Conto

Ponto de Vista

1873

PONTO DE VISTA *

I

A D. LUÍSA P..., EM JUIZ DE FORA

Corte, 5 de outubro

Não me dirá a quem entregou você as encomendas que lhe pedi? Na sua carta vem mal escrito o nome do portador, e até hoje nem sombra dele, quem quer que seja. Será o Luís?

Ouvi dizer que você vinha para cá passar algum tempo; estimaria muito que assim fosse. Havia de gostar disto agora, apesar do calor, que tem sido forte. Hoje entretanto temos um dia excelente.

Ou então, no caso de não vir, estimaria muito ir eu para lá; mas papai, como você sabe, ninguém há que o tire dos seus cômodos; e mamãe anda meia adoentada. Vontade teria ela de me ser agradável, mas eu é que não sou tão egoísta. E olhe que perco muito; porque, além de ir ver a minha melhor amiga, iria ao mesmo tempo verificar se é verdade que ainda não tem esperanças de um nenê. Alguém me disse que sim. Por que nega você isso?

Esta carta irá amanhã. Escreva-me logo; e dê muitas lembranças a seu marido, minhas e de todos nós. Adeus.

RAQUEL

II

À MESMA

Corte, 15 de outubro

Gastou muitos dias, mas veio uma carta longa, e, apesar disso, curta. Obrigada pelo trabalho; peço-lhe que o repita; aborreço os seus bilhetinhos, escritos às carreiras, com o pensamento... em quem? Nesse marido cruel que só cuida de eleições, segundo li outro dia. Eu escrevo cartinhas quando não tenho tempo para mais. Mas quando me sobra tempo escrevo cartões. Creio que disse uma tolice; desculpe-me.

Vieram as encomendas logo no dia seguinte ao da minha última carta. E que quer você que eu lhe mande? Tenho aqui uns figurinos recebidos ontem, mas não há portador. Se puder arranjar algum por estes dias irá também um romance que me trouxeram esta semana. Chama-se Ruth. Conhece?

A Mariquinhas Rocha vai casar. Que pena! Tão bonitinha, tão boa, tão criança, vai casar... com um sujeito velho! E não é só isto: casa-se por amor. Eu duvidei de semelhante cousa; mas todos dizem que tanto o pai como os mais parentes procuraram dissuadi-la de semelhante projeto; ela porém insistiu de maneira que ninguém mais se lhe opôs.

A falar verdade, ele não está a cair de maduro; é velho, mas elegante, gamenho, robusto, alegre, diz muitas pilhérias e parece que tem bom coração. Não era eu que caía apesar de tudo isto. Que consórcio pode haver entre uma rosa e uma carapuça?

Antes, mil vezes antes, casasse ela com o filho do noivo; esse sim, é um rapaz digno de merecer uma moça como ela. Dizem que é um bandoleiro dos quatro costados; mas você sabe que eu não creio em bandoleiros. Quando uma pessoa quer, vence o coração mais versátil deste mundo.

O casamento parece que será daqui a dous meses. Irei naturalmente às exéquias, quero dizer, às bodas. Pobre Mariquinhas! Lembra-se das nossas tardes no colégio? Ela era a mais quieta de todas, e a mais cheia de melancolia. Parece que adivinhava este destino.

Papai aprovou muito a escolha dela; faz-lhe muitos elogios como pessoa de juízo, e chegou a dizer que eu devia fazer o mesmo. Que lhe parece? Eu, se tivesse de seguir algum exemplo, seguia o da minha Luísa; essa sim, é que teve dedo para escolher... Não mostre esta carta a seu marido; é capaz de arrebentar de vaidade.

E vocês não vêm para cá? É pena; dizem que vamos ter companhia lírica, e mamãe está melhor. Quer dizer que vou passar algum tempo de vida excelente. O futuro enteado da Mariquinhas, o tal que ela devia escolher em lugar do pai, afirma que a companhia é magnífica. Seja ou não, é mais um divertimento. E você lá na roça!...

Vou jantar; adeus. Escreva-me quando puder, mas nada de cartas microscópicas. Ou muito ou nada.

RAQUEL

III

À MESMA

Corte, 17 de outubro

Escrevi-lhe anteontem uma carta, e acrescento hoje um bilhetinho (sem exemplo) para dizer que o velho noivo da Mariquinhas inspirou paixão a outra moça, que adoeceu de desespero. É uma história complicada. Compreende isto? Se fosse o filho vá; mas o pai!

RAQUEL

IV

À MESMA

Corte, 30 de outubro

Muito velhaca é você. Então porque lhe falei duas ou três vezes no rapaz, imagina logo que estou apaixonada por ele? Papai nestes casos costuma dizer que é falta de lógica. Eu digo que é falta de amizade.

E provo.

Pois se eu tivesse algum namoro, afeição ou cousa assim, a quem diria em primeiro lugar senão a você? Não fomos durante tanto tempo confidentes uma da outra? Supor-me tão reservada é não me ter amizade nenhuma, porque a falta de afeição é que traz a injustiça.

Não, Luísa, eu nada sinto por esse moço, a quem conheço de poucos dias. Falei nele algumas vezes por comparação com o pai; se eu estivesse disposta a casar-me, certamente que preferia o moço ao velho. Mas é só isto e nada mais.

Nem imagine que o Dr. Alberto (é o nome dele) vale muito; é bonito e elegante, mas tem ar pretensioso e parece-me um espírito curto. Você sabe como eu sou exigente nesses assuntos. Se eu não achar marido como imagino, fico solteira toda a minha vida. Antes isso, que ficar presa a um cepo, ainda que esbelto.

Também não basta ter os predicados que eu imagino para me seduzir logo. Anda agora aqui em casa um sujeito que nos foi apresentado há pouco tempo; qualquer outra moça ficava presa pelas maneiras dele; a mim não me faz a menor impressão.

E por quê?

A razão é simples; toda a graça que ele ostenta, toda a afeição que simula, todos os cortejos que me faz, quer saber o que é, Luísa? É que eu sou rica. Descanse; quando me aparecer aquele que o céu me destina, você será a primeira a ter notícia. Por ora estou livre, como as andorinhas que estão agora a passear na chácara.

E para vingar-me da calúnia, não escrevo mais. Adeus.

RAQUEL

V

À MESMA

Corte, 15 de novembro

Estive doente estes dous dias; foi uma constipação forte que apanhei saindo do Ginásio, onde fui ver uma peça nova, muito falada e muito insípida.

Sabe você quem estava lá? A Mariquinhas com o noivo no camarote, e o enteado também, o futuro enteado, se Deus quiser. Não se pode imaginar como ela parecia contente, como ela conversava com o noivo! E olhe que de longe, à luz do gás, o tal velho é quase tão moço como o filho. Quem sabe? Bem pode ser que ela viva feliz!

Dou-lhe muitos parabéns pela notícia que me dá de que brevemente veremos um nenê. A mamãe também lhe manda parabéns. O Luís leva com esta carta uns figurinos...

RAQUEL

VI

À MESMA

Corte, 27 de novembro

A sua carta chegou quando estávamos almoçando, e foi bom tê-la lido depois, porque se a leio antes não acabava de almoçar. Que história é essa, e quem lhe meteu na cabeça semelhante cousa? Eu, namorada do Alberto! Isso é caçoada de mau gosto, Luísa! Se alguém lhe mandou dizer tal, teve certamente intenção de me envergonhar. Se você o conhecesse, não era necessário este meu protesto. Já lhe disse as boas qualidades dele, mas os seus defeitos são para mim superiores às qualidades. Você bem sabe como eu sou; para mim a menor nódoa destrói a maior alvura. Uma estátua... estátua é o termo próprio, porque o tal Alberto tem certa rigidez escultural.

Ah! Luísa, o homem que o céu me destina ainda não veio. Sei que não veio porque ainda não senti dentro de mim aquele estremecimento simpático que indica a harmonia de duas almas. Quando ele vier, fique certa de que será a primeira a quem eu confiarei tudo.

Dir-me-á que, se eu sou assim fatalista, devo admitir a possibilidade de um marido sem todas as condições que exijo.

Engano.

Deus, que me fez assim, e me deu esta percepção íntima para conhecer e amar a superioridade, Deus me há de deparar uma criatura digna de mim.

E agora que me expliquei deixe-me ralhar-lhe um pouco. Por que motivo dá tão facilmente ouvidos a uma calúnia contra mim? Você, que me conhece há tanto devia ser a primeira a pôr de quarentena esses ditos sem senso comum. Por que o não faz?

Gastou você duas páginas para defender a Mariquinhas. Eu não a acuso; deploro-a. Pode ser que o noivo venha a ser um excelente marido, mas não creio que esteja na altura dela. E é neste sentido que eu a deploro.

A nossa divergência tem natural explicação. Eu sou uma moça solteira, cheia de caraminholas, sonhos, ambições e poesia; você é já uma dona de casa, esposa tranquila e feliz, mãe de família dentro de pouco tempo; vê a cousa por outro prisma.

Será isto?

Parece que a companhia lírica não vem. A cidade está hoje muito alegre; andam bandas de música nas ruas; chegaram boas notícias do Paraguai. Naturalmente sairemos hoje; não tem saudades de cá?

Adeus.

Lembranças de todos a seu marido.

RAQUEL

VII

À MESMA

Corte, 20 de dezembro

Tem razão; pareço ingrata. Há quase um mês que lhe não escrevo, apesar de ter recebido já duas cartas. Seria longo explicar esta demora, e eu infelizmente não tenho tempo para tanto, porque estão aqui, alguns dias, as primas Alvarengas.

Com que então, você confessa que apenas me quis experimentar? Eu logo vi que ninguém lhe poderia dizer semelhante cousa a respeito do Dr. Alberto.

O casamento da Mariquinhas está marcado para véspera de Reis. Iremos assistir ao sacrifício. Desculpe-me, Luísa; bem sabe como sou sarcástica, e às vezes... Desculpe-me, sim?

E todavia, quer saber uma cousa? Mudei de opinião a certo respeito. Hoje penso que antes o pai que o filho. Que espírito frívolo! Que sujeito superficial e tolo é o tal Alberto! O pai é grave e sabe ser amável; e é amável sem deixar de ser grave. Tem uma distinção própria, uma conversa animada, é engenhoso e sagaz.

Mil vezes o velho... para ela.

Pergunta-me o que farei eu no caso de nunca encontrar o ideal que procuro? Já lhe disse: nesse caso fico solteira. O casamento é uma grande cousa, é a flor dos estados, concordo; mas é mister que não seja um cativeiro, e cativeiro é tudo o que não realiza as nossas aspirações íntimas.

Agradeço os seus conselhos, mas quer que lhe diga? Você fala como quem é feliz; parece-lhe que o casamento, quaisquer que sejam as condições, é um antegosto do paraíso.

Creio que nem sempre há de ser assim.

Verdade é que, dependendo as cousas das impressões de cada um, a Mariquinhas pode ser feliz, visto que o marido que escolheu parece falar-lhe ao coração. Não o nego; mas, nesse caso, continuo a lastimá-la, porque (repito) não compreendo a união de uma flor com uma carapuça. E não escrevo mais por não dizer mal dela. Perdoe-me você estas tolices, e creia que sou amiga, agora e sempre.

RAQUEL

VIII

À MESMA

Corte, 8 de janeiro

Casou-se a Mariquinhas. Festa íntima, mas brilhante. A noiva estava esplêndida, risonha, orgulhosa. O mesmo se pode dizer do noivo, que parecia ainda mais moço do que me parecera uma vez no teatro, a ponto de me fazer desconfiar da velhice dele. A cada instante cuidava que o homem tirava a máscara e confessava ser irmão do filho.

Perguntar-me-á você se eu não tive inveja?

Confesso que sim.

Não sei bem se era inveja; confesso porém que suspirei quando vi a nossa formosa Mariquinhas, com o seu véu e sua grinalda de flores de laranja, derramar um olhar tão celeste em torno de si, feliz por se despedir deste mundo de futilidades como é a vida de uma moça solteira.

Suspirei, é verdade.

Se naquela mesma noite eu pudesse escrever o que senti, acredite você que teria uma página de literatura digna de figurar nos jornais.

Hoje tudo passou.

O que não passou, entretanto, porque existia antes e existirá sempre, porque nasceu comigo e comigo morrerá, é este sonho de uns amores que eu nunca vi na terra, uns amores que eu não posso exprimir, mas que devem existir visto que eu tenho a imagem deles no espírito e no coração.

Mamãe, quando me vê aborrecida e devaneadora, costuma perguntar-me se estou respirando as nuvens. Ela ignora talvez que exprime com essa palavra o estado do meu espírito. Pensar nestas cousas não é ir respirar as nuvens lá tão longe da terra?

Acabo de reler o que escrevi, e riscaria tudo se tivesse mais papel para escrever. Infelizmente não tenho, é meia-noite, e esta carta há de seguir amanhã cedo. Risque pois o que aí fica escrito; não vale a pena guardar tolices.

Novidade não há que mereça a pena de mencionar. Esquecia-me dizer-lhe que achei uma verdadeira qualidade no Dr. Alberto. Adivinha? Dança admiravelmente. "Má língua!", dirá você. E para que não diga mais nada, aqui me fico.

RAQUEL

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