Conto

O Último Dia de um Poeta

1867
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em maio e junho de 1867, assinado por Max. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o original.

VI

Uma hora da tarde.

Creio que adormeci um pouco.

Tive um sonho.

Sonhei que assistia à minha coroação na posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para merecer os aplausos dos homens? Gastei a minha mocidade... em quê? Aqui entra a parte sombria do meu sonho. Gastei a minha mocidade em amar, com as forças vivas do meu coração, a quem provou que me não merecia.

Embalde procuro desviar de meu espírito esta lembrança que me acabrunha e me leva à sepultura.

Pobres flores aquelas! Lembra-me o lado feliz da história da minha mocidade. São as relíquias do tempo da fé pura e da paz do espírito. Naquele tempo eu a julgava um anjo. E era-o. Não sei que demônio a perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir no espírito. Desde aí perdi o ideal para ganhar a morte. Nem podia ser de outro modo.

Ah! Carlota!...

Tenho uma ideia. Vou fazer uma cousa que chamarei o meu testamento. É a revista dos meus papéis. Queimarei o que for inútil; deixarei o que puder dar de mim alguma ideia, não à posteridade, mas aos meus amigos. Eles não sabem talvez nada do amigo que lhes morre.

Cerremos um pouco estas cortinas. O sol queima demais. Assim é melhor. Meu Deus, como estão estas gavetas! Dissera-se que há aqui a matéria de vinte poemas... Talvez. Que sou eu próprio senão um poema trágico?

Deitemos isto fora, que não presta: cartas de alguns indivíduos que se diziam amigos meus, no princípio, no meio e no fim. Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz... Mas a que vem esta filosofia? Deitemos fora, simplesmente, estas cartas.

Aqui estão uns versos: As margaridas. Ah! Foram versos que eu escrevi quando ela me deu aquelas flores... São versos do bom tempo. Devo guardá-los? Para quê? Não, não servem; eram talvez bonitos; mas cantavam a mentira, endeusavam a falsidade... Não prestam.

Mais versos... São fragmentos de um poema humorístico: Os solidéus. É do tempo da Academia. Diziam todos que era esta a minha veia. Talvez fosse. Mas as circunstâncias mudam tudo, o gênio, o caráter e as tendências; e o homem de ontem nem sempre é o de hoje, como o de hoje nem sempre é o de amanhã. Foi o que me sucedeu. Se eu tivesse direito a uma biografia ou a um elogio histórico dava este ponto ao escritor para estudar e desenvolver.

Este poema, se eu tivesse acabado, havia de agradar, talvez. Tem por assunto o aparecimento do solidéu e o açodamento com que toda a gente deitou-se a imitá-lo para cobrir, mesmo aos seculares, as coroas que tivessem. O padre Simão era o meu herói em cuja boca punha eu muitas cousas boas de serem lidas... Devia tê-lo acabado. Infelizmente ficou no primeiro canto. De que serve mais? Não presta...

Uma carta de Carlota. Foi das primeiras. É apaixonada. Ainda me lembra do júbilo em que fiquei quando a recebi. Parecia doudo. Minha mãe não compreendia a alegria de que eu estava possuído e receava pela minha razão. Tranquilizei-a contando-lhe tudo, as minhas esperanças, os meus projetos...

"Cuidas", escrevia-me Carlota, "que há frieza em mim? Oh! Não creias! Amo-te como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei em ti o corpo vivo dos meus sonhos de moça infeliz. Como te não hei de amar? Fria eu? Sou reservada, porque é preciso sê-lo. Meu tio destinou-me a um homem que eu aborreço; mas teima nisso e eu não tenho querido romper de uma vez. Tenho esperança de convertê-lo à razão. Mas se julgas que por prova do meu amor devo deixar tudo e acompanhar-te, fala, eu sou tua escrava. Acredita, meu poeta, que eu te amo como ainda não amou mulher alguma. - Tua escrava!"

Esta expressão matou-me. Escrava! Isto é, dependia de mim, vivia de mim, por mim, para mim. Era o amor como eu o compreendia, como a minha alma ardente o desejava: o amor escravidão, o amor que não faz valer direitos, nem vontades, nem caprichos. Viver assim um do outro, pelo outro, para o outro, tal era o modo do amor que pode resgatar a pequenez moral dos homens, em que o interesse e o cálculo frio substituíram todos os sentimentos generosos e magnânimos. Este ideal encontrara eu em Carlota; como não ficaria contente? Mas depressa...

Guardemos esta carta. Há de ficar ao lado desta outra, tão diversa, contraste tamanho que assusta e repugna, irrita e admira; reverso da medalha; face sombria depois de face brilhante; ponto corrompido depois do ponto são. Ou não: a primeira era a rede do engano: o fundo moral daquela mulher está na última, negro, repulsivo, mas verdadeiro. Era toda má.

Que me respondia ela às minhas exprobrações?

... O que deve fazer é fugir de mim. Se é real esse amor que me diz ter, dou-lhe de conselho que mude de terra, de modo que longe dos olhos fique-lhe eu longe do coração, o que será uma fortuna para nós ambos. Isto é fácil e proveitoso. Quanto aos juramentos que me recordou, respondo que eu mereceria censura se fizesse de mim tão infalível que nunca errasse. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro, reconhecendo que foi erro e dizendo francamente que a leviandade é que teve parte nessas promessas tão puerilmente solenes. Pense nisto, e verá se não é assim. Console-se e anime-se, é o que lhe tenho a dizer...

A carta continua; é toda no mesmo sentido; a impudência e a crueldade. Ah! Se tu soubesses, Carlota, o que me fizeste e fazes ainda sofrer! ...

Sinto passos. É o médico. Fechemos a gaveta.

VII

- Bom dia, doutor.

- Viva, meu doente.

- Como me acha?

- A julgar pelas feições, melhor. Como passou a noite?

- Assim, assim.

- Mas por que não está deitado?

- Não posso. E nem quero. Seria incivilidade esperar a minha grande visita deitado numa cama.

- Que visita?

- A morte.

- Ora!

- Com certeza. Há de dizer-me que não. É o que se diz a todos os doentes. Parece que isto os anima. Mas se os anima, descuida-os; e é exatamente o que não me acontece. Estava eu agora cuidando de arranjar uns papéis, a fim de que nada me fique por arranjar quando eu mudar de domicílio...

- Deixe essas ideias.

- Entristece-se? Que faria quando eu lhe contasse a ideia que eu tive ontem?

- Que ideia foi?

- Foi a de mandar aprontar e medir eu mesmo o meu caixão...

- Faz um favor?

- Qual, doutor?

- Não fale assim.

- É fácil.

- Não fale, porque não só isso atrasa-lhe a cura, como ainda há de entristecer sua mãe.

- Mas eu não lhe digo nada...

- Não basta não dizer. É preciso mesmo nem falar. As mães são zelosas dos filhos, porque são mães. Muitas vezes andam a ouvir às portas, para ter certeza do estado dos filhos. Querem surpreendê-los na plena confiança que lhes dá a ausência delas...

Tive uma suspeita: cuidei que minha mãe estivesse à porta.

Levantei-me e fui à porta. Não estava.

O doutor esperou-me sorrindo:

- Não está, mas podia estar - disse.

Voltei a sentar-me ao lado do doutor.

- Ouça bem - continuou ele -, esta cisma constante de que há de morrer, estes trabalhos que tem e as suas forças atuais não comportam, tudo isso torna-o pior. Não vê como está ansiado...

- É a comoção.

- Já estava quando eu entrei. Ora pois, não pense mais em cousas tão lúgubres, e sobretudo não se ocupe de cousa alguma. Vamos lá: tomou os remédios?

- Tomei.

- E então?

- Ontem não senti melhoras algumas; agora estou melhor um pouco, apesar da ânsia.

- Ânsia é por culpa sua... Aposto que esteve a escrever versos?

- Não.

- Nem deve ocupar-se com isso. Há de ser bonito se escreve alguma poesia em que fale da morte e do que vai deixar, e depois de três meses fica-me aí são como um pero...

Minha resposta foi sorrir-me.

- Ande deitar-se um pouco.

- Para quê?

- Porque a minha visita é mais longa hoje que de costume, e eu não quero que se canse. Vá deitar-se, deite-se e conte-me uma história.

- Obedeço. Que história quer?

- Uma história de meninos. As três cidras, O príncipe formoso...

Refleti um pouco e respondi:

- Contar-lhe-ei uma história interessante! Um pouco velha, mas instrutiva.

VIII

Conheci um rapaz, poeta como eu, e como eu crente, a mais não poder ser, nas melhores ilusões desta vida.

Não era rico, devia viver por si; todavia, pôde alcançar meio de preparar-se para uma profissão literária. Foi estudar. Tinha ao lado das ilusões grande bom senso, e a ele deveu correr os primeiros anos de seus estudos sem cair nos laços do amor. Teve algumas fantasias, mas fantasias simplesmente, que começavam e acabavam na mesma noite. A sorte preparara-lhe... Abre a boca, doutor? A história o adormece?

- Não; pode continuar.

- A sorte preparava-lhe um golpe fundo, para castigá-lo do critério com que soube fugir às tentações que encontrou. Depois de muitas circunstâncias que não vêm ao caso, achou-se diante de uma mulher. Imagine o doutor que essa mulher era bela. Imagine mais que estava em circunstâncias especialmente romanescas. Acabava de perder o marido que na idade de dezesseis anos seus pais lhe tinham obrigado a tomar. Contava então vinte e dous, e a morte daquele homem, se não lhe matou a alma, porque a alma não se achava ligada a ele, deu-lhe certa tristeza e arrancou-lhe algumas lágrimas, o que era nela um fundo de honestidade e pureza.

O que é porém certo é que, à semelhança de uma criatura que deixa a prisão em que estivera detida por longos anos, ela reapareceu ao mundo, assombrada e abatida. Era uma viúva que se achava ainda solteira. Buscava uma alma para casar. Apareceu-lhe o poeta. Força da fatalidade os impeliu um para o outro. Parece que mesmo um para o outro se tinham conservado, ela na prisão que lhe armaram os pais, ele na torre de marfim de sua sossegada isenção. Mas viram-se e amaram-se. Naturalmente, pergunta-me, com que amor se amaram? Foi com o verdadeiro amor, o amor que consorcia desde a primeira hora as almas, as vontades e os pensamentos para nunca mais se separarem. Nunca mais! Logo mais verá que não foi assim! Vai-se embora, doutor?

- Tenho que fazer.

- Fique, eu lhe peço.

- Com uma condição.

- Qual?

- Não continue essa história.

- Incomoda-se em ouvi-la?

- Um pouco.

- Deixe-se disso. Não me vê calmo? É verdade que como os fatos já se passaram há longo tempo, e o meu anjo... já morreu, estou hoje mais a frio e posso contá-la sem enternecer... E demais, assim ao menos não pensarei na minha visita, a morte.

- Oh! Não, não pense nisso! Vamos lá, conte. Mas antes disso tome o remédio, sim?

- Sim.

IX

Tomei o remédio e continuei:

- Amaram-se, pois. É preciso observar que o poeta tinha sede de amor. Atravessara um deserto, onde as miragens sucediam-se de hora em hora, e chegava enfim ao oásis da vida, uma fonte, uma relva, uma palmeira. Determinou não ir adiante e descansou, com a longa caravana das suas ilusões, sobre a relva, à sombra da palmeira, à beira da fonte... Desculpe esta linguagem romanesca e oriental: é própria da imaginação exaltada.

Não existiam já os pais da viúva. Existia um tio que não era nem peixe nem carne; indiferente ao futuro da sua sobrinha como ao seu próprio. Tinha alguns bens da fortuna, poucos, e que ainda mais exíguos se tornavam em virtude do jogo largo e desesperado que fazia com eles nas bancas mais concorridas. A sobrinha tinha ainda menos.

O amor do poeta e da viúva prosseguiu cada vez com mais força e mais intensidade. Mil projetos, mil planos formavam ambos na doce intimidade dos seus corações. Eram duas almas sinceramente poéticas. Viam o resto do mundo pelo prisma do seu amor e da sua fantasia. O lado feio, real, positivo, da existência aparecia-lhes assim, como se fora tudo dourado pela luz do céu. Durou esta vida seis meses.

Perguntar-me-á por que se não casaram. É simples. No meio das suas imaginações não os abandonava certo critério frio e necessário. O casamento era uma obrigação para que ambos se deviam preparar. O poeta foi o primeiro a adiantar esta consideração a que a viúva se curvou convencida. Mas de novo juraram entre si fidelidade sem quebra, e o céu que os ouviu pareceu neste momento registrar aquele juramento.

Sucedeu porém que se apresentou diante do poeta um rival ao coração da moça. Era um homem de 37 anos, seco de corpo e de espírito, inteligência acanhada, coração mesquinho, vivendo dos sentidos, e não dos sentimentos, perfeita reprodução, dizia a moça, do primeiro marido que ela teve. Chamava-se Venâncio.

Dizia ter fortuna e tinha, razão poderosa do arrojo com que entrou em liça competindo com o poeta. A moça recebeu-o, não com frieza, mas com desdém. Valeu-lhe isto uma repreensão do tio, que era amigo do pretendente e que o achava merecedor de todos os respeitos.

- Mas, meu tio - perguntou ela -, sabe que o sr. Barroso quer?

- O que é?

- Quer... amar-me.

- Quem te disse isso?

- Desconfio.

- Ora, desconfianças...

- Oh! Não me engano; pode ficar certo de que é assim.

- Sabes que mais? - disse o tio. Não te previnas contra esse homem, respeitável a todos os respeitos. É um caráter sério, fora dos homens do mundo, capaz de compreender as conveniências, e além disso possuidor de uma fortuna. Não te rias assim, que é indecente. Eu sei que as tuas preferências poéticas acham nesta consideração da fortuna uma consideração sem valor. Isso é criancice. A fortuna é uma das cousas mais respeitáveis.

- Meu tio - observou ela -, não parece estar muito convencido disso.

O tio riu-se e, batendo-lhe na face, acrescentou:

- Já sei por que dizes isso... Mas que queres? São cousas... Enfim, o que desejo é que não maltrates o sr. Barroso.

Tudo isso foi referido pela moça ao poeta. Riram ambos muito da pretensão e da proteção, e descansaram por esse lado.

Não quero, doutor, entrar nas mil particularidades do amor entre o poeta e a viúva. Cartas, versos, flores, ósculos sinceros e castos, tudo isso que se troca entre namorados, todos esses episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo isso se deu entre os meus dous heróis.

Estavam próximos de pedirem o necessário consentimento para que a união legal confirmasse a união moral em que eles existiam. Marcaram dia, e o poeta dispôs-se a usar das palavras mais brandas e persuasivas que conhecesse da língua portuguesa para convencer ao tio da sua amada de que podia fazer a felicidade dela.

Era desnecessário dizer nada à própria mãe, que desde os primeiros dias do amor do poeta ficou ciente por confissão dele.

Na véspera do dia aprazado, o poeta foi ver a viúva. Achou-a meia triste. Indagou o motivo dessa tristeza a que não estava afeito, mas não conseguiu arrancar uma palavra à moça. Respondeu que tinha dores de cabeça, mas depois de muitas instâncias e com ar de quem não dizia a verdade.

Passando a falar do pedido em casamento, a viúva disse ao amante que o adiasse, e quando este lhe perguntou que razões haviam para isso, ela respondeu que lhas comunicaria depois. Aconteceu logo o que era natural, um pequeno arrufo. E só arrufo, porque ela deu aquela resposta entre tantos suspiros, com um olhar tão convencido, tão sincero, que o poeta não pôde, o que lhe seria natural, experimentar maior desgosto.

O doutor sabe o que são arrufos dos namorados, é chuva miúda da primavera que tão depressa vem como vai. No fim de alguns minutos tinham voltado às boas, e o poeta despedia-se da viúva com a convicção de que só uma grande razão faria com que ela adiasse o pedido do casamento.

Era com efeito uma grande razão, como vai ver.

Desde aquele dia em diante a viúva mudou. Mais e mais fria, mais e mais reservada, trazia o espírito do poeta entre a dúvida e o desespero, entre a mágoa e a esperança. Que se teria passado? Em vão o rapaz indagava todos os motivos prováveis e possíveis; não podia atinar com a causa de semelhante transformação.

Enfim, uma noite em que se achavam ambos na casa de uma terceira pessoa, o poeta pôde falar a sós à viúva. Expôs-lhe francamente o que sentia e fez um franco interrogatório sobre a tristeza que a moça apresentava.

As respostas da moça foram ambíguas. O poeta desesperou.

- Por que me não falarás com franqueza, Carlota?

- Quer mais franqueza?

- Oh! Não zombes! Tu não calculas o que sofro, nesta incerteza em que me pões. Sê franca, prefiro isso.

- Não sei que te hei de dizer.

- Dize o que quiseres, inventa, se te parece, mas dize alguma cousa. Estas respostas ambíguas, estas evasivas transparentes não me consolam, antes me deitam em pior estado. Não me amas?

- Amo-te.

- Então?...

Esta conversa foi interrompida. Nessa noite não puderam falar mais a sós.

O poeta saiu desesperado. Sentia que algum segredo existia no fundo daquela tristeza da moça... A suspeita curvou-se-lhe à cabeceira e introduziu-lhe no espírito mil ideias negras que foram outros tantos demônios que fizeram daquela noite uma noite infernal...

O poeta não dormiu. Depois de vãos esforços levantou-se e foi... escrever versos! Triste consolação dos que a natureza dotou com o gênio da poesia. No fim de uma hora de trabalho em que as estrofes lhe caíam dos bicos da pena como lágrimas de dor e de saudade, o poeta tinha transferido parte de sua alma para o papel. Estava mais calmo, sem estar menos triste.

Dous dias conservou-se em casa sem falar a pessoa alguma. De hora a hora esperava uma carta de Carlota. Nada. Ao terceiro dia, desesperado com o silêncio da viúva, resolveu ir, houvesse o que houvesse, pedi-la ao tio. Já estava em caminho quando lhe ocorreu a ideia de que sem completa averiguação dos motivos da tristeza da moça podia expor-se não só ao desgosto, mas ainda ao desar. Voltou para casa e escreveu uma carta à viúva pedindo-lhe explicações.

Veio a resposta. Era um desengano. Carlota respondia que não podia amá-lo, e que se esquecesse dela.

Dizer-lhe o que o poeta sofreu é contar-lhe muita cousa que deve saber de longa data. Sofreu... o que estou sofrendo. Caiu enfermo com uma febre violenta. Só daí a um mês se levantou, mas então já tinha em si o germe de uma enfermidade mais grave que depois o tomou de todo... e há de levá-lo à sepultura.

Durante a moléstia fez loucuras incríveis. Tudo o que podia agravar-lhe o estado e encaminhar-lhe a morte, fê-lo com uma alegria selvagem, mas sincera.

Enfim, restabelecido da febre, mas, como disse, doente de outra doença, o poeta levantou-se e não teve mão em si. Resolveu ir procurar a viúva. Queria a todo o transe conhecer as causas da recusa de Carlota, e sobretudo queria lançar-lhe em rosto a sua perfídia, de modo a não parecer covarde.

Carlota recebeu-o com um gesto de surpresa. Foi a ele e perguntou-lhe se já estava bom. Ele descobriu logo o fingimento daquela solicitude e quis mostrar que não se enganava. Suas exprobrações foram enérgicas e veementes. Carlota ouviu-o com uma espécie de torpor.

Depois, quando a alma do poeta derramou em palavras amargas a dor de que estava possuído, veio uma prostração moral, e o poeta, já mais brando, pediu a Carlota uma explicação da carta que esta lhe mandara.

Então, a viúva, fingindo um grande esforço, deu em pleno rosto ao namorado poeta uma resposta que equivalia a um tiro. Disse-lhe que se ia casar, e com Venâncio.

Afigurava-se ao poeta esta união como tão monstruosa, que ao princípio não quis acreditar nas palavras de Carlota. Olhou surpreso para ela, mas surpreso como o homem que não dá crédito, e intimou-lhe que falasse seriamente.

- Mais seriamente do que falo? - perguntou Carlota.

- Sim, seriamente.

- É isto.

- Pois deveras...

- É verdade.

O rapaz sentiu que lhe faltava o chão debaixo dos pés. Pareceu-lhe que ia cair em um abismo. É assim que deve ser a vertigem do náufrago. Como o náufrago, o poeta agarrou-se ao primeiro objeto que encontrou. Era um sofá. Encostou-se ao sofá e olhou fixo para Carlota.

- Sei que isto lhe há de doer, mas é necessário...

- Mas ama-o?

- Amo.

- Ah! Não diga isso!

- Por que não?

E fazendo esta pergunta a moça mostrou um ar de desdém que o poeta humilhado, abatido, indignado não pôde dizer mais palavra. Foi, com passo incerto e vacilante, buscar o chapéu que se achava sobre o piano, e, cumprimentando a viúva friamente, encaminhou-se para a porta.

A moça deu alguns passos para ele e murmurou:

- Só uma cousa lhe peço.

O poeta deteve-se. Era ainda uma esperança que lhe surgia no meio daquela amargura e desespero de que se enchera sua alma. Interrogou-a com o olhar. A moça, pregando os olhos no chão, disse:

- Não me queira mal.

- Que não lhe queira mal? Mas isto é zombaria... Não lhe queira mal!... Acha que me faz um beneficio... Não vê que me matou?

- Ah! Perdão... mas...

- Ama a outro, não? - perguntou o moço com ironia.

- Amo - respondeu ela, mas de modo que o poeta antes adivinhou do que ouviu.

A+
A-