Conto

O Último Dia de um Poeta

1867
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em maio e junho de 1867, assinado por Max. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o original.

IX

Tomei o remédio e continuei:

- Amaram-se, pois. É preciso observar que o poeta tinha sede de amor. Atravessara um deserto, onde as miragens sucediam-se de hora em hora, e chegava enfim ao oásis da vida, uma fonte, uma relva, uma palmeira. Determinou não ir adiante e descansou, com a longa caravana das suas ilusões, sobre a relva, à sombra da palmeira, à beira da fonte... Desculpe esta linguagem romanesca e oriental: é própria da imaginação exaltada.

Não existiam já os pais da viúva. Existia um tio que não era nem peixe nem carne; indiferente ao futuro da sua sobrinha como ao seu próprio. Tinha alguns bens da fortuna, poucos, e que ainda mais exíguos se tornavam em virtude do jogo largo e desesperado que fazia com eles nas bancas mais concorridas. A sobrinha tinha ainda menos.

O amor do poeta e da viúva prosseguiu cada vez com mais força e mais intensidade. Mil projetos, mil planos formavam ambos na doce intimidade dos seus corações. Eram duas almas sinceramente poéticas. Viam o resto do mundo pelo prisma do seu amor e da sua fantasia. O lado feio, real, positivo, da existência aparecia-lhes assim, como se fora tudo dourado pela luz do céu. Durou esta vida seis meses.

Perguntar-me-á por que se não casaram. É simples. No meio das suas imaginações não os abandonava certo critério frio e necessário. O casamento era uma obrigação para que ambos se deviam preparar. O poeta foi o primeiro a adiantar esta consideração a que a viúva se curvou convencida. Mas de novo juraram entre si fidelidade sem quebra, e o céu que os ouviu pareceu neste momento registrar aquele juramento.

Sucedeu porém que se apresentou diante do poeta um rival ao coração da moça. Era um homem de 37 anos, seco de corpo e de espírito, inteligência acanhada, coração mesquinho, vivendo dos sentidos, e não dos sentimentos, perfeita reprodução, dizia a moça, do primeiro marido que ela teve. Chamava-se Venâncio.

Dizia ter fortuna e tinha, razão poderosa do arrojo com que entrou em liça competindo com o poeta. A moça recebeu-o, não com frieza, mas com desdém. Valeu-lhe isto uma repreensão do tio, que era amigo do pretendente e que o achava merecedor de todos os respeitos.

- Mas, meu tio - perguntou ela -, sabe que o sr. Barroso quer?

- O que é?

- Quer... amar-me.

- Quem te disse isso?

- Desconfio.

- Ora, desconfianças...

- Oh! Não me engano; pode ficar certo de que é assim.

- Sabes que mais? - disse o tio. Não te previnas contra esse homem, respeitável a todos os respeitos. É um caráter sério, fora dos homens do mundo, capaz de compreender as conveniências, e além disso possuidor de uma fortuna. Não te rias assim, que é indecente. Eu sei que as tuas preferências poéticas acham nesta consideração da fortuna uma consideração sem valor. Isso é criancice. A fortuna é uma das cousas mais respeitáveis.

- Meu tio - observou ela -, não parece estar muito convencido disso.

O tio riu-se e, batendo-lhe na face, acrescentou:

- Já sei por que dizes isso... Mas que queres? São cousas... Enfim, o que desejo é que não maltrates o sr. Barroso.

Tudo isso foi referido pela moça ao poeta. Riram ambos muito da pretensão e da proteção, e descansaram por esse lado.

Não quero, doutor, entrar nas mil particularidades do amor entre o poeta e a viúva. Cartas, versos, flores, ósculos sinceros e castos, tudo isso que se troca entre namorados, todos esses episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo isso se deu entre os meus dous heróis.

Estavam próximos de pedirem o necessário consentimento para que a união legal confirmasse a união moral em que eles existiam. Marcaram dia, e o poeta dispôs-se a usar das palavras mais brandas e persuasivas que conhecesse da língua portuguesa para convencer ao tio da sua amada de que podia fazer a felicidade dela.

Era desnecessário dizer nada à própria mãe, que desde os primeiros dias do amor do poeta ficou ciente por confissão dele.

Na véspera do dia aprazado, o poeta foi ver a viúva. Achou-a meia triste. Indagou o motivo dessa tristeza a que não estava afeito, mas não conseguiu arrancar uma palavra à moça. Respondeu que tinha dores de cabeça, mas depois de muitas instâncias e com ar de quem não dizia a verdade.

Passando a falar do pedido em casamento, a viúva disse ao amante que o adiasse, e quando este lhe perguntou que razões haviam para isso, ela respondeu que lhas comunicaria depois. Aconteceu logo o que era natural, um pequeno arrufo. E só arrufo, porque ela deu aquela resposta entre tantos suspiros, com um olhar tão convencido, tão sincero, que o poeta não pôde, o que lhe seria natural, experimentar maior desgosto.

O doutor sabe o que são arrufos dos namorados, é chuva miúda da primavera que tão depressa vem como vai. No fim de alguns minutos tinham voltado às boas, e o poeta despedia-se da viúva com a convicção de que só uma grande razão faria com que ela adiasse o pedido do casamento.

Era com efeito uma grande razão, como vai ver.

Desde aquele dia em diante a viúva mudou. Mais e mais fria, mais e mais reservada, trazia o espírito do poeta entre a dúvida e o desespero, entre a mágoa e a esperança. Que se teria passado? Em vão o rapaz indagava todos os motivos prováveis e possíveis; não podia atinar com a causa de semelhante transformação.

Enfim, uma noite em que se achavam ambos na casa de uma terceira pessoa, o poeta pôde falar a sós à viúva. Expôs-lhe francamente o que sentia e fez um franco interrogatório sobre a tristeza que a moça apresentava.

As respostas da moça foram ambíguas. O poeta desesperou.

- Por que me não falarás com franqueza, Carlota?

- Quer mais franqueza?

- Oh! Não zombes! Tu não calculas o que sofro, nesta incerteza em que me pões. Sê franca, prefiro isso.

- Não sei que te hei de dizer.

- Dize o que quiseres, inventa, se te parece, mas dize alguma cousa. Estas respostas ambíguas, estas evasivas transparentes não me consolam, antes me deitam em pior estado. Não me amas?

- Amo-te.

- Então?...

Esta conversa foi interrompida. Nessa noite não puderam falar mais a sós.

O poeta saiu desesperado. Sentia que algum segredo existia no fundo daquela tristeza da moça... A suspeita curvou-se-lhe à cabeceira e introduziu-lhe no espírito mil ideias negras que foram outros tantos demônios que fizeram daquela noite uma noite infernal...

O poeta não dormiu. Depois de vãos esforços levantou-se e foi... escrever versos! Triste consolação dos que a natureza dotou com o gênio da poesia. No fim de uma hora de trabalho em que as estrofes lhe caíam dos bicos da pena como lágrimas de dor e de saudade, o poeta tinha transferido parte de sua alma para o papel. Estava mais calmo, sem estar menos triste.

Dous dias conservou-se em casa sem falar a pessoa alguma. De hora a hora esperava uma carta de Carlota. Nada. Ao terceiro dia, desesperado com o silêncio da viúva, resolveu ir, houvesse o que houvesse, pedi-la ao tio. Já estava em caminho quando lhe ocorreu a ideia de que sem completa averiguação dos motivos da tristeza da moça podia expor-se não só ao desgosto, mas ainda ao desar. Voltou para casa e escreveu uma carta à viúva pedindo-lhe explicações.

Veio a resposta. Era um desengano. Carlota respondia que não podia amá-lo, e que se esquecesse dela.

Dizer-lhe o que o poeta sofreu é contar-lhe muita cousa que deve saber de longa data. Sofreu... o que estou sofrendo. Caiu enfermo com uma febre violenta. Só daí a um mês se levantou, mas então já tinha em si o germe de uma enfermidade mais grave que depois o tomou de todo... e há de levá-lo à sepultura.

Durante a moléstia fez loucuras incríveis. Tudo o que podia agravar-lhe o estado e encaminhar-lhe a morte, fê-lo com uma alegria selvagem, mas sincera.

Enfim, restabelecido da febre, mas, como disse, doente de outra doença, o poeta levantou-se e não teve mão em si. Resolveu ir procurar a viúva. Queria a todo o transe conhecer as causas da recusa de Carlota, e sobretudo queria lançar-lhe em rosto a sua perfídia, de modo a não parecer covarde.

Carlota recebeu-o com um gesto de surpresa. Foi a ele e perguntou-lhe se já estava bom. Ele descobriu logo o fingimento daquela solicitude e quis mostrar que não se enganava. Suas exprobrações foram enérgicas e veementes. Carlota ouviu-o com uma espécie de torpor.

Depois, quando a alma do poeta derramou em palavras amargas a dor de que estava possuído, veio uma prostração moral, e o poeta, já mais brando, pediu a Carlota uma explicação da carta que esta lhe mandara.

Então, a viúva, fingindo um grande esforço, deu em pleno rosto ao namorado poeta uma resposta que equivalia a um tiro. Disse-lhe que se ia casar, e com Venâncio.

Afigurava-se ao poeta esta união como tão monstruosa, que ao princípio não quis acreditar nas palavras de Carlota. Olhou surpreso para ela, mas surpreso como o homem que não dá crédito, e intimou-lhe que falasse seriamente.

- Mais seriamente do que falo? - perguntou Carlota.

- Sim, seriamente.

- É isto.

- Pois deveras...

- É verdade.

O rapaz sentiu que lhe faltava o chão debaixo dos pés. Pareceu-lhe que ia cair em um abismo. É assim que deve ser a vertigem do náufrago. Como o náufrago, o poeta agarrou-se ao primeiro objeto que encontrou. Era um sofá. Encostou-se ao sofá e olhou fixo para Carlota.

- Sei que isto lhe há de doer, mas é necessário...

- Mas ama-o?

- Amo.

- Ah! Não diga isso!

- Por que não?

E fazendo esta pergunta a moça mostrou um ar de desdém que o poeta humilhado, abatido, indignado não pôde dizer mais palavra. Foi, com passo incerto e vacilante, buscar o chapéu que se achava sobre o piano, e, cumprimentando a viúva friamente, encaminhou-se para a porta.

A moça deu alguns passos para ele e murmurou:

- Só uma cousa lhe peço.

O poeta deteve-se. Era ainda uma esperança que lhe surgia no meio daquela amargura e desespero de que se enchera sua alma. Interrogou-a com o olhar. A moça, pregando os olhos no chão, disse:

- Não me queira mal.

- Que não lhe queira mal? Mas isto é zombaria... Não lhe queira mal!... Acha que me faz um beneficio... Não vê que me matou?

- Ah! Perdão... mas...

- Ama a outro, não? - perguntou o moço com ironia.

- Amo - respondeu ela, mas de modo que o poeta antes adivinhou do que ouviu.

X

O moço saiu desesperado da casa de Carlota.

Passaram-se os dias. O mal que o minava foi tomando proporções maiores, e dentro de pouco tempo declararam-se os tubérculos pulmonares. É a minha moléstia, como sabe, doutor.

Aos primeiros cuidados que tiveram amigos e parentes para que se curasse, o poeta recusou peremptoriamente. Ofereceu-se ocasião de ir a Buenos Aires; não quis; e para não dar a verdadeira razão desta recusa, disse que tinha esperança de curar-se na terra natal, e que além disso tinha aversão às viagens marítimas.

"Queria morrer?", perguntará o doutor. Queria e quer. Odiava a mulher? Não, amava-a, ainda a ama. Tudo que possa dizer e sentir contra ela não é senão amor disfarçado. Se não fosse assim, decerto que teria aceitado a vida que lhe ofereciam às mãos cheias. Mas recusou tudo; aceitou a moléstia como um bem da Providência.

Pedir-me-á a explicação deste amor por um monstro, e eu não saberei o que lhe hei de dizer.

Todavia, há um fato que me parece explicar tudo, e vem a ser: se o amor do poeta fora um desses amores fáceis ou simplesmente uma dessas afeições que tomam base na vaidade pueril, creio que a perfídia de Carlota teria ofendido a suscetibilidade, deixando intacto o coração, porque realmente o coração não se interessa em afeições tais.

Mas o amor do poeta não era esse: era o amor verdadeiro, o amor único; a traição não podia deixar de aniquilá-lo. Foi o que sucedeu. Não sou filósofo, doutor; mas afigura-se-me que as cousas se passaram assim.

Durante os primeiros tempos de sua moléstia, o poeta procurou sempre todas as ocasiões em que podia ver Carlota. A custo puderam contê-lo no dia do casamento da viúva. Ele queria, à força, ir assistir a esta cena e confundir com a sua presença os desposados.

Onde quer, porém, que pudesse encontrá-la, e em poucos lugares era, o rapaz ia e não deixava de fixar nessa mulher os olhos de dor e desespero. Depois, voltava mais doente e mais amante para casa. Houve uma ocasião em que podia falar-lhe; não quis; entendia poder vê-la; falar-lhe afigurava-se ao moço que seria condenável.

A moléstia progredia até que se declarou perigosa. A ciência foi impotente diante do princípio do mal que lavrava, até que um dia, no dia em que a Igreja celebra o nascimento do Salvador, poucas horas antes de morrer, o moço contou esta história ao sábio doutor que tratava dele.

XI

Que me diz a esta história?

- Digo que o ouvi a custo. Eu já sabia alguma cousa, mas não sabia tão completamente. Mas que necessidade tinha de me referir essas cousas. Olhe, está pior, a tosse está mais forte, vejo-o mais pálido e abatido. Foi imprudência...

- Não foi. Eu desejava que o doutor ficasse sabendo de mais uma história destas que tão vulgares são e algumas vezes tão funestas.

- Mas diga-me...

- O quê, doutor?

- Se as cousas todas que me contou tivessem uma explicação, explicação razoável, honesta; se em vez de monstro, Carlota fosse um anjo, viveria?

- Um anjo? Do mal!

- Mas enfim...

- Não sei.

- Há de viver. Se alguma cousa houver que o possa fazer, visto que nem a ciência, nem os conselhos dos amigos podem fazê-lo sair desse abatimento em que está, acredite que empregarei os meus esforços para lhe dar esse remédio supremo.

- Veja sempre...

- Eu lhe prometo. Entretanto, ainda uma vez lhe peço, não se deixe perder nessas recordações angustiosas do passado; seja homem, e principalmente seja filho!...

- Minha mãe!...

- Seja filho. Lembre-se que ela não poderá resistir...

- Sinto passos, doutor...

- É ela!

- Oh! Minha mãe!

Minha mãe está mais pálida que eu. Interroga o doutor com o olhar, e este abaixa os olhos. Que haverá entre ambos?

- Onde vai, doutor?

- Vou sair. Até já.

- Volta?

- Volto. Mas espere, tome já este remédio.

- Então, doutor, como acha meu filho?

- Vou consultar alguns colegas e cá virei com eles. Talvez se possa fazer alguma cousa. Até já. Coragem, meu doente!

XII

São cinco horas da tarde.

Minha mãe foi descansar um pouco. Coitada! Passou a noite em claro, e durante todo o dia de hoje não parou um instante.

O doutor ficou de voltar e voltou com mais dous médicos. Examinaram-me e resolveram que eu não estava tão perigoso como parecia. Depois assentaram no medicamento que se devia empregar. Uma das cláusulas que me impõem é ir tomar ares. Não sei se o faça. Eu creio que eles todos se enganaram acerca do meu estado.

Daqui a pouco estará findo o dia e com ele a minha vida, talvez. Estou pior. Sinto uma opressão que me incomoda; minha mãe aconselhou-me que me deitasse, mas eu não posso; quero morrer como homem.

Tenho necessidade de escrever. Quero derramar a minha última gota de poesia no papel, e deixar ao mundo ao menos uma lembrança de que fui mártir e poeta. Será este o canto do cisne.

Que direi?

Sinto a cabeça pesada; e o meu espírito mal pode aplicar-se ao que a minha vontade o solicita. Ah! Já nem sou poeta! Musa ardente dos tempos da felicidade e do sossego, onde paras agora que não vens reclinar-te, como outrora, à cadeira do teu poeta infeliz?

Alguém chega... Guardemos estes papéis... Quem é? Minha mãe!...

- Eu e mais alguém, meu filho.

- Quem?

- Tens coragem?

- Por quê, minha mãe?

- Para o que vais ver?

- É a morte?

- É a vida.

- Mande entrar a vida, minha mãe.

XIII

Olhei, era... era Carlota.

- Carlota!

Recuei até à cama. Vi entrar uma mulher magra, abatida, doente; com os olhos fundos e ardentes de febre. Vê-se que o remorso dilacera aquela alma. Vê-se que ela pena os pecados em que caiu.

Parou à porta, e com as mãos magras, mas ainda belas, comprime o seio ofegante. Tem os olhos baixos como de vergonha. Parece pregada ao lugar em que ficou.

Nem eu nem ela podemos falar. Minha mãe toma-lhe a mão e trá-la para junto da janela.

- Não é uma criminosa que vem implorar perdão - disse-me Carlota.

- Pois que é?

- Ah! Eu não quero perder tempo em longas explicações... Venho dizer-lhe que se a sua vida depende da declaração de que eu o amo, pode morrer; porque eu não posso fazer essa declaração. Mas se é razão para viver a certeza de que, no dia em que o repeli, ainda o amava, e que casando com aquele que é hoje meu marido eu ainda o tinha na memória, viva; porque isto é verdade.

- Carlota!

- É verdade. Depois, a consciência do dever prevaleceu, e eu pude, apesar da lembrança, ver que me podia fazer feliz, mas que, casada com outro, só podia trazer desgraça de mim mesma.

Dizendo estas palavras Carlota parece animada por um fogo interior. Será sincera? A franqueza com que falou parece nascer de uma consciência sincera. Agora, o que me parecia remorso é vergonha, é já outra cousa; reparo mais, e como que vejo na fronte desta mulher o sinal do martírio e da dor.

Minha mãe fê-la retirar-se. Eu não sei o que faço nem onde estou; parece-me que sonho; abro os olhos mais e mais, e corro um olhar por todos os ângulos do quarto para ver se com efeito estou na realidade.

Vê-la! Vê-la ainda, aqui, junto de mim, sincera, regenerada na minha consciência de um crime que lhe atribuí, oh, meu Deus! Isto é quase a felicidade!

Mas, se o que ela diz é verdade, qual a explicação de todos estes fatos que tiveram tão funestas consequências?

Carlota adivinha esta interrogação íntima. Minha mãe fê-la sentar. Depois, tomando um ar de recato e modéstia, Carlota procura referir todas as circunstâncias do seu casamento.

XIV

O que ela contou resume-se assim:

Quando, nos seus sonhos de felicidade e de amor, ela contava unir-se a mim e viver uma vida nova e única, veio transtornar os seus projetos o tio de quem já falei, e cuja neutralidade nos parecia a ambos sem contestação.

Neutral seria, decerto, o bom tio, se uma circunstância não o impelisse ao passo que deu. Tenho certeza de que ele gostava de mim e de Carlota, mas a paixão e o vício decidiram as cousas de modo diferente.

Venâncio era um dos seus parceiros habituais do jogo. Era rico, e por essa circunstância, talvez, tinha uma felicidade rara. A água corre para o mar, diz o provérbio. O dinheiro dos parceiros corria para a algibeira farta de Venâncio.

Até então, isto é, até a hora em que o tio de Carlota conheceu Venâncio, a boa sorte tinha protegido aquele. Mas Venâncio apareceu com a sua felicidade inaudita e bem depressa os últimos recursos do velho se esgotaram. É sabido como o jogo dá certa embriaguez que mais se exalta com a má fortuna. O tio de Carlota atirou-se às últimas operações. Jogou a crédito e perdeu. Insistiu e perdeu ainda. Insistiu, insistiu e perdeu sempre. Recuou a conselho de alguns amigos.

As quantias perdidas ao jogo com Venâncio perfaziam uma soma avultada. O tio de Carlota achou-se repentinamente em uma posição difícil. Como pagar-lhe? Escasseados os recursos, nem tinha onde buscar, ainda por empréstimo, a grossa quantia de que era devedor. Em tal situação só havia um meio. Pôr termo ao vício que o arruinara e procurar no trabalho, se fosse possível, o saldo de tão enorme dívida.

Este era o meio razoável, se porventura a lei do jogo, que é uma lei arbitrária como o próprio vício em que se funda, não o obrigasse a um prazo breve e fatal.

O tio de Carlota pensou nisto e desanimou. Era um abismo que tinha diante de si. Os recursos de Carlota, que eram escassos, não podiam, no caso de generosidade da moça, servir para uma quinta parte da dívida. Era despojá-la do patrimônio sem proveito.

O desgraçado, sem saber que fazia, sem meios reais, nem recursos da imaginação, saiu um dia de manhã em direção à casa de Venâncio.

Devo dizer que, já antes do desastre que fez de Venâncio um pesadelo para o tio de Carlota, o credor frequentava a casa deste.

O tio de Carlota entrando em casa de Venâncio não tinha uma ideia a apresentar; ia conversar e apanhar a primeira ideia que lhe sugerisse a conversa, ou aceitar o projeto razoável que o credor lhe indicasse.

Venâncio recebeu o devedor com o mais amável dos sorrisos nos lábios. Isto animou o desgraçado devedor.

- A que devo a sua visita?

- Não adivinha?

- À dívida?

- É verdade.

- Vem pagá-la? Não havia pressa.

- Não, não venho pagá-la.

- Ah!

Vê-se que este introito não era dos mais animadores. O tio de Carlota calou-se e mudou de conversa, sendo acompanhado no novo assunto por Venâncio, que se porfiava em ser o mais amável deste mundo.

Depois de meia hora de conversa sobre cousas diferentes, Venâncio voltou bruscamente ao assunto da dívida.

O devedor empalideceu.

Que responder?

Os olhos de Venâncio estavam pregados nele, e quanto mais corriam os minutos, mais vazio se achava o espírito do tio de Carlota.

Enfim, como era preciso responder alguma cousa, o pobre homem disse francamente que não podia pagar, e que nem lhe ocorria o meio para isso.

Venâncio sorriu e respondeu:

- Pois é simples. Há três dias que a fortuna me desampara, e, como velho jogador que é, deve saber que ela tem seus caprichos e muitas vezes abandona os antigos aliados para acompanhar outros novos. Talvez que ela hoje esteja do seu lado.

O tio de Carlota estremeceu a esta proposta. A alma do jogador despertou e sentiu-se arrastada para a banca. Ganhar em dous minutos tudo o que perdera, ver-se de um só lance aliviado de uma obrigação e de um peso no espírito era para o devedor a suprema felicidade.

Não hesitou, senão o tempo necessário ao espanto que lhe causava a proposta, e, levantando-se, com as mãos estendidas para Venâncio, declarou-lhe alvoroçado que aceitava.

Tudo se preparou para o duelo fatal.

Diante da mesa em que se ia decidir a sua sorte, o tio de Carlota cobrou novo ânimo.

Venâncio estava frio e tranquilo. Parecia que não jogava dinheiro, e dinheiro avultado.

O tio de Carlota acompanhou a partida ansioso e atordoado. Não respirava, com a mão comprimia o coração e com os olhos parecia querer arrancar do baralho a carta feliz...

Infeliz! A carta que saiu dava ganho a Venâncio.

O tio de Carlota soltou um grito.

- Quer mais? - perguntou friamente Venâncio.

- Não! Não!

- Deve-me o dobro.

- Como lhe poderei pagar? Oh! Meu Deus!

- Não se aflija - disse o credor -. Isto não é sangria desatada; não lhe exijo agora o pagamento; pode pagar amanhã, depois, daqui a um mês... e até...

- E até?

- Até nunca.

- Nunca!

- Nunca.

A estranheza das palavras de Venâncio e o ar frio que ele apresentava fizeram impressão no tio de Carlota.

- Explique-se - disse ele.

- É simples. Há de crer que por muito exigente que eu fosse nunca poria em sérias dificuldades um tio. A um estranho é possível, é até certo, mas a um tio... Ora, nada impede que eu seja seu sobrinho.

O tio de Carlota não compreendeu e não respondeu.

- Não compreendeu? - perguntou Venâncio.

- Meu sobrinho, como?

- Não tem uma sobrinha? - perguntou Venâncio.

- Ah!

Venâncio expôs demoradamente a sua pretensão. Pediu formalmente a mão de Carlota. O tio hesitou ainda, disse-o ao menos depois à sobrinha, mas este casamento era a sua salvação. Depois, Venâncio tivera o cuidado de convencê-lo de que ele não era indiferente à viúva. Enfim, quando saiu da casa de Venâncio, o tio de Carlota deixou-lhe prometida a mão de sua sobrinha.

Quando esta ouviu de seu tio a proposta de Venâncio, repeliu-a peremptoriamente. Mas o tio, entre as lágrimas da sua conveniência, chegou a convencer a pobre moça de que casar com Venâncio era salvá-lo da desonra. Carlota pediu dilação para refletir. A reflexão foi contrária ao coração. Carlota aceitou a proposta, não sem exprobrar a seu tio a funesta paixão que o seduzira a cometer um ato de aviltamento.

Quanto a Venâncio, ela teve o cuidado de declarar-lhe que impunha uma condição.

- Aceito todas - respondeu Venâncio.

- Faço o sacrifício da minha pessoa, mas exijo ao menos eu não seja mulher de um jogador.

- Juro-lhe que não será.

E não foi. Uma paixão neutralizou outra. Venâncio era uma dessas naturezas escravas da sensualidade, que estimam as estátuas, não pelo cunho de beleza ideal que elas possam ter, mas pela vista e exuberância das formas exteriores.

XV

Tal foi a história que Carlota me contou.

Quando ela acabou tinha eu o rosto escondido nas mãos; palpitava-me o coração com uma força desusada. Minha consciência restituía à infeliz moça os créditos de elevação moral em que a tinha anteriormente aos tristes acontecimentos de que ela foi vítima. Em vez de um monstro tinha eu diante de mim uma mártir.

- Se esta simples exposição dos fatos - disse-me ela - pode torná-lo à vida, viva; eu lhe peço. Viva por sua mãe e para sua mãe. Se eu ainda o amasse, ou pudesse amá-lo, dir-lhe-ia que vivesse por mim.

- Tem razão - respondi eu.

E tomando a mão de Carlota, beijei-lha respeitosamente. Não era um beijo de amor, era um beijo de gratidão. Depois do que ela me disse eu sentia que voltava à vida.

- Agora - disse ela - adeus.

E saiu.

Minha mãe não a deixou sair sem cobri-la de beijos verdadeiramente maternais.

XVI

26 de dezembro

São dez horas da manhã.

Passei uma noite tranquila. Tive sonhos felizes. Sonhei que estava bom e vivia com minha mãe em uma casa retirada do bulício e da agitação. Voltavam os meus dias de poeta, e eu cantava em estrofes inspiradas a ventura que me dava a paz do coração e da consciência.

Não sei por quê, esta perspectiva de felicidade já me não desgosta, e nem já me causa ressentimento a alegria expansiva e radiante da natureza.

Ao mesmo tempo, a ideia tão poética dessa vida sossegada e feliz é contrariada pela ideia de que perdi Carlota em virtude de um contrato fundado sobre o vício. Esta ideia traz-me à vida real, e eu olho já os sonhos do passado e o desta noite como ilusões sem realidade prática.

A prática é outra cousa. Não transigir com os desvios dos homens, mas viver preparados para eles, tal é a norma regular que se me afigura devem ter todas as consciências honestas e previdentes.

Deixar-me seduzir por novas ilusões é expor-me a novos desenganos e torturas.

É o que farei... se ficar bom.

Ficarei?

O doutor mo dirá.

O doutor! É seguramente a ele que eu devo esta transformação na minha vida. Foi, sem dúvida, ele quem encaminhou aquela explicação que tão benéfica foi para mim.

Farei tudo o que puder para ficar bom.

Oh! Minha mãe! Minha mãe!

A+
A-