25 de dezembro...
Capítulo primeiro
São nove horas da manhã.
Entra-me o sol vivo e ardente pelas frestas das venezianas. Parece que me convida a deixar o leito, e como que a reviver. Reviver! É esta a palavra: reviver quando estou certo de que poucos dias ou poucas horas me separam da sepultura. Não parece um escárnio da morte? Não parece que para melhor sentir o que vou perder, deixando a vida, quer a morte que eu toque pela última vez os tesouros da felicidade que me ficam na terra?
Melhor fora, decerto, para minha perfeita contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com o seu aspecto mais sombrio e aflitivo. Então cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um pesadelo e uma angústia, e que ia respirar os ares puros de uma vida sem igual.
Depois...
II
Abramos a janela.
Oh! Como está bonito o dia! O céu azul, o sol afogueado, a folhagem palpitante de alegria agita-se ao sopro de um vento plácido e suave. Estas trepadeiras enchem-me o quarto de perfume; lá vejo o tanque calmo e límpido em que eu me banhava em pequeno. É o mesmo ainda. As paredes de pedra têm um aspecto mais venerável, mas tudo isso, aquela murta que o rodeia, aquelas roseiras loucas que ali brotam e enfloram sem cuidado de ninguém, tudo isso me lembra o tempo de minha meninice.
Mais longe vejo a mangueira grande, onde eu passava as tardes, abraçado ao balanço rústico que meus irmãos impeliam no meio da gritaria geral.
A verdura, a água, a árvore, a flor, tudo me lembra a dita do tempo em que sem cuidados nem remorsos eu só cuidava em ser feliz e amar os meus.
Onde foi agora esse tempo? Passou como passaram as folhas de todos estes arbustos; mas os arbustos, se perderam umas ganharam outras, e nem houve, neste abençoado clima, espaço algum entre a queda das primeiras e o abrir das últimas. Só em mim, ilusões e esperanças que me caíram uma vez, não me renasceram mais, e eu fiquei, como tronco árido e seco, chorando o que fui, chorando o que sou, chorando o que hei de ser.
Mas o que dói é esta alegria universal, esta placidez com que a natureza vem assistir à minha morte, garrida e alegre como se fora um espetáculo. Ó mãe cruel, que não honras a morte de teus filhos com uma lágrima de dor e um suspiro de mágoa... Parece que te apraz criá-los para matá-los, produzi-los com uma ilusão, absorvê-los com um desengano, verdadeira condenação dos que não aguardavam esse desengano e acreditaram nessa ilusão...
Também eu te mereci esta ironia? Também. Que outro absorveu mais essa ilusão do que eu? Que outro sorriu mais à ideia do desengano do que eu? Tens direito, ó natureza, a vestires hoje as tuas melhores galas para assistir, não à morte da alma, essa já morreu, mas a do corpo, que se vai finar miseravelmente como um inseto pisado pela dama distraída!
III
Sinto-me fraco.
Vou sentar-me.
Esta cadeira alta, forrada de couro, molde antigo, foi de meu finado avô. Feliz homem que pôde chegar à mais avançada idade e só morreu quando o mundo lhe começava a ser pesado. Todas as glórias da vida, gozou-as na plena liberdade de um espírito que se não acovardava e de um coração que não sentia o espinho da desilusão. Essa impavidez serviu-lhe de amparo; com essa segurança inteira é que atravessou os anos, sem nada deixar do que levava, porque também levava muito pouca cousa.
Tenho defronte de mim um espelho. Vejo ali refletida metade do corpo; tenho vontade de ir ver o rosto. Que feições apresentarei hoje? Serão as mesmas quebradas e mortais de ontem? Serão as mesmas animadas e vivas de há três dias? Uma ou outra cousa, que importa isso? O espinho da morte, sinto eu dentro de mim agudo, dilacerante, mortal... Que valem as feições? Esperanças ou terrores para o moribundo, sintomas ou provas para a ciência. Nada mais.
Sinto passos. Abre-se a porta. É minha mãe!
IV
- Ah! Minha mãe!
- Que tens? Estás melhor?
- Não sei. Talvez que sim.
- Deixa dar-te um beijo; estás muito melhor... Olha-te ao espelho.
O espelho responde-me como minha mãe. Estou muito melhor; minhas feições são outras. Como que renasço. Principalmente esta visita de minha mãe é que me dá vida... Oh! Se eu morresse longe dela! Tudo se altera, tudo se corrompe, tudo se desnatura, mas o amor daqueles que nos deram o ser, esse nunca; é o amor por excelência: o amor que preside ao berço, vela na infância, ama na mocidade e consola nas desilusões como estas em que me vou do mundo.
Tudo se alegrou à entrada de minha mãe. Coitada! Tem os olhos vermelhos de chorar: foi por mim. Lágrimas sinceras as que ela derramou! Nestas creio. Saltam espontâneas dos olhos quando o coração já se acha demasiado cheio; e só corações tais se podem encher desse modo.
Como ela me olha! Parece que procura adivinhar nas minhas feições a hora da nossa eterna separação! Não, não nos abandonemos à dor; a mesma separação pede agora toda a efusão dos sentimentos, toda a expansão das almas...
- Meu filho, não sentes vontade de passear?
- Não, minha mãe. Quero passar hoje o dia inteiro no meu quarto. É dia de descanso. Não é hoje Natal? Quero hoje viver no pleno repouso do espírito. Demais, esta janela põe-me em comunicação com a natureza. Como está bonito o dia! É em honra do nascimento do Salvador, não? E virá o desejado de todas as gentes. É do profeta.
Minha mãe sentou-se e fez-me sentar ao pé de si.
- Meu filho - disse-me ela -, serás capaz de viver? Deixarás de ajudar com o teu desânimo a ação da moléstia que te consome? Ah! Por mim to peço, por teu pai...
- Em quê ajudo eu a minha moléstia, minha mãe? Não estou alegre? Olhe, já fiz a minha saudação ao sol. É bom sinal o sol. Eu sempre o adorei como o olhar profundo de Deus. Ele basta para me dar vida. Não morrerei hoje, decerto. Hei de morrer no dia em que alguma nuvem cobrir o astro do dia. Então as sombras me levarão às sombras. Acredite...
- Oh! Não fales em morrer.
- É mau?
- É triste, meu filho.
- Não é. Quero ser filósofo no meu tanto. Olhemos a morte como ela deve ser olhada: livramento e não aniquilamento. Ah! É que realmente sofro...
Minha mãe abraçou-me. Senti que duas lágrimas me corriam pelas faces. Essas lágrimas eram já resultado de uma recordação que me acabava de atravessar o espírito. Minha mãe leu em minha alma.
- Não te esquecerás disso?
Minha resposta foi muda. Levantei-me, fui a uma mesa e beijei um ramo de flores secas, o ramo dela, o ramo fatídico, o ramo destruidor. É ali que está a minha morte, ali e não na moléstia. Sinto que é assim.
Depois de alguns instantes de silêncio, minha mãe levantou-se e veio a mim.
- Meu filho - disse ela -, deixa que eu arrede por algum tempo estas flores. Quando estiveres bom dar-tas-ei de novo. Mas agora de que te servem?
- Não - disse eu - , as flores ficam. Não fazem mal a ninguém.
- Fazem-te mal.
- A mim? Pobres flores!...
Minha mãe insiste, mas eu recuso. As flores ficam no meu quarto...
V
Meio dia...
Acabo de ler duas páginas dos Salmos de Davi. O rei-poeta consolou minha alma. É destas consolações que eu preciso, destas que preparam o espírito para a eternidade...
Hoje de manhã acusava a natureza por vir garrida e alegre assistir talvez ao meu último dia. Como estava o meu coração! A dor desvaira e eu não sei o que penso nem o que digo. Mas a verdade é uma; a verdade é esta grande verdade. Ó infinito, é enfim para ti que eu vou, como gota de água desviada que se recolhe ao oceano! Disse há pouco para consolar minha mãe, mas disse o que realmente é: a morte é livramento, não é aniquilamento. Sinto que há dentro de mim uma cousa que anseia por livrar-se desta prisão para lançar-se na eternidade e no infinito. Grande, suave, consoladora esperança! Sem ti, que fora o passamento senão a maior dor e o maior suplício? Mas, deixar o mundo com a esperança de que aos olhos mortais se abre mundo novo, tão outro que não este, mundo em que a virtude resplandecerá e a paz eterna compensará as atribulações da vida!
Alegra-me, comove-me, alvoroça-me a ideia de que não vou todo à sepultura; e que ali, à porta do cemitério, só ficará de mim o que há de pior em mim mas que o espírito, a luz desta lâmpada a que tão cedo vai escasseando o óleo, há de remontar ao foco da grande luz.
Deixarei saudades? Deixo; mas o tempo as consolará, e a esperança de que dia surgirá em que o consórcio moral das criaturas se realizará ante o trono de Deus, deve ser a grande esperança dos que ficam e dos que vão.
Assim quê, ó minha mãe, se em nossa passagem no mundo nos separarmos um pouco, não será mais do que para costear uma montanha, até que, rasgando-se aos nossos olhos nova fonte de luz, possamos entrar para sempre unidos no seio do absoluto.
VI
Uma hora da tarde.
Creio que adormeci um pouco.
Tive um sonho.
Sonhei que assistia à minha coroação na posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para merecer os aplausos dos homens? Gastei a minha mocidade... em quê? Aqui entra a parte sombria do meu sonho. Gastei a minha mocidade em amar, com as forças vivas do meu coração, a quem provou que me não merecia.
Embalde procuro desviar de meu espírito esta lembrança que me acabrunha e me leva à sepultura.
Pobres flores aquelas! Lembra-me o lado feliz da história da minha mocidade. São as relíquias do tempo da fé pura e da paz do espírito. Naquele tempo eu a julgava um anjo. E era-o. Não sei que demônio a perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir no espírito. Desde aí perdi o ideal para ganhar a morte. Nem podia ser de outro modo.
Ah! Carlota!...
Tenho uma ideia. Vou fazer uma cousa que chamarei o meu testamento. É a revista dos meus papéis. Queimarei o que for inútil; deixarei o que puder dar de mim alguma ideia, não à posteridade, mas aos meus amigos. Eles não sabem talvez nada do amigo que lhes morre.
Cerremos um pouco estas cortinas. O sol queima demais. Assim é melhor. Meu Deus, como estão estas gavetas! Dissera-se que há aqui a matéria de vinte poemas... Talvez. Que sou eu próprio senão um poema trágico?
Deitemos isto fora, que não presta: cartas de alguns indivíduos que se diziam amigos meus, no princípio, no meio e no fim. Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz... Mas a que vem esta filosofia? Deitemos fora, simplesmente, estas cartas.
Aqui estão uns versos: As margaridas. Ah! Foram versos que eu escrevi quando ela me deu aquelas flores... São versos do bom tempo. Devo guardá-los? Para quê? Não, não servem; eram talvez bonitos; mas cantavam a mentira, endeusavam a falsidade... Não prestam.
Mais versos... São fragmentos de um poema humorístico: Os solidéus. É do tempo da Academia. Diziam todos que era esta a minha veia. Talvez fosse. Mas as circunstâncias mudam tudo, o gênio, o caráter e as tendências; e o homem de ontem nem sempre é o de hoje, como o de hoje nem sempre é o de amanhã. Foi o que me sucedeu. Se eu tivesse direito a uma biografia ou a um elogio histórico dava este ponto ao escritor para estudar e desenvolver.
Este poema, se eu tivesse acabado, havia de agradar, talvez. Tem por assunto o aparecimento do solidéu e o açodamento com que toda a gente deitou-se a imitá-lo para cobrir, mesmo aos seculares, as coroas que tivessem. O padre Simão era o meu herói em cuja boca punha eu muitas cousas boas de serem lidas... Devia tê-lo acabado. Infelizmente ficou no primeiro canto. De que serve mais? Não presta...
Uma carta de Carlota. Foi das primeiras. É apaixonada. Ainda me lembra do júbilo em que fiquei quando a recebi. Parecia doudo. Minha mãe não compreendia a alegria de que eu estava possuído e receava pela minha razão. Tranquilizei-a contando-lhe tudo, as minhas esperanças, os meus projetos...
"Cuidas", escrevia-me Carlota, "que há frieza em mim? Oh! Não creias! Amo-te como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei em ti o corpo vivo dos meus sonhos de moça infeliz. Como te não hei de amar? Fria eu? Sou reservada, porque é preciso sê-lo. Meu tio destinou-me a um homem que eu aborreço; mas teima nisso e eu não tenho querido romper de uma vez. Tenho esperança de convertê-lo à razão. Mas se julgas que por prova do meu amor devo deixar tudo e acompanhar-te, fala, eu sou tua escrava. Acredita, meu poeta, que eu te amo como ainda não amou mulher alguma. - Tua escrava!"
Esta expressão matou-me. Escrava! Isto é, dependia de mim, vivia de mim, por mim, para mim. Era o amor como eu o compreendia, como a minha alma ardente o desejava: o amor escravidão, o amor que não faz valer direitos, nem vontades, nem caprichos. Viver assim um do outro, pelo outro, para o outro, tal era o modo do amor que pode resgatar a pequenez moral dos homens, em que o interesse e o cálculo frio substituíram todos os sentimentos generosos e magnânimos. Este ideal encontrara eu em Carlota; como não ficaria contente? Mas depressa...
Guardemos esta carta. Há de ficar ao lado desta outra, tão diversa, contraste tamanho que assusta e repugna, irrita e admira; reverso da medalha; face sombria depois de face brilhante; ponto corrompido depois do ponto são. Ou não: a primeira era a rede do engano: o fundo moral daquela mulher está na última, negro, repulsivo, mas verdadeiro. Era toda má.
Que me respondia ela às minhas exprobrações?
... O que deve fazer é fugir de mim. Se é real esse amor que me diz ter, dou-lhe de conselho que mude de terra, de modo que longe dos olhos fique-lhe eu longe do coração, o que será uma fortuna para nós ambos. Isto é fácil e proveitoso. Quanto aos juramentos que me recordou, respondo que eu mereceria censura se fizesse de mim tão infalível que nunca errasse. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro, reconhecendo que foi erro e dizendo francamente que a leviandade é que teve parte nessas promessas tão puerilmente solenes. Pense nisto, e verá se não é assim. Console-se e anime-se, é o que lhe tenho a dizer...
A carta continua; é toda no mesmo sentido; a impudência e a crueldade. Ah! Se tu soubesses, Carlota, o que me fizeste e fazes ainda sofrer! ...
Sinto passos. É o médico. Fechemos a gaveta.