IX
À MESMA
Corte, 10 de janeiro
Isto é apenas um bilhetinho. Dou-lhe notícia de que vamos ter aqui uma reapresentação familiar, como fazíamos no colégio. O Dr. Alberto foi encarregado de escrever a comédia; afiançam-me que há de sair boa. Representa comigo a Carlota. Os homens são o primo Abreu, o Juca e o Dr. Rodrigues. Ah! Se você cá estivesse!
RAQUEL
X
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 15 de janeiro
Meu marido quer ir à Corte no fim do mês que vem. Ver-nos-emos enfim depois de alguns meses de separação. Escrevo apenas para lhe dar esta notícia, que você há de estimar decerto.
E ao mesmo tempo o meu fim é preveni-la, a fim de que procure disfarçar na presença aquilo que me disfarça no papel.
Adeus.
LUÍSA
XI
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 20 de janeiro
O que é que eu disfarço no papel? Estou a meditar, a esquadrinhar, e nada descubro. Podia imaginar que você se refere ao assunto do Alberto; mas depois do que eu lhe escrevi seria demasiada insistência...
Explique-se.
Quanto à notícia que me dá de que vem cá, é para mim a sorte grande. Por mais que eu queira explicar no papel o prazer que sinto com isto, não posso. Não sei escrever; não me acodem as palavras próprias. O Dr. Alberto (o tal!) dizia outro dia que a língua humana é cabal para dizer o que se passa no espírito, mas incapaz de dizer o que vem do coração. E acrescentou esta sentença, que é engenhosa, mas velha: com os lábios fala a cabeça, com os olhos, o coração.
Você porém adivinhará o que eu sinto e apressará a sua vinda. E o nenê?
RAQUEL
XII
À MESMA
Corte, 28 de janeiro
Faz um calor insuportável; mas como eu abri a janela que dá para o jardim, estou a ver o céu "todo recamado de estrelas", como dizem os poetas, e o espetáculo compensa o calor. Que noite, minha Luísa! Gosto imensamente destes grandes silêncios, porque então ouço-me a mim mesma, e vivo mais em cinco minutos de solidão do que em vinte horas de bulício.
A Mariquinhas Rocha esteve esta noite cá em casa com o marido. Ambos parecem felizes, ela ainda mais do que ele, o que se me afigura completa inversão das leis naturais.
Não se admira de me ouvir falar em "leis naturais"? A ideia não é minha, é do próprio enteado, o Dr. Alberto. Conversamos os dous a respeito das boas e santas qualidades de Mariquinhas, e eu dizia o que ela foi sempre desde criança.
- Criança é ainda ela - observou ele sorrindo -. Não posso chamar madrasta a uma criatura que parece antes minha irmã mais moça.
- Na idade, sim - tornei eu -; mas na circunspeção e na compostura é positivamente mais velha que o senhor.
Ele sorriu, mas de um sorriso amarelo, e continuou:
- Meu pai é feliz; minha madrasta parece ainda mais feliz que meu pai. Não é isto uma inversão das leis naturais?
Critique se lhe parece a opinião do filho; mas aproveito a ocasião para dizer que na sua última carta há duas linhas em que parece ter um resto de suspeita. Mande-me dizer como quer que a convença de que ele é para mim uma criatura igual a tantas outras?
Ande, confesse que é cruel comigo, e disponha-se a um sermão na primeira ocasião em que estivermos juntas.
Sabe quem eu vi hoje? Dou-lhe um doce se adivinhar. O Garcia, aquele Garcia que a nam... Não, não, paremos aqui.
RAQUEL
XIII
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 10 de fevereiro
Não confesso nada; não fui cruel. Tive uma suspeita e preferi dizê-la a guardá-la. A amizade manda isto mesmo. Por que razão deixaríamos nós aquela franqueza e confiança do tempo do colégio?
Acredito que realmente nada há; mas acredito também outra cousa. Estou a ver que é alguma figura grotesca, e que você foi antes ofendida na vaidade que no coração. Vá, confesse isso.
Sabe você uma cousa? Está-me parecendo mais poeta do que era, mais romanesca, mais cheia de caraminholas. Bem sei que a idade explica muita cousa; mas há um limite, Raquel; não confunda o romance com a vida, ou viverá desgraçada...
...Um sermão! Aí começava eu a fazer-lhe um sermão chocho e insulso, e sobretudo ineficaz. Venhamos a cousas mais de prosa. Meu marido quer entrar na política. Não se arrepia com esta palavra? Política e lua-de-mel, que duas cousas tão inimigas! Mas será o que Deus quiser. Lembranças dele e minhas a sua mamãe e a você. Até breve.
LUÍSA
XIV
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 15 de fevereiro
Engana-se quando supõe que o Dr. Alberto é uma figura grotesca; já lhe disse que é rapaz elegante; e até aquele ar compassado e escultural que eu lhe achava, até isso parece ter desaparecido desde que tem intimidade conosco.
Não foi pois a minha vaidade que se ofendeu; não foi também o meu coração. Senti que você não me acreditasse, nada mais.
Eu podia fazer-lhe agora uma dissertação a respeito do amor; mas retraio a pena por me lembrar que iria ensinar o padre-nosso ao vigário.
Seu marido quer entrar na política? Vai você admirar-se da minha opinião a este respeito, que não parece opinião de uma devaneadora, como você me chama. Eu penso que a política para você tem uma onça de inconvenientes e uma libra de vantagens.
A política há de ser uma rival, mas pesadas as cousas antes essa que outra. Essa ao menos ocupa o espírito e a vida; mas deixa o coração livre e puro. Demais, eu nem sempre sou a cismadora que tens na cabeça; sinto um grãozinho de ambição comigo, a ambição de ser... ministra. Ri-se? Eu também me rio, o que prova que o meu espírito anda despreocupado e livre, livre como a pena que me corre agora no papel, produzindo uma letra que não sei se entenderá.
Adeus.
RAQUEL
XV
O DR. ALBERTO A RAQUEL
18 de fevereiro
Perdoe-me a audácia; peço-lhe de joelhos uma resposta que os seus olhos teimam em me não dar. Não lhe digo no papel o que sinto; não o poderia exprimir cabalmente. Mas o seu espírito há de ter compreendido o que se passa no meu coração, há de ter lido no meu rosto aquilo que eu nunca me atreveria a dizer de viva voz.
ALBERTO
XVI
D. RAQUEL A D. LUÍSA
21 de fevereiro
Mamãe estava com disposições de ir visitá-la; mas eu infelizmente não me acho boa, e adiamos a viagem. Quando desempenha você a sua palavra vindo passar alguns dias na Corte? Conversaríamos muito.
RAQUEL
XVII
À MESMA
5 de março
Não é carta; é apenas um bilhetinho. Não me dirá o que é o coração humano? Um logogrifo. "Mistério!", exclamará você ao ler estas linhas. Pois será.
RAQUEL
XVIII
ALBERTO A D. RAQUEL
8 de março
Oh! Não sabe como lhe agradeço a sua carta! Enfim veio! Foi um raio de luz entre as sombras da minha incerteza. Sou amado? Não me ilude? Também sente esta paixão que me devora o peito, capaz de levar-me ao céu, capaz de levar-me ao inferno?
Tem razão quando me pergunta se o não percebera já nos seus olhos. É verdade que eu julguei ler neles a minha felicidade. Mas podia iludir-me; supus que a suprema felicidade não era tão pronta, e se me iludisse, não sei se viveria...
Por que razão duvida de mim? Por que motivo receia que o meu amor seja um passatempo de sala? Que mortal haveria neste mundo que brincasse com a coroa de glória trazida à terra nas mãos de um anjo?
Não, Raquel... perdão se lhe chamo assim! Não, o meu amor é imenso, casto, sincero, como os verdadeiros amores.
Uma só palavra sua e podemos converter esta paixão no mais doce e delicioso estado de bem-aventurança. Quer ser minha esposa? Diga, responda essa palavra.
ALBERTO
XIX
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 10 de março
O coração é um mar, sujeito à influência da lua e dos ventos. Serve-lhe esta definição? Pena foi que o bilhetinho não tivesse mais quatro linhas: saberia agora tudo. Ainda assim adivinho alguma cousa; adivinho que ama.
LUÍSA
XX
À MESMA
Juiz de Fora, 17 de março
A 10 deste mês escrevi-lhe uma carta de que ainda não obtive resposta.
Por quê?
Já me lembrou se estaria doente; mas creio que se assim fosse ter-me-iam mandado dizer.
Esta carta vai por mão própria; o portador não volta cá; mas sendo por mão própria tenho certeza de que lhe será entregue. E quero que me responda imediatamente.
Vá; um esforço.
Adeus.
LUÍSA
XXI
À MESMA
Juiz de Fora, 24 de março
Nada até hoje! Que é isso, Raquel?
O portador da minha carta anterior mandou-me dizer que lhe havia entregue em mão própria; não estava doente; por que razão este esquecimento? Esta é a última; se me não escrever, acreditarei que outra amiga lhe merece mais, e que você esqueceu a confidente do colégio.
LUÍSA
XXII
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 30 de março
Esquecer-me de você? Está louca! Onde acharia eu melhor amiga nem tão boa? Não tenho escrito, é verdade, por mil razões, a qual mais justa, sendo a principal delas, ou antes a que as resume todas, uma razão... Não sei como lhe diga isto.
Amor?
Ah! Luísa, o mais puro e ardente que pode imaginar, e o mais inesperado também. Aquela devaneadora que você conhece, a que vive nas nuvens, viu lá mesmo das nuvens o esperado do seu coração, tal qual o sonhara um dia e desesperara de achar jamais.
Não lhe posso dizer mais nada, não sei. Tudo o que eu poderia escrever aqui estaria abaixo da realidade. Mas venha, venha, e talvez leia no meu rosto a felicidade que experimento, e no dele o sinal característico daquela superioridade que eu ambicionei sempre e tão rara é na terra.
Enfim, sou feliz!
RAQUEL
XXIII
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 8 de abril
Chegou enfim uma carta, e chegou a tempo, porque eu já estava disposta a esquecer-me de você. Ainda assim não lhe perdoava, se não fosse a razão... Céus! Que razão! Ama enfim? Achou o homem... quero dizer, o arcanjo que procurava a minha cismadora? Que figura tem? É bonito? É alto? É baixo? Vá, diga-me tudo.
Agora vejo que estive a pique de fazê-la perder a sua felicidade. Tanto lhe falei no tal Dr. Alberto, que, era bem possível, como às vezes acontece, vir a namorar-se dele, e então quando o outro chegasse... era tarde.
E diga-me: será ele velho como o da Mariquinhas Rocha? Não se zangue, Raquel, mas o peixe morre pela boca, e era possível que você fosse castigada por ter falado dela. Pela minha parte, não acharia que dizer, uma vez que ele a amasse e fosse homem digno de casar com a minha Raquel. Em todo o caso, antes um moço.
Não me atrevo a pedir-lhe o retrato; mas meu marido pede-lho. Não se zangue, eu contei tudo, e ele manda-lhe muitos parabéns. Os meus, irei eu mesma levá-los.
LUÍSA
XXIV
D. RAQUEL AO DR. ALBERTO
10 de abril
Estou muito zangada por não teres vindo ontem; cedo começas a esquecer-me.
Vem hoje ou eu fico zangada. Ao mesmo tempo quero que me tragas um retrato dos teus; é um segredo.
Ontem perdeste muito; esteve aqui a G... e naturalmente sentiu a tua falta. Sentes isso, não? Pobre da Raquel! Adeus.
RAQUEL
XXV
O DR. ALBERTO A D. RAQUEL
Teu ALBERTO
Adeus, minha desconfiada. Crê que eu te amo muito, muito e muito, agora e sempre.
Quanto à G... eu já não sei como te hei de dizer que é uma delambida de quem não faço caso; se queres, limitar-me-ei a cumprimentá-la apenas. Que mais desejas?
Levarei nessa ocasião o meu retrato, sem saber para que é; mas espero que não será para cousa má.
Teu pai pediu-me que eu fosse jantar hoje com a família; espera-me cedo.
Perdoa-me se não fui ontem lá; em compensação pensei muito em ti.
10 de abril
XXVI
D. RAQUEL A D. LUÍSA
17 de abril
Uma grande notícia! Fui ontem pedida a papai, e vou casar. Se soubesse como sou feliz!... Quisera que estivesse aqui para dar-lhe muitos e muitos beijos. Mas há de vir ao casamento, não? Se não vier, declaro que não caso.
Naturalmente adivinha que o retrato que vai dentro desta carta é o do meu noivo. Não é bonito? Que distinção! Que inteligência! Que espírito!... A alma, sobretudo, não creio que Deus mandasse a este mundo nenhuma outra que se lhe compare. Creio que eu não merecia tanto.
Venha depressa; o casamento há de ser em maio. Dê a notícia a seu marido.
RAQUEL
XXVII
D. LUÍSA A D. RAQUEL
Juiz de Fora, 22 de abril
Que cabeça! Disse tudo menos o nome do noivo!
LUÍSA
XXVIII
D. RAQUEL A D. LUÍSA
Corte, 27 de abril
Tem razão; sou uma cabeça no ar. Mas a felicidade explica ou desculpa tudo. O meu noivo é o Dr. Alberto.
RAQUEL