Conto

Questão de Vaidade

1864

Questão de vaidade *

Capítulo primeiro

Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro paredes de uma sala; o leitor, assentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa, à moda americana, eu, a fio comprido em uma rede do Pará que se balouça voluptuosamente, à moda brasileira, ambos enchendo o ar de leves e caprichosas fumaças, à moda de toda gente.

Imagine mais que é noite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do jardim, por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte.

Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água para fazer uma tintura de chá. Não sei se o leitor adora como eu a deliciosa folha da Índia. Se não, pode mandar vir café e fazer com a mesma água a bebida de sua predileção.

Não se obriga nem se constrange ninguém nestas práticas imaginadas. Se estivéssemos na vida real, eu começaria por querer até privar-me do chá, e por sua parte o leitor dispensava o café para ser do meu agrado. Felizmente não é assim.

Ora, como é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos ambos percorrido toda a planície do passado, apanhando a folha do arbusto que secou ou a ruína do edifício que abateu.

Do passado vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam com aquela abundância de coração própria dos moços, dos namorados e dos poetas.

Finalmente, nem o futuro nos escapa. Com o mágico pincel da imaginação traçamos e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais damos as cores de nossas esperanças e da nossa confiança.

Suponha o leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que ao terminar a nossa viagem pelo tempo é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos sono, mas cada qual de nós, avivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja estar acordado.

Então, o leitor, que é perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio a fim, descobre que eu também me entrego aos contos e novelas, e pede que lhe forje alguma cousa do gênero.

E eu para ir mais ao encontro dos desejos do leitor imaginoso não lhe forjo nada, alinhavo alguns episódios de uma história que sei, história verdadeira, cheia de interesse e de vida. E para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta algumas cartas em papel amarelado, e antes de começar a narrativa, leio-as, para orientá-lo no que lhe contar.

O leitor arranja as suas pernas, muda de charuto, e tira da algibeira um lenço para o caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E feito isto ouve as minhas cartas e a minha narrativa.

Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que vai ler como uma conversa à noite, sem pretensão nem desejo de publicidade.

II

EDUARDO AO SEU AMIGO PEDRO ELÓI

Meu amigo,

Acendo duas velas para escrever-te. É como se eu confiasse diante de um altar as minhas penas e as minhas felicidades. Tens sido para mim o santo milagroso por excelência; nada desejo que por influxo teu não seja cumprido. E mais ainda: nas minhas atribulações é a tua palavra que me sustenta, como a voz da verdade e da justiça. Não te admires, pois, da precaução que tomei de iluminar este papel como o faria à pedra de um altar.

Ora, ainda assim não é tanto ao santo, como ao filósofo, que eu me dirijo desta vez. Talvez amanhã te vá pedir consolações, mas agora o que desejo é a solução de um fenômeno moral.

Sabes do meu amor por Maria Luísa, a interessante viuvinha que eu encontrei há dous meses e a quem parece que inspirei algum amor. Pouco falta para que este amor seja coroado de um feliz sucesso, substituindo eu o finado marido, que, seja dito neste papel, parece que era suficientemente prosaico.

Quando te comuniquei esta paixão mandaste-me bons conselhos de prudência, que eu li com a maior veneração. Dizias que me não fosse enganar e tomar por amor aquilo que não passava de capricho. Acrescentavas que a tua dúvida nascia dos termos de minha carta.

Pesei as tuas palavras e gravei-as na memória. O resultado foi que estavas em puro engano. Eu amava deveras Maria Luísa.

Mas vamos ao fenômeno. Antes de entrar em outros pormenores, insisto em dizer que amava e amo a viúva. Já te disse qual a força deste amor e o que me havia inspirado. Não quero fazer repetições inúteis, mas insisto nesta observação.

Ouve agora o que me acaba de acontecer há oito dias.

Tinha eu ido passar uma noite em São Domingos em casa de dous amigos. No dia seguinte, seriam cinco horas, acordei sobressaltado com os preparativos que se faziam em casa para ir aos banhos de mar. Os meus hóspedes ficaram pesarosos de me terem acordado tão cedo; mas eu, que já de longa data tenho a minha aurora às onze horas da manhã, não fiquei descontente de poder fazer exceção à regra.

Vesti-me, como eles, e fui com eles à praia das Flechas, lugar usual dos banhos.

Diversas barracas se levantavam na praia, contra a qual se quebrava o mar agitado.

Algumas moças já andavam à flor das águas, enfronhadas nas suas camisolas do costume. Outras iam saindo de quando em quando do interior das barracas e tomando o caminho do mar.

Um ou outro grito, soltado no meio do susto produzido por uma vaga mais alta ou mais violenta, unia-se ao sussurro do mar.

Os maridos, pais e irmãos, que não tomavam banho, ou conversavam, ou liam, ou olhavam o ar, enquanto as garças humanas brincavam com o elemento a que Shakespeare as comparou.

Armou-se a nossa barraca e prepararam-se os meus companheiros para o banho. Eu de mim, confesso, preferia ver as damas banharem-se e rir do susto pueril que elas tivessem. Demais, apesar de estarmos no verão, fazia nesse dia um tal frio que me arredava da água cinquenta léguas.

Os meus companheiros apresentavam-me o exemplo das damas que tão destemidamente afrontavam o tempo e o mar. Mas eu, depois de citar Shakespeare no que tocava à identidade das mulheres e do mar, citei-me a mim próprio, acrescentando que a maioria das senhoras que se banhavam o faziam por moda ou por bom-tom.

Enfim, consegui não ir à água. Enquanto os outros se banhavam fui sentar-me em uma pedra que ali estava perto. Estive contemplando os banhistas alguns minutos. Mas, como sempre acontece, os meus olhos, depois de correr todos os grupos, voltavam aos primeiros, e assim via eu duas ou três vezes as mesmas caras, graciosas ou assustadiças, arrecearem-se ou brincarem com a água revolta.

Ora, uma dessas figuras, a terceira vez que passou sob o meu olhar, deteve-o alguns minutos. Estávamos a certa distância que me não permitia distinguir-lhe as feições, mas havia na temeridade, na graça, no recato com que ela se banhava, uma tal diferença das outras, que eu não pude deixar de examiná-la com mais interesse.

Não podendo distinguir-lhe, como disse, as feições, esperei que ela estivesse em terra para procurar admirá-la ou correr-me de uma ilusão.

Nisto estava, quando a moça, que parecia nada temer e arredava-se da praia mais do que era conveniente, foi engolida por uma vaga. Só flutuavam à flor d`água os longos e negros cabelos.

Houve um grito, um só, mas de todos quantos se achavam na praia e presenciavam o fato.

Alguns dos banhistas dirigiram-se para o lugar do desastre. Mas estavam um pouco longe. Eu via que a demora era fatal. Correndo pela praia atirei fora o paletó e lancei-me à água.

Não te conto todas as peripécias desta cena. Na praia a família da pobre moça ajoelhara-se involuntariamente e todos pareciam depender de mim.

Ao cabo de algum tempo e de alguns esforços salvei a moça.

Avalia como fui recebido pela família. Afagavam-na com abraços e beijos.

Voltando a si do desmaio que tivera, a moça foi conduzida para casa dentro de um carro.

O que motivara a catástrofe não foi a violência com que a onda se arremessara, foi ter a pobre moça desmaiado. Uma vez desmaiada, caiu e não soube mais de si.

O pai da moça obrigou-me a ir à casa dele. Não tive remédio. Avisei os meus companheiros e parti.

Trataram-me muito bem. Pediram-me que voltasse lá algumas vezes. A moça não tirou as minhas mãos de entre as suas nem os seus olhos dos meus, dizendo-me que a mim devia a vida e que eu era o seu salvador.

Voltei lá algumas vezes. Trataram-me sempre muito bem. Mas que pensas tu que me aconteceu? Aquela franca alegria, aquela gratidão tão claramente manifestada pela moça, tudo isso fez-me apaixonado!

"Mas o fenômeno?", perguntas tu. O fenômeno é que, se amo a esta, não esqueci a viúva. Amo a viúva como antes: o fenômeno é que amo as duas do mesmo modo, com o mesmo ardor. Explica-me isto.

Estou de tal modo que não posso pensar em uma só, hei de pensar em ambas, sem o quê sofro, encolerizo-me comigo mesmo.

Que será isto? Escreve-me depressa, dá-me a luz e o bálsamo de que necessita o teu amigo

Eduardo T.B.

A resposta desta carta, escrita dous dias depois, é assim concebida:

PEDRO ELÓI AO SEU AMIGO EDUARDO

Meu amigo,

Recebi a tua carta, e desde o dia em que a li até hoje não tenho feito mais do que pensar no teu fenômeno.

Não é que eu esteja convencido, como tu, de que é verdadeiramente um fenômeno. Pelo contrário, vejo que o que sentes é uma cousa muito natural.

Insistes em dizer que amas a viúva. Eu insisto em dizer que não a amas. E a prova está nesta dualidade de amor, falsa e impossível, verdadeiro erro de um espírito enfermo e de um coração indiscreto.

Queres tu saber o que existe na verdade? Existe um simples desejo, uma aspiração toda sensual, comum nos rapazes da tua idade e de tua educação, mas imprópria de quem quer que compreenda a elevação e castidade dos sentimentos.

Pensas que cortas toda a dificuldade pronunciando a palavra fenômeno? Repara, meu Eduardo, onde vai dar a ampliação deste sofisma. Deste modo, todos os vícios se legitimam, todos os desvios se aceitam.

É engraçada a história do banho e do desmaio no mar. Afigura-se-te que depois deste episódio romanesco só se pode sentir amor, e concluis que estás apaixonado. E como uma insaciável volúpia reúne em teu pensamento as duas mulheres em questão, concluis que estás apaixonado por ambas.

Ora, sério. Admites em toda a sua pureza moral a reunião de dous amores? Pois o amor, isto é, a mais completa fusão de duas almas, pode ter por objeto dous objetos?

Reflete, entra em ti mesmo, envergonha-te do erro em que estás. Vê bem que não amas nem a viúva, nem a donzela. Amas a uma só criatura, és tu mesmo. É o amor dos sentidos que se pode dividir, que se divide, que se prostitui, que se desvaira.

Se queres uma explicação aí a tens; se queres um conselho, não perturbes a constância dessas duas mulheres, a menos que não queiras a todo o transe ser ator principal em um drama perigoso.

Adeus. Desculpa a franqueza; é a minha. Cá fico para explicar-te quantos fenômenos te apareçam e varrer-te da cabeça quantas ideias más o vento da maldade aí depuser. Adeus.

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