Conto

Questão de Vaidade

1864
Este conto foi publicado originalmente no Jornal das Famílias, em dezembro de 1864 e em janeiro, fevereiro e março de 1865, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com a publicação original.

VII

Passaram-se quinze dias depois das cenas que acabo de contar.

No dia seguinte ao do baile, Eduardo foi visitar Maria Luísa; encontrou-a na sala com sua mãe. Eduardo, como sempre, entrou com o sorriso nos lábios. Maria Luísa estava magra e tinha os olhos pisados. Ia perguntar o motivo daquele abatimento, quando a viúva, dizendo-se incomodada, pediu licença e retirou-se.

Eduardo esteve meia hora na sala conversando com a mãe de Maria Luísa, que lhe respondia por monossílabos. Finalmente, despediu-se e saiu.

Estava humilhado.

- Que aconteceria? - perguntava ele -. Ontem saíram do baile sem me falarem. Hoje tratam-me deste modo. Que haverá?

De reflexão em reflexão, de recordação em recordação, Eduardo pôde atinar com o motivo do desdém que recebera em casa de Maria Luísa.

Lembrou-se de ter visto a viúva e a donzela saírem do toilette, lívidas e abatidas. Lembrou-se das lágrimas derramadas durante o canto no piano. Descobriu tudo.

"Que diabo!", pensava ele. "Como hei de desenlaçar esta meada? Convencê-las é impossível; o melhor é eludir a questão. Mas como? Irei a Sara... Mas terei lá a mesma recepção? Oh! É demais! Não! Isso não! Maria Luísa não pode recusar uma carta minha. É isto. Escrevo-lhe. No papel posso dizer mais facilmente aquilo que convier; tenho a faculdade de rabiscar, alterar, adoçar, enfeitar, como me parecer, as palavras..."

Eduardo entrou em casa disposto a escrever três cartas. Uma à mãe da viúva, endereçando-lhe outra para a filha, de cujo amor ela estava ciente. A terceira carta era a Pedro Elói, contando-lhe a ocorrência e pedindo-lhe um conselho. Ao mesmo tempo respondia à carta anterior.

O conteúdo das duas primeiras era uma série de frases ocas, habilmente grupadas, em que Eduardo protestava o mais respeitoso amor por Maria Luísa; quanto ao episódio do baile e ao amor de Sara, foi o mais sucinto que pôde, dando uma desastrada explicação ao sentimento alegado pela filha de Almeida. Era, dizia ele, um serviço que prestava a uma menina cujo coração inexperiente se deixara apaixonar por ele. Não queria desenganá-la, entretinha por uma aquiescência um amor sem alcance.

Mandou as cartas, mas nenhuma resposta obteve nesse dia nem nos dias seguintes. Desesperou. Passava muitas vezes em frente à casa de Maria Luísa; mas não via ninguém; as janelas estavam, as mais das vezes, cerradas.

Quanto a Sara, Eduardo, com o receio de sofrer a mesma recepção, não foi lá, esperando uma visita do pai ou do tio Silvério. Embalde esperou. Era demasiado o desdém para que um coração vaidoso como o de Eduardo se resignasse. Doía-lhe o desdém; ardiam-lhe desejos de vingança. A vaidade, que até ali se empavesava com o amor das duas mulheres, doía-se agora, ressentia-se, pedia desforra. Ora, a vaidade quando domina o coração do homem (e na maioria dos homens acontece assim) não deixa atender a nenhum sentimento mais, a nenhuma razão de justiça.

Era, assim, atado a esta fogueira interior, como Eurico atado ao próprio cadáver, que Eduardo passava os dias e as horas, sem ver nem procurar ninguém.

Quanto à carta escrita a Pedro Elói, resume-se em pouco. Ei-la:

Meu amigo,

Turba-se o horizonte. Aconteceu o que previas e eu não previa. As duas sabem hoje do meu amor por ambas. Zangaram-se! Era bom se fosse só isso. Creio que adoeceram. Tamanho desencanto não as podia conservar no estado normal.

E isto tudo por um diabo, como eu. Diabo, sim, não digo brincando; mas um diabo compassivo que ainda as estima e deplora. Que queres? Sou feito assim. Tenho um coração evangélico; e não posso ver sofrer, e sobretudo sofrer por minha causa.

Foi o caso. Não sei que fatalidade as levou ambas ao baile do conselheiro C***. Aí, deram-se, comunicaram uma à outra os seus pensamentos, e naturalmente foram além do que deviam ir, descobrindo a coroa. A coroa sou eu. E demitiram-se os meus ministros...

Falemos sério; penalizam-me estas ocorrências. São duas mulheres dignas do respeito e do amor que eu lhes votava. Tenho a culpa de que as adorasse do mesmo modo e no mesmo grau? Se há culpa nisto, é da natureza.

O que é certo é que me não querem receber e curvam-se a uma dor que me lisonjeia, mas que me entristece.

Que devo fazer? Como reconciliar estes dous sentimentos e o meu orgulho, porque enfim eu não quero esquecer, no meio de tais fatalidades, que recebi do berço um dever de zelar a minha própria dignidade.

Aconselha-me e acredita-me

Teu Eduardo

Esta carta, como as outras, não teve resposta.

Vejamos agora o que se passou nas duas mulheres a quem Eduardo bafejara com o hálito da desgraça.

Maria Luísa chorou muito durante o resto da noite do baile.

Quando a manhã rompeu, Maria Luísa estava à janela, chorando ainda em silêncio. Sentia-se duas vezes viúva; legal e moralmente. Os sonhos do futuro, as esperanças de sua felicidade sem igual fora tudo um castelo de cartas que desabou ao sopro de uma criança.

Era dia claro. Maria Luísa julgou dever comprimir a sua dor e mostrou-se alegre.

Não queria magoar sua mãe. Banhou os olhos o mais que pôde e deixou o quarto.

Sua mãe a esperava para almoçar. Vendo-a triste, perguntou-lhe se estava doente. Respondeu que sentia-se fatigada. A mãe não insistiu.

Durante o almoço a boa velha, para alegrar sua filha, e distraí-la dos incômodos que dizia ter, falou-lhe de Eduardo, das comoções que ambos deviam ter tido na noite anterior, dos projetos do futuro.

O assunto não era próprio para alegrar Maria Luísa. Respondendo por monossílabos, e interrompendo a conversa com assuntos diferentes, Maria Luísa procurava desviar o espírito de sua mãe. Enfim, algumas vezes não podia deixar de enxugar furtivamente uma lágrima. A velha reparou e perguntou-lhe por que chorava.

- Por nada - respondeu a viúva.

- Não é possível.

- Por nada, afirmo-lhe.

- Não é possível. Ah! Não estás cansada, estás triste; tens alguma cousa que te faz sofrer. Dize o que é... Não sou eu tua mãe?

- Minha mãe!

E Maria Luísa escondeu o rosto no seio da velha.

- Vamos lá! - disse esta -. O que é?

- Ah! Tenho vergonha...

- Vergonha de quê?

- Eduardo não me ama!

- Ah!

- Não me ama, porque ama a outra.

- Quem?

- Sara, aquela que cantou ontem, ao pé de mim, e que a todos comoveu. Ambas nos confessamos.

Maria Luísa repetiu tudo quanto acontecera no baile. A pobre mãe estava comovida, triste, desesperada, ouvindo a narração que Maria Luísa lhe fazia entre lágrimas de desespero e de dor.

Mas, o que podia fazer a mãe da pobre moça? Uma só cousa: dar-lhe uma consolação maternal e auxiliá-la em esquecer o ingrato. Quando veio a carta de Eduardo achou ela que devia responder, sobretudo porque nos termos da carta parecia estar provada a inocência de Eduardo. Maria Luísa foi inflexível; disse que não se devia dar resposta alguma. Ah! É que naquele coração, ao lado de um grande amor e de um grande desespero, havia um grande orgulho!

Quanto a Sara, eis o que passara. Não temos necessidade de ir até à casa de Almeida; o tio Silvério nos instruirá de tudo.

Um dia de tarde, justamente quinze dias depois do baile, Eduardo estava à janela de sua casa quando viu passar o tio de Sara. Chamou-o e fê-lo subir, apesar dos protestos de ir apressado.

- Ora tinha que ver! - disse Eduardo indo receber Silvério -. Não vê que o deixava passar sem dar dous dedos de conversa!...

- Mas é que tenho pressa.

- Qual pressa. Sente-se um pouco. Em descansando ganha novas forças, e ei-lo que aí vai mais lesto ao seu destino.

- Vou para casa - disse Silvério aceitando a cadeira que Eduardo lhe oferecia, e fazendo uma careta à parte como homem contrariado.

- Toda a família está boa?

- Está.

- É o que se quer. Vai então tudo bem?...

- Tudo, não é exato...

- Pois há alguém doente?

- Há.

- Quem é?

- Minha sobrinha...

- Deveras?

- É verdade.

- Que doença?

- Eu sei. Adoeceu no dia seguinte ao do baile; veio um médico e a primeira cousa que fez foi obrigá-la a conservar-se de cama.

- Depois?

- Depois, examinou-a e deu não sei que nome à moléstia, mas afirmou que não era aquela a principal.

- Então há outra?

- Há.

- Qual é?

- Diz o médico que é uma doença moral. Lá levaram tempo imenso a consultá-la. Ela nada disse; isto é, não sei; não sei, só sei que aquilo é a nossa desgraça, porque se ela nos morre é como se nos fosse a vida, a alegria da casa... Adeus, Sr. Eduardo, não me posso demorar.

Eduardo ouvira estas palavras com certa surpresa e certa comoção. Quando Silvério se levantou e preparava-se para sair, Eduardo balbuciou algumas palavras. Era um anjo que o inspirava; ia talvez sanar tudo com uma promessa.

Em um instante viu ele que se constituía o remédio supremo para a enfermidade moral de Sara. Mas enfim, o ente gredin, que, como diz A. Karr, todo o homem tem em si, desfez a obra do ente honesto. Eduardo estendeu a mão a Silvério e pediu que o recomendasse à família.

Silvério desceu cabisbaixo e triste as escadas da casa de Eduardo.

Quando se viu só, Eduardo refletiu na situação em que se achava. Das duas mulheres que ele requestara tão seriamente e cujas esperanças honestas alimentara com tanta perseverança, uma tinha morta a alma, a outra tinha morta a alma e o corpo. Em seu coração, travou-se uma grande luta, entre o remorso e a vaidade. O dever dizia-lhe que reparasse o maior mal, se não podia reparar todos os males, mas um sentimento de amor-próprio, vão, cruel, imoral, retinha-lhe os sentimentos bons e os impulsos generosos.

Nesta luta, esteve toda a noite. Quis dormir, não pôde; mal fechava os olhos surgia-lhe o espectro de Sara pedindo contas do coração que iludira e da vida que estrangulara.

Enfim, sobre a madrugada pôde conciliar o sono. Eram nove horas quando se levantou. Quem olhasse para ele daí a meia hora reconheceria que o sentimento do dever triunfara, ao menos momentaneamente.

Eduardo vestiu-se e saiu. Tomou um tilbury e dirigiu-se para a ponte das barcas. Destinava-se a São Domingos. Ia decidido a falar à moça, mesmo à custa do seu amor-próprio. A demora do vapor o contrariou. Tardava-lhe ver-se junto do leito da moribunda para dizer-lhe: "Vive!"

Ora, a moribunda estava realmente moribunda. Mas quem a visse não suporia que a morte se avizinhava tanto dela. Tinha o rosto e os olhos serenos. Sorria mesmo ao pai, ao irmão e ao tio, mas com o sorriso de quem entrevê as glórias eternas e já as compara às glórias perecíveis desta vida.

O cortinado branco do leito parecia que amparava da luz um ente que chegava ao mundo e não um ente que se ia dele desgostoso e desiludido.

Em uma pequena mesa ao pé da cama havia um copo d`água, uma cruz de ouro, a do baile, e uma rosa branca seca. Esta rosa era a que Eduardo dera a Sara em troca de outra à porta do jardim. Sara de tempos em tempos voltava os olhos para a flor, ficava muda e entrava a contemplá-la. Nessas ocasiões o pai da doente procurava distraí-la com algum outro objeto, temendo que na contemplação da flor se lhe avivassem as lembranças do amor que a matava.

Foi em uma dessas ocasiões que Almeida lembrou-se de uma notícia e disse a Sara:

- Minha filha, vais ter uma visita.

- Quem é?

- Adivinha...

- Não sei - disse Sara sorrindo.

- D. Maria Luísa.

Este nome fez estremecer Sara. O pai dava-lhe maior sofrimento procurando tirar-lhe outro menor. Com efeito, a flor lembrava a Sara o tempo feliz dos seus amores; o nome de Maria Luísa lembrava-lhe a traição de Eduardo.

Reconhecendo o que fizera, Almeida procurou diminuir o efeito.

- Verás como ela soube resignar-se... Espero que o exemplo te sirva, e que das suas palavras colhas uma lição e um conforto, e finalmente que vivas... Ouviste? Que vivas!

Sara sorriu-se.

Houve um silêncio.

Depois, passando a mão pela cabeça, pediu água.

Deram-lha.

- Estás melhor, não, Sara? - perguntou Almeida -. Olha, é preciso, é preciso: fazes anos amanhã. Quero que presidas à mesa... sim?

- Estou melhor, estou, meu pai. Mas, diga-me, como sabe da visita de Maria Luísa?

- Passei ontem lá e subi. Não sabia ainda que estavas doente. Quando lho disse, ficou muito pesarosa. Depois, disse-me que viria cá fazer-te uma visita.

O resto do dia passou-se sem novidade. Sara não saía daquela serenidade, mas realmente não era para a vida, era para a morte que caminhava.

Enfim, no dia seguinte, isto é, no dia em que Eduardo resolvera ir salvar a moça, apareceu, à porta de Almeida, Maria Luísa, com sua mãe.

Sara recebeu a sua rival, ou antes a sua comártir, como se fora uma irmã querida, por quem se espera para morrer. Maria Luísa chorou muito; e, por uma inversão dolorosa dos papéis, era Sara quem consolava a viúva.

- Mas é por ti que eu choro, meu anjo - dizia Maria Luísa.

- Por mim?

- Sim, por ti, que não tens coragem, que te quebraste ao primeiro embate da vida...

- Não digas isso... Eu estou boa... Nada tenho... Sofri, é certo; mas passou... Olha, faço hoje anos... Hás de jantar comigo... Vou levantar-me logo... Verás... Senta-te...

Maria Luísa olhou com olhos rasos de lágrimas para a pobre moça.

- Ainda bem, minha filha - disse Almeida procurando sorrir -, ainda bem que te mostras assim. Isso é o que eu quero. Não te importem os males da vida; todos sofrem; mas faze como fazem muitos; fica sobranceira a tudo.

- Dezessete anos! - murmurava a viúva... - É a aurora da vida...

As duas conversaram largamente. A mãe de Maria Luísa e o pai de Sara deixaram o quarto; as duas podiam folgadamente falar do que as tornara infelizes. Era assim mais fácil a Maria Luísa inspirar a Sara os sentimentos de coragem e sobranceria a que ela própria devera não ter sucumbido. Chegou mesmo a aventurar uma ideia de vingança, com satisfação do coração ofendido.

Mas aqueles dous corações, que concordavam em um ponto, não se entendiam naquele. Sara não era feita para resistir a uma comoção como a que a prostrara. Ouvia sorrindo Maria Luísa, mas abanava a cabeça a tudo. E quando a viúva, para decidi-la mais, lembrava-lhe que poderia sucumbir deveras, Sara respondia que estava perfeitamente boa e não podia inspirar cuidados a ninguém. Esta resistência aos que a chamavam à vida comovia ainda mais.

Só havia um meio, talvez, de salvar Sara; era a presença e o amor de Eduardo.

Esta ideia passou rápida pelo espírito de Maria Luísa. A nobre mulher não discutiu consigo nem o ato, nem as consequências, nem o seu coração. Adotou o pensamento como se fora inspiração do céu.

Maria Luísa amava realmente Eduardo. Desiludida, sofreu muito, e só deveu ao orgulho e à energia do seu coração não ter, como Sara, sucumbido ao desespero. Mas os grandes sentimentos do seu coração não eram só o do amor e o do ciúme. O ato que ia praticar era de uma alma nobre, educada no culto do dever e do sacrifício. Naquele instante ela via diante de si uma pobre menina que sofria e morria por aquele mesmo que a fizera sofrer. Compreendia bem a medida desse sofrimento.

A viúva procurou sondar o espírito da enferma:

- Ora, dize-me, se visses Eduardo, o que farias?

- Se o visse? É impossível.

- Impossível, por quê?

- É impossível.

- Ora, não digas isso. Mas se o visses, se ele viesse agora, hoje, e te dissesse: "Vive"?

- Não vem e não diz...

- Por quê?

- Por que não me ama.

- Quem sabe?

- Oh! Nem me ama, nem te ama.

- Só por isso?

- E também porque nós o amamos.

- Eu não.

- Não?

- Não.

A moça abanou a cabeça murmurando:

- É inútil.

Maria Luísa procurou meio de escrever a Eduardo; e conseguiu traçar à pressa, em um quarto de papel, as seguintes palavras:

Quer o perdão que me pede? Sara está às portas da morte; venha, diga-lhe que a ama, peça-a e case-se daqui a um mês. Está perdoado.

Maria Luísa

O portador que levou este bilhete encontrou Eduardo na ponte das barcas da Corte.

Eduardo, ao ler o bilhete da viúva, sentiu-se humilhado. Enganara duas mulheres; uma morria de pesar, outra pedia-lhe que a salvasse, sacrificando-se; entre aquelas nobres almas, a alma de Eduardo sentia-se abatida. Não se deteve mais; tomou a barca, que partiu dali a cinco minutos.

Logo depois de partir o portador do bilhete, entrou o médico na casa da doente. Achou-a muito pior, e disse-o francamente à família. Que fazer? Tudo o que foi preciso fez-se. Maria Luísa ajoelhada diante de um oratório pedia a Deus duas cousas: que prolongasse a vida de Sara por algumas horas e apressasse a chegada de Eduardo.

Foi inútil. Sobreveio uma crise à enferma, e após a crise o médico desesperou.

Entretanto Sara, com o sorriso nos lábios e o olhar sereno, dizia algumas palavras em voz já muito fraca, mas com a segurança de quem está certa de ir para uma morada melhor.

Maria Luísa pedia-lhe que vivesse; dizia-lhe que Eduardo não tardaria; o pai a um canto não tinha forças para ver, para pedir, nem para chorar; estava atônito.

- Não - dizia ela -, ele não vem. E que venha, sei que não me ama, e sem amor não o quero.

O médico fez vir um sacerdote.

Quando este chegou, Sara, com os olhos fitos, como que vendo já abrir-se-lhe o céu, pedia a Maria Luísa que lhe desse a rosa seca que estava sobre a mesa.

Maria Luísa deu-lha.

- Desejo esta flor porque me lembra o amor que eu supunha ter achado; é o homem de ontem que eu choro; é por ele que morro; o de hoje não é senão a sepultura do de outrora, que morreu.

Houve um silêncio.

Almeida chegou-se à filha, a fim de prepará-la para a confissão.

Sara estremeceu.

Depois, voltando-se para Almeida, disse:

- Meu pai, abençoe-me. E tu também, minha irmã.

Depois... estava no céu.

VIII

Meia hora depois entrava Eduardo à porta de Almeida. Viu tudo fechado; correu-lhe um calafrio por todo o corpo. "Será tarde?", perguntava ele. Vacilou; entraria ou não? Se entrasse e achasse tudo perdido? Enfim, fazendo um esforço, Eduardo passou o portão que se achava aberto. Atravessou a alameda das roseiras, onde pela primeira vez falara de amor à pobre Sara. O remorso começou então a aguilhoá-lo. Aquele silêncio, aquele ar fúnebre que a casa e o jardim respiravam incutiam-lhe certo terror.

Chegou à porta e bateu.

Veio abri-la o pai de Sara.

Eduardo entrou.

- Sara? - perguntou ele.

- Sara morreu.

O moço tornou-se lívido. Sentiu uma vertigem; os olhos se lhe escureceram; ia cair. Segurou-se a uma cadeira.

O pai de Sara olhava fixo para Eduardo. Este não podia suportar-lhe o olhar, e baixava os seus olhos. Naquele momento o pai de Sara era o remorso vivo.

Depois de um pequeno silêncio, Almeida falou:

- Era inútil tê-la salvado do mar há quatro meses para matá-la agora. Se tal devia ser o desenlace destas cousas, melhor fora que a minha pobre filha tivesse sucumbido a primeira vez; iria assim para o outro mundo sem conhecer as misérias deste...

- Oh! Basta! Basta!- interrompeu Eduardo -. Sei quanto sou culpado; não aumente a minha angústia com as suas exprobrações, aliás justas.

O velho sorriu-se tristemente, como quem ouvia duvidoso as palavras do outro.

Depois:

- Vem dar-me os pêsames, não é? - continuou ele -; muito obrigado.

E foi sentar-se no sofá, derramando silenciosas lágrimas.

Eduardo esteve alguns momentos contemplando aquela dor muda e respeitável. Depois, dirigiu os olhos para a porta do quarto mortuário. Ouviu que partiam de dentro soluços abafados. Dirigiu-se para a porta.

Maria Luísa, ajoelhada aos pés da cama, contemplava chorando o cadáver de Sara. A morta parecia sorrir ainda; dissera-se que sonhava um sonho cor-de-rosa.

Eduardo sentiu rebentarem-lhe dos olhos as lágrimas. Ajoelhou-se silenciosamente ao pé da porta e olhou para Maria Luísa.

Não lhe viu o rosto, mas conheceu-a.

Durou muitos minutos esta cena muda.

Finalmente, Eduardo levantou-se e dirigiu-se para o leito da finada. Aí, com os olhos rasos de lágrimas, disse para o cadáver:

- Perdoa-me! Adeus!

E saiu da casa, louco, desesperado.

IX

Eduardo andou muitas horas sem saber de si. Acompanhava-o o espectro de Sara. Ouvia-lhe as palavras; parecia vê-la morrer esperando embalde por ele.

De um triste jogo, em que a sua vaidade entrara por muito, resultaram tão funestas consequências. Sua dor era sincera; seu terror, verdadeiro. Até ali, de seus caprichos donjuanescos só resultavam, quando muito, desgostos passageiros que o tempo ou outras circunstâncias atenuavam e faziam desaparecer. Mas no dia em que se deitara a amar deveras, ou antes, no dia em que desejou amar, as vítimas do seu capricho sucumbiram. Via-se autor de uma morte; e os espíritos da ordem de Eduardo podem cometer todas as ações covardes, mas não resistem a um espetáculo destes. Fazer perder-se uma donzela ou separar um casal é uma façanha mais ou menos celebrada, mais ou menos aceita; mas impelir para a sepultura um ente a quem se enganou, eis o que faz estremecer aos mais audazes. Eduardo, presa de remorso, apreciava toda a extensão do abismo em que caíra.

Os sentimentos vivos da dor e do remorso, as ideias tumultuárias e cruéis encheram por longo tempo o espírito e o coração de Eduardo. Ora parecia-lhe dever fugir à vida e ir alcançar a donzela no caminho da eternidade para pedir-lhe perdão. Ora julgava que devia ficar neste mundo para purgar em longo sofrimento o crime que cometera.

Nesta incerteza, neste suplício moral andou até que se achou diante do mar. Sentou-se pensativo em uma pedra. Era quase noite. Muita gente que o viu supô-lo doudo.

Estava ali, havia já alguns longos minutos, quando um homem parou e procurou descobrir-lhe as feições. Eduardo tinha o rosto fechado nas mãos. Depois de alguns instantes o homem exclamou:

- Eduardo!

- Que é? - disse o moço, estremecendo.

Voltou-se e reconheceu o interlocutor:

- Pedro Elói!

Eduardo caiu-lhe nos braços.

Depois de alguns momentos, Pedro Elói perguntou:

- Que há?

- Sara morreu!

- A donzela?

- Sim!

- Desgraçado! É obra tua!

- Ah! Não aumentes a minha dor e o meu terror, bem sei o que fiz; vejo a enormidade do meu crime.

E o moço derramava sinceras lágrimas.

Pedro Elói continuou:

- Se tivesses atendido aos meus conselhos tinhas poupado este desgosto e este remorso. Bem te dizia eu que não iriam a bons resultados as tuas paixões simuladas. Não quiseste crer, ou antes a tua vaidade recusou-se a crer. Enfim vê se eu tinha razão!

Houve um silêncio entre ambos.

- Está acabado tudo; agora só resta uma cousa; é seres o carrasco de ti mesmo, como aquele pai do teatro latino. Eia! Se alguma cousa pode agora levantar-te aos olhos do mundo e aos teus é a volta aos deveres morais. Sirva-te a morte de Sara, tua vítima, como ponto de partida para a tua regeneração.

E, dizendo isto, Pedro Elói arrastou Eduardo.

Pedro Elói, recebendo em Petrópolis a carta de Eduardo, receou pelos resultados dos acontecimentos narrados nesta carta. Logo que pôde pôs-se a caminho para ver se ainda podia alguma cousa. Chegando à cidade foi procurar Eduardo; disseram-lhe que partira para São Domingos.

Como saberia ele a casa de Sara? Ninguém podia dizer-lhe em casa de Eduardo. Apesar de tudo tomou o caminho da barca de São Domingos e dirigiu-se para lá. Foi quando encontrou Eduardo.

No sétimo dia ao da morte de Sara, Pedro Elói conseguiu levar Eduardo para Petrópolis. Eduardo não quis deixar de ir orar pela vítima, a um canto da igreja, na missa do sétimo dia. Todos viram o moço ajoelhado, com o rosto coberto; foi o primeiro que entrou e o último que saiu.

X

A obra de Pedro Elói teve feliz resultado. Eduardo converteu-se ao dever, depois de um longo suplício.

Maria Luísa, cuja alma também morrera, refugiou-se no mais completo isolamento.

Quanto à família de Sara, nunca mais teve um momento das alegrias puras que a presença da querida menina lhe dava.

Eduardo, inteiramente outro do homem que fora antes, pôde desligar-se da companhia do amigo Pedro Elói sem perigo para si.

De oito em oito dias fazia uma peregrinação ao cemitério de Maruí, onde repousam os restos daquela que o amara até à morte.

Impôs-se esta visita não só como dever, mas até para ter sempre à memória a tragédia doméstica em que fora protagonista.

De quando em quando, os dous amigos visitavam-se, mas comunicavam-se sempre por cartas, em que um mostrava toda a sua satisfação em ter convertido um homem, e o outro, a maior saudade do bem que pudera ter e a esperança de que a sua conversão teria em paga na eternidade a vista eterna da alma bem-aventurada de Sara.

CONCLUSÃO

Depois de lhe contar esta história, o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou café, e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.

Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as ideias porventura melancólicas que a minha narrativa tenha feito nascer.

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