paulo! A pobre menina não tinha nem o tato nem o contato do mundo; o tato para conhecer o espírito de Eduardo, o contato para saber da opinião que faziam dele. Vivia isolada, no meio de sua família, julgando o resto do mundo pela vida que levava e pelos afagos sinceros que recebia.
No fim do tempo de que acima falei, era uma quinta-feira, preparava-se Eduardo para um baile que dava o conselheiro C***, não sei por que motivo ou por que pretexto. Sara devia ir, e Eduardo, cuja fama do amor por Maria Luísa já era conhecida, queria, coram populo, mostrar a nova paixão ou antes a paixão concorrente da menina Sara.
Preparava-se, disse eu, mas não era bem isso, visto que apenas eram dez horas da manhã. Preparava-se para saborear as delícias que a admiração e a inveja lhe haviam de fornecer.
- Não há dúvida - pensava ele -, sou amado por aquelas duas mulheres. Ambas me querem; adoram-me ambas. Mas por que motivo, eu, a quem tantas fortunas coube em sorte, estarei tão orgulhoso com o amor destas mulheres? É que as amo? Não há dúvida, amo-as; estremeço-as do mesmo modo. Diga lá o filósofo o que quiser, este duplo amor não é impossível; tanto não é, que existe. Oh! Se existe...
Eduardo fazia estas reflexões contemplando os novelos de fumaça de um charuto de havana.
Tinha almoçado bem e fazia o quilo, com aquele descanso dos homens que não têm cuidado no que há de ser a refeição seguinte. Estava em uma completa embriaguez dos sentidos.
Naquelas e em outras reflexões estava, quando o criado lhe trouxe uma carta que o correio acabava de entregar. Abriu-a e leu-a rapidamente. Era de Pedro Elói. Dizia o filósofo de Petrópolis:
Meu caro Eduardo,
Resolvi mandar-te novas minhas, já que não me mandas as tuas. Esperei o que podia esperar. De duas uma: ou esqueceste o velho amigo, ou continuas embriagado nessa fatal paixão dos sentidos, dupla, segundo dizes e eu acredito.
Em qualquer caso, interessa-me escrever-te.
Ah! Quem me dera ter-te agora no meu chalet, preso, atado, amordaçado, vendado, inofensivo, para descanso da humanidade e para a felicidade do meu coração!
Estou certo que os meus conselhos, o meu exemplo e até o meu olhar bastariam para dar-te aquela regra de conduta própria dos homens que aspiram e têm o direito de aspirar.
Mas enfim, deixemos lamúrias e falemos conciso e preciso do que importa saber.
Vou apostar que as tuas duas paixões estão extintas, como já estão extintas as fogueiras que arderam no último São João? Há de ser assim. É da natureza desses assomos sensuais irem tão súbito como aparecem.
Se não é assim, deixa que eu te considere o mais infeliz dos homens. Dirás que não, e assim te parece, com efeito; aos espíritos jovens mais ou menos gastos, o futuro é nada, o presente é tudo. Não lhes falem do que pode ser consequência dos atos de hoje. O que desejam é a satisfação dos prazeres, a realização dos caprichos, sem mais cuidar no desenlace das cousas, nem na lógica forçada do crime.
Escrevi a palavra crime, e não foi por engano. É preciso dizer-te a verdade nua e crua. Ocultá-la é ser de algum modo cúmplice nos teus atos, e eu não quero para mim semelhante papel.
Dizes que amas a essas duas mulheres. Acredites ou não acredites, é certo que lhes fazes compreender a tua paixão. Supõe que elas te acreditem, e, por tuas maneiras e graças, consegues convencê-las, e mais, fazeres-te amado. O que resulta daqui? Resulta não uma iludida, mas duas, porque, não amando nenhuma, e tendo a tua paixão mui estreito limite, ambas se acham despojadas das ilusões do futuro e da fé que as alimentava.
Que acontecerá? Qual será a consequência desse desencanto? Sabes tu a profundeza das duas almas a quem iludes? Sabes de que serão capazes? Pressentes o fogo em que vais queimando as mãos?
Falo-te uma linguagem em vez de outra, mas é a única que podes ouvir agora. A que eu devera falar era a linguagem do dever; em vez de indicar-te as consequências dos teus atos, eu devera dizer simplesmente que os teus atos eram criminosos diante da moral eterna. Mas far-me-ia ouvir?
Se em vez dos magníficos cabelos pretos que me adornam a cabeça e dos olhos vivíssimos com que neste momento olho para este papel, eu tivesse honradas cãs e olhos moribundos, sei o que dirias ao ler esta carta; sou moço, como tu; sou apto, como tu, para as paixões; mas há uma diferença: eu as domino, porque as paixões não são invencíveis, e só uma moral interesseira e egoísta pode dá-las como tais. Tenho, portanto, além do meu conselho, o meu exemplo.
Olha, por que não vens passar uns dias comigo? Eu te prometo que começarei a cura de modo mais suave.
Se não vieres, sou eu que vou, mas conforme a tua resposta. E repara bem, comigo é inútil o disfarce. Falta-te o talento de iludir a homens experimentados. Se mentires eu cá sei como te hei de ler.
Em qualquer caso, escreve-me. Terei ao menos o prazer de ver letras de um amigo.
Ah! Se compreendesses bem o valor desta palavra!
Adeus. Sê prudente. O Espírito Santo te ilumine.
Pedro Elói.
O tom decisivo, a linguagem nua desta carta não convenceram Eduardo. Não direi que o não abalasse. Custou-lhe engolir algumas das expressões duras de Pedro Elói. Mas o que era aquilo senão o que ele próprio pedira?
Eduardo pensou na resposta. Devia negar ou dizer a verdade? A prevenção de Pedro Elói quanto à veracidade dos fatos indicara claramente que era inútil a mentira. Não havia senão isto: ou dizer a verdade ou não escrever. Eduardo refletiu alguns minutos; resolveu escrever dizendo a verdade, porém mais tarde.
Deitou a carta na secretária, e ia sair quando lhe foi anunciada a visita de Silvério.
Mandou entrar, e daí a pouco o valente jogador de xadrez aparecia à porta, com ar risonho e gesto afetuoso.
Era a primeira vez que Silvério visitava Eduardo. Por isso levou longos minutos a examinar e admirar a casa e a mobília, não se escondendo para dizer o que achava de mais gosto ou de mais delicado.
- Isto é propriamente uma casa de solteiro - dizia ele -; mas ainda casando, não sei que haja muita mudança a fazer. Basta substituir estes quadros...
- Que quadros? - perguntou Eduardo.
- Estes - respondeu Silvério apontando para umas gravuras que pendiam na parede, representando cópias de várias estátuas célebres.
- Não me dirá por quê, Sr. Silvério? - perguntou Eduardo, atirando-se a uma cadeira de junco.
- Não são próprias - respondeu modestamente o antigo solicitador.
- Mas sabe o que representam estes quadros?
- Pois não estou vendo?
Eduardo contentou-se em sorrir.
- Substituídos os quadros, creio que não há mais nada - continuou Silvério -. Ah!... Sim, ainda há. É retirar esta caixa de fumo, estes cachimbos, estes charutos, enfim tudo quanto diz respeito ao vício de fumar!
- Isto é, se eu me casar devo renunciar às obras-primas da arte e às obras-primas da indústria.
- Eu lhe digo. Sara não gosta de fumo...
- Sara! - disse Eduardo levantando-se da cadeira.
- Ah! Pronunciei o nome... Não precisa vexar-se, maganão! Já sabemos das suas artes... Fez-se amado!... Oh! E muito! Pois é assim! Ela não gosta de fumo, não gosta nada, mesmo nada, nada!
Eduardo estava espantado com as palavras de Silvério. Não atinava ainda com o fim daquilo. Viria sondá-lo? Viria repreendê-lo? Na dúvida, sentou-se vagarosamente na mesma cadeira e esperou que o ex-solicitador continuasse.
Silvério puxou outra cadeira e sentou-se defronte de Eduardo.
- Pois, meu caro Eduardo, é como lhe digo. Estão sabidas as suas travessuras. Sei que se amam com fervor e creio que só um receio pueril e inexplicável tem retardado de sua parte um pedido que só pode ser aceito com o maior alvoroço.
Eduardo, ouvindo estas palavras, calculou pior; calculou que Silvério era comissário do pai de Sara. Em tal caso cumpria-lhe responder de modo que nada sacrificasse. Ia falar, mas Silvério continuou:
- Não cuide - disse ele - que venho aqui por inspiração de terceiro. Venho por minha própria resolução. Mal soube do fato, corri a procurá-lo.
- E como soube? - perguntou Eduardo.
- Muito simplesmente: por boca de Sara.
- Ah! Ela contou...
- Contou tudo a mim e ao pai. Oh! É um anjo aquela menina. Se visse a simplicidade com que ela referiu os episódios do namoro, a franqueza com que se exprimiu no que tocava à paixão de que estava dominada, finalmente a sinceridade com que disse que acreditava no seu amor! Era de fazer verter lágrimas... Oh! É um anjo!... Ora diga-me: ter uma sobrinha assim não é uma ventura? E ter, além disso, um sobrinho como o senhor, não é uma bem-aventurança? Que belos dias não passaremos! Ela inclinada em seu ombro, e nós dous, em face um do outro, lutando palmo a palmo, peão a peão, uma daquelas partidas que de um simples paisano fazem um general consumado!
Eduardo sorriu-se a estas palavras de Silvério. Depois, procurando dar à sua voz alguma comoção, respondeu:
- É verdade que eu amo sua sobrinha. Era impossível vê-la sem amá-la. Contudo foi-me difícil declarar-lhe a minha paixão. Poderia parecer a exigência de uma paga a um serviço que eu fiz como faria a outra qualquer pessoa.
- Oh!... - interrompeu Silvério.
Eduardo continuou:
- Amo-a sim, e toda a minha ventura seria poder chamá-la minha mulher.
- Mas isso é o que há de mais fácil.
- Sei. Se até agora não tenho dado um passo para isso, é porque espero que se ultimem certos negócios...
- Mas que negócios?
- Certos negócios. Não está longe, posso afiançar-lhe, e nem eu deixarei passar uma hora, apenas, sem munir-me do competente consentimento dela, e do pai. Creio que já tenho o seu.
- Tem o de todos - disse Silvério em voz de Estentor.
- Muito bem. Vejo que a minha felicidade é completa!
- Pois, senhor, não sei que negócios sejam esses, mas creio que se não dependera disso a decisão, já há muito estaria a menina pedida e concluído o casamento.
- Ah! Com certeza!
- Não sabe que mulher leva...
- Sei.
- É um serafim em alma e corpo.
Aqui começou uma ode à beleza e à candura de Sara, perfeitamente dividida em estrofes, antístrofes e epodos. Meia hora depois Silvério saía de casa de Eduardo, depois de abraçá-lo e instar com ele para que não deixasse passar a ocasião de uma fortuna.
E mal saía o ex-solicitador, entrava um moleque de Maria Luísa com uma cartinha para Eduardo. Dizia a cartinha:
Eduardo,
vou ao baile do conselheiro C***. Disseste-me que estavas convidado. Não faltes.
Tua,
Maria Luísa.
Eduardo ficou alguns momentos sem pensar cousa alguma. Depois, relendo o bilhete, pôde refletir sobre o caso. As duas mulheres iam achar-se em presença. Poderiam não saber nada uma da outra; mas era possível que um nada lhes derramasse a luz no espírito. Como evitá-lo?
Eduardo pensou em não ir ao baile, mas, além do resultado que isso trazia, ocorreu-lhe que a sua presença era até necessária, visto ser já conhecido o seu amor por Maria Luísa e por Sara.
Não comparecer ao baile era fazer supor que a afeição por aquelas duas mulheres, descendo à condição dos afetos comuns, tinha acabado como acabam os afetos comuns.
E depois, se alguma cousa pudesse acontecer, não era melhor que ele lá estivesse para desfazer uma impressão má ou desmentir uma suspeita?
Tais razões e outras mais decidiram Eduardo a afrontar as consequências de um encontro entre as duas mulheres debaixo do mesmo teto.
Em consequência preparou-se para ir ao baile.
Às nove horas e meia da noite entrava ele nos salões do conselheiro C***, meio receoso, meio tranquilo, em todo caso orgulhoso com a circunstância especial de achar-se diante das duas mulheres que se tinham apaixonado por ele.
Depois de fazer os cumprimentos devidos aos donos da casa, indagou Eduardo se as duas tinham já chegado ao baile. Disseram-lhe que não. Com efeito, correu toda a casa sem encontrar vestígios de nenhuma pessoa das duas famílias.
Em uma das viagens que fazia em busca de Sara e Maria Luísa, Eduardo encontrou os dous amigos que lhe tinham aparecido no Rossio no dia em que, acompanhado por mim e pelo leitor, fizera uma visita à viúva da rua do Lavradio.
- Oh! Tu por aqui! - disse um deles -. É a primeira vez que apareces depois de tamanha ausência... Bem-vindo sejas!... Mas aposto que a viúva está por cá?
- Não - respondeu secamente Eduardo.
- Não? Então é que há de vir. Muito bem... Estão mesmo uma corda e uma caçamba.
- Disseram-me no outro dia - disse o segundo moço brincando com a corrente do relógio - que tinhas uma segunda namorada. Não quis crer...
- Por que não quiseste crer? - perguntou Eduardo.
- Ora, porque de duas uma: ou não amas deveras, e então não terás duas, terás cem; ou amas deveras, e então amar a duas é absurdo.
- Absurdo! - disse Eduardo.
- Pois não!
- Não achas? - perguntou o primeiro.
- Não acho. É cousa muito possível.
- Aposto que amas realmente as duas e deveras?
- Deixemos o terreno dos fatos. Teoricamente posso provar...
- Teoricamente prova-se muita cousa...
- Por exemplo, prova-se que estás corrigido, que mudaste de sistema de vida, enfim que és quase um santo. Ora, não há maior falsidade...
- Por quê? - perguntou Eduardo meio sério.
- Porque essa aparência de vida modesta e honesta desculpa a dureza do coração, essa aparência é puramente aparência. És o mesmo. Estás mudando o ponto de vista e os meios de ação.
Eduardo sorriu-se e perguntou, pondo a mão no ombro de ambos:
- Dar-se-á caso que vocês também se tornassem filósofos?
- Filósofos, como Epicuro. Somos o que éramos dantes; somente somos e dizemos que o somos. Tu és e dizes que não és. Eis toda a diferença.
- Deveras? - disse Eduardo.
- É certo. Anda tomar um copo de xerez. Dizem que o conselheiro oferece desse vinho delicioso aos seus convidados conhecedores. Olha que é xerez; é o vinho de Francisco I, o conhecedor de mulheres como tu, lembras-te? Souvent femme varie...
- Salta, gaiato! - disse alegremente Eduardo apartando-se dos dous amigos.
- Anda cá - disse um deles -. Olha!
Apontando com a mão para a escadaria que ficava próxima chamou a atenção de Eduardo para duas senhoras que entravam. Eram Maria Luísa e sua mãe.
- Ah! - disse Eduardo.
E voltando-se para os amigos:
- Adeus, até logo.
Os dous rapazes afastaram-se rindo. Eduardo foi ao encontro das duas senhoras.
Maria Luísa estava radiante. Tinha na verdade um porte de grandeza natural, e quando os seus olhos se voltaram em roda dos que a cercavam, parecia uma castelã antiga contemplando os cavaleiros preparados para as justas. Trazia um vestido de seda cor de violeta com enfeites da mesma cor. Os cabelos, penteados à Stuart, moda então muito em voga, faziam realçar um fio de pérolas, cujo fecho de brilhantes em forma de estrela ficava-lhe no meio da cabeça. Trazia na mão um ramalhete de violetas. Quando Maria Luísa entrou no salão, onde os mais belos toilettes chamavam a atenção dos olhos masculinos e seus apêndices, as lunetas, houve uma espécie de rumor admirativo.
Todas as belezas foram um momento esquecidas por aquela que entrava vestida com tanta simplicidade e tão bom gosto.
Maria Luísa, com aquele instinto admirável das mulheres, reparou no efeito que produzia e não deixou de gozar amplamente o prazer que lhe dava a geral admiração.
Os que a não conheciam indagavam do seu nome, e os que a conheciam respondiam aos interpelantes, repetindo-se às vezes o nome de Eduardo como o senhor e possuidor daquele coração viúvo.
Eduardo, orgulhoso e radiante, olhava para todos do alto de seus olhos e da sua felicidade, com certo arzinho de quem mofava dos outros por serem menos venturosos ou menos lestos.
Enfim, a vida do baile começou. Anunciou-se uma valsa. Eduardo e Maria Luísa tomaram lugar entre os valsistas. Dentro de pouco muitos pares retiravam-se para dar lugar à valsa douda, entusiasta do moço e da viúva.
Conversava eu um dia com um dos meus amigos poetas que a morte levou, um talento que todos admiravam, um coração que muitos conheceram.
- Não sei - dizia-me Casimiro de Abreu - como se pudesse inventar a valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em um salão diante de cem olhos. A valsa é realmente a mais graciosa, a mais natural, a mais bela das danças, mas nenhum olho humano deve presenciá-la. Então os dous valsantes que se amam, que vivem um pelo outro, podem embriagar-se na valsa, viver não a vida do mundo, mas a vida dos anjos, a vida dos sonhos, a vida do céu!
- Casimiro - objetava eu -, para dous corações que se amam, a multidão não é o isolamento? E quando um par se atira à sala, aos primeiros compassos de uma valsa, não lhes desaparece tudo, não ficam eles sós, ermos, confundidos?
Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das Primaveras que traz este título.
A minha objeção no caso de Eduardo e Maria Luísa tinha meia aplicação. De fato, a viúva corria nos braços de Eduardo, e no meio dos cem olhos que os acompanhavam, como se estivesse em um deserto. Esqueceu-lhe tudo por Eduardo. Mas este não. Lembrou-se e muito que estava entre gente; calculava, adivinhava, redigia consigo mesmo os ditos, as observações, os olhares invejosos de toda aquela multidão.
Foi exatamente no fim da valsa que chegou a família de Almeida. Os rumores que sucederam à valsa de Eduardo e Maria Luísa foram dobrados com a presença de Sara.
Com efeito, se Maria Luísa tinha direito a excitar a admiração geral, não menor o tinha a filha de Almeida.
Vestia de um modo simples e elegante. Um vestido de seda cinzento-pérola ocultava-lhe o corpo flexível e delgado. Os cabelos, penteados em bandós, não tinham outro enfeite mais que uma rosa branca, presa do lado esquerdo. No seio, que ondulava pelo cansaço e pela comoção, fulgurava uma simples cruzinha de ouro, enfeite que Sara usava em todas as solenidades, por ter-lhe sido dada por sua mãe.
Graças à vida retirada da família de Sara, ninguém ou muito pouca gente a conhecia. A dona da casa encarregou-se das necessárias apresentações.
Foram as duas proclamadas as rainhas do baile. Os cavalheiros dividiram-se em partidos; uns preferiam Maria Luísa, em quem viam a expressão mais completa da mulher; outros davam a palma a Sara, cuja beleza virginal e angélica inspirava ideias puramente do céu. Para uns Maria Luísa era a estátua descida do pedestal; para outros Sara era um anjo foragido da habitação divina.
No meio de tão divididas opiniões, Eduardo era o único que as admitia ambas e por ambas se bateria se necessário fosse.
Eduardo foi procurar Almeida, de cuja demora indagou com o maior interesse, ouvindo aliás as razões dadas por aquele com a maior indiferença. Eduardo pôde falar a Sara, fê-lo com todo o interesse de um amante saudoso. A moça parecia triste. Vinha imaginando encontrar Eduardo aflito com a sua ausência e achou-o no turbilhão de uma valsa, tão alegre ou mais que os outros. Mas este ressentimento no coração da moça era passageiro. Nem ela procurava indagar mais nada. Sabia ela acaso que Eduardo pudesse valsar com outra com a mesma efusão com que valsaria com ela? A pobre menina notava o fato, mas não tirava dele nenhum corolário.
E depois, as maneiras de Eduardo convenciam tanto! No fim de dez minutos de conversação, Sara esquecera tudo e estava feliz. Como Maria Luísa na valsa deixou-se ir na embriaguez da conversação e só se lembrou de que estava diante do homem que era escolhido pelo seu coração. Tinha uma singeleza adorável que Eduardo não sabia admirar, nem como amante, nem como poeta.
Não ocuparei o espírito do leitor com a narração do que se passou durante a noite do baile, e corro já ao melhor episódio, ao que importa saber em nossa história.
Bem depressa se espalhou que as duas raparigas amavam Eduardo e que este parecia amá-las do mesmo modo. Aos que o interrogavam, Eduardo respondia com o ar de homem que nega aquilo de que deseja convencer a todos.
Chegou a passear com ambas, uma em cada braço, conversando simbolicamente com ambas, sem que elas se apercebessem de nada.
Enfim, seria uma hora da noite, já o baile chegara ao ponto culminante, em que as cerimônias, sem desaparecerem de todo, dão lugar a uma respeitosa intimidade.
Sara e Maria Luísa, ou por simpatia, ou por força de fatalidade, davam-se já como duas amigas. O conselheiro convidou Sara para cantar alguma cousa. Sara estava cansada e pediu um quarto de hora. Durante este tempo retirou-se para o gabinete que servia de toilette das senhoras. Maria Luísa acompanhou-a.
- Precisava bem de um momento de descanso - disse Maria Luísa -. Como está fatigada, meu Deus!
- A falta de hábito - respondeu Sara -. Vivo sempre metida dentro de casa...
- Pois faz mal... As flores fizeram-se para o ar livre.
Sara sorriu.
- Diga-me. Isto é entre moças, pode dizer-se. De quantos rapazes tem visto hoje nenhum lhe faz palpitar o coração?
A moça olhou para Maria Luísa e respondeu:
- Oh! Sim! Um!
- Ainda bem!
- Por que se alegra tanto?
- Por nada...
- Oh!
- Porque, se já começa a amar, deve compreender-me... Também eu amo e muito!...
- Amar é tão bom, não é? - disse Sara com uma adorável singeleza.
- Oh! Se é! - suspirou Maria Luísa.
Calaram-se ambas. No fim de alguns minutos de contemplação recíproca, as duas deitavam-se nos braços uma da outra.
- É o mais belo, mais gentil, de quantos homens estão hoje nesta sala... Oh! Eu excetuo o outro...
Dizendo estas palavras Maria Luísa deu um beijo em Sara.
Sara respondeu:
- Não sei se este é o mais belo e o mais gentil, sei que o amo. Se o não amasse, devia estimá-lo, porque me salvou a vida vai para quatro meses...
- Ah! Temos romance?
- Não é romance, é realidade.
- E casam-se?
- Não sei, mas não penso nisso. Eu só faço o que ele quiser. Meu amor é um amor que não manda, nem eu creio que hajam outros.
Maria Luísa estava pensativa.
Sara continuou:
- Estará na sala?
- Quem? O meu?
- Sim.
- Está, creio eu.
E Maria Luísa foi à porta. Abriu uma fresta entre as cortinas e procurou Eduardo com os olhos.
- Lá está ele... Olhe!
- Onde está? - perguntou Sara.
- Ali encostado ao piano, do lado de lá, brinca com a luneta. Vê?
Sara, com os olhos colados à fresta, acompanhava a indicação de Maria Luísa.
Repentinamente deram as duas um grito.
Sara tinha reconhecido Eduardo; Maria Luísa viu na mão de Sara um lenço igual, com igual firma, ao que surpreendera na mão de Eduardo. As duas mulheres olharam-se mudas, alguns segundos. Sara levou a mão ao peito. Parecia que se lhe quebrava o coração. Maria Luísa, com o lenço nos olhos, foi cair sobre o sofá, dizendo:
- Oh! Que fatalidade!
Sara, depois de alguns segundos, foi procurar uma cadeira e sentou-se. Não pôde conter-se; as lágrimas rebentaram-se-lhe dos olhos.
Houve um grande silêncio entre ambas. Fora batia-se palmas ao pianista, que acabava de entusiasmar o auditório tocando um coro de Don Juan, de Mozart. Maria Luísa foi a primeira que se levantou e falou a Sara.
- Faz bem em chorar - disse ela -. Era inocente, acreditou no amor dele. Sei quanto sofre pelo que eu mesma sofro. Foi uma fatalidade. Ambas púnhamos nele a nossa esperança com a nossa alma; ele enganava a ambas; e para quê? Que pretendia? Ah! Coitadas de nós!
Sara não respondeu. Estava pálida como a morte. Maria Luísa pensou que fosse desmaiar. Foi buscar água-da-colônia e prestou-lhe os mais fraternais cuidados.
- Obrigada, não é nada, passou - disse Sara.
Depois, enxugou os olhos e levantou-se.
Na sala procurava-se a filha de Almeida para cantar. A dona da casa dirigiu-se ao gabinete.
- Aí vem gente - disse Maria Luísa -, vem procurá-la para cantar. Deve ir. Devemos sair juntas para que nada desconfiem.
Abriram-se as cortinas e viu-se sair as duas moças, pálidas como duas estátuas, com os olhos vermelhos. Sara mal podia ter-se em pé.
Obrigada a cumprir a promessa, Sara cantou. Mas que canto! Não eram notas, eram pedaços d'alma que saíam da menina desiludida e infeliz.
Quando acabou, corriam-lhe as lágrimas. Ao pé dela Maria Luísa a acompanhava no sentimento e nas lágrimas silenciosas. As duas infelizes saíram da sala no meio de aplausos comovidos.