Conto

O Segredo de Augusta

1869
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em julho e agosto de 1868, assinado por Machado de Assis.

III

Os dous ficaram sós.

- Então é certo que estás apaixonado?

- Estou. Eu bem sabia que vocês dificilmente acreditariam nisto; eu próprio não creio ainda, e contudo é verdade. Acabo por onde tu começaste. Será melhor ou pior? Eu creio que é melhor.

- Tens interesse em ocultar o nome da pessoa?

- Oculto-o por ora a todos, menos a ti.

- É uma prova de confiança...

Gomes sorriu.

- Não - disse ele -, é uma condição sine qua non; antes de todos tu deves saber quem é a escolhida do meu coração; trata-se de tua filha.

- Adelaide? - perguntou Vasconcelos espantado.

- Sim, tua filha.

A revelação de Gomes caiu como uma bomba. Vasconcelos nem por sombras suspeitava semelhante cousa.

- Este amor é da tua aprovação? - perguntou-lhe Gomes.

Vasconcelos refletia, e depois de alguns minutos de silêncio, disse:

- O meu coração aprova a tua escolha; és meu amigo, estás apaixonado, e uma vez que ela te ame...

Gomes ia falar, mas Vasconcelos continuou sorrindo:

- Mas a sociedade?

- Que sociedade?

- A sociedade que nos tem em conta de libertinos, a ti e a mim, é natural que não aprove o meu ato.

- Já vejo que é uma recusa - disse Gomes entristecendo.

- Qual recusa, pateta! É uma objeção, que tu poderás destruir dizendo: a sociedade é uma grande caluniadora e uma famosa indiscreta. Minha filha é tua, com uma condição.

- Qual?

- A condição da reciprocidade. Ama-te ela?

- Não sei - respondeu Gomes.

- Mas desconfias...

- Não sei; sei que a amo e que daria a minha vida por ela, mas ignoro se sou correspondido.

- Hás de ser... Eu me incumbirei de apalpar o terreno. Daqui a dous dias dou-te a minha resposta. Ah! Se ainda tenho de ver-te meu genro!

A resposta de Gomes foi cair-lhe nos braços. A cena já roçava pela comédia quando deram três horas. Gomes lembrou-se que tinha rendez-vous com um amigo; Vasconcelos lembrou-se que tinha de escrever algumas cartas.

Gomes saiu sem falar às senhoras.

Pelas quatro horas Vasconcelos dispunha-se a sair, quando vieram anunciar-lhe a visita do Sr. José Brito.

Ao ouvir este nome o alegre Vasconcelos franziu o sobrolho.

Pouco depois entrava no gabinete o Sr. José Brito.

O Sr. José Brito era para Vasconcelos um verdadeiro fantasma, um eco do abismo, uma voz da realidade; era um credor.

- Não contava hoje com a sua visita - disse Vasconcelos.

- Admira - respondeu o Sr. José Brito com uma placidez de apunhalar -, porque hoje são 21.

- Cuidei que eram 19 - balbuciou Vasconcelos.

- Anteontem, sim; mas hoje são 21. Olhe - continuou o credor pegando no Jornal do Comércio que se achava numa cadeira -: quinta-feira, 21.

- Vem buscar o dinheiro?

- Aqui está a letra - disse o Sr. José Brito tirando a carteira do bolso e um papel da carteira.

- Por que não veio mais cedo? - perguntou Vasconcelos, procurando assim espaçar a questão principal.

- Vim às oito horas da manhã - respondeu o credor -, estava dormindo; vim às nove, idem; vim às dez, idem; vim às onze, idem; vim ao meio-dia, idem. Quis vir à uma hora, mas tinha de mandar um homem para a cadeia, e não me foi possível acabar cedo. Às três jantei, e às quatro aqui estou.

Vasconcelos puxava o charuto a ver se lhe ocorria alguma ideia boa de escapar ao pagamento com que ele não contava.

Não achava nada; mas o próprio credor forneceu-lhe ensejo.

- Além de quê - disse ele-, a hora não importa nada, porque eu estava certo de que o senhor me vai pagar.

- Ah! - disse Vasconcelos -. É talvez um engano; eu não contava com o senhor hoje, e não arranjei o dinheiro...

- Então, como há de ser? - perguntou o credor com ingenuidade.

Vasconcelos sentiu entrar-lhe n'alma a esperança.

- Nada mais simples - disse -; o senhor espera até amanhã...

- Amanhã quero assistir à penhora de um indivíduo que mandei processar por uma larga dívida; não posso...

- Perdão, eu levo-lhe o dinheiro à sua casa...

- Isso seria bom se os negócios comerciais se arranjassem assim. Se fôssemos dous amigos é natural que eu me contentasse com a sua promessa, e tudo acabaria amanhã; mas eu sou seu credor, e só tenho em vista salvar o meu interesse... Portanto, acho melhor pagar hoje...

Vasconcelos passou a mão pelos cabelos.

- Mas se eu não tenho! - disse ele.

- É uma cousa que o deve incomodar muito, mas que a mim não me causa a menor impressão... isto é, deve causar-me alguma, porque o senhor está hoje em situação precária.

- Eu?

- É verdade; as suas casas da rua da Imperatriz estão hipotecadas; a da rua de São Pedro foi vendida, e a importância já vai longe; os seus escravos têm ido a um e um, sem que o senhor o perceba, e as despesas que o senhor há pouco fez para montar uma casa a certa dama da sociedade equívoca são imensas. Eu sei tudo; sei mais do que o senhor...

Vasconcelos estava visivelmente aterrado.

O credor dizia a verdade.

- Mas enfim - disse Vasconcelos -, o que havemos de fazer?

- Uma cousa simples; duplicamos a dívida, e o senhor passa-me agora mesmo um depósito.

- Duplicar a dívida! Mas isto é um...

- Isto é uma tábua de salvação; sou moderado. Vamos lá, aceite. Escreva-me aí o depósito, e rasga-se a letra.

Vasconcelos ainda quis fazer objeção; mas era impossível convencer o Sr. José Brito.

Assinou o depósito de dezoito contos.

Quando o credor saiu, Vasconcelos entrou a meditar seriamente na sua vida.

Até então gastara tanto e tão cegamente que não reparara no abismo que ele próprio cavara a seus pés.

Veio porém adverti-lo a voz de um dos seus algozes.

Vasconcelos refletiu, calculou, recapitulou as suas despesas e as suas obrigações, e viu que da fortuna que possuía tinha na realidade menos da quarta parte.

Para viver como até ali vivera, aquilo era nada menos que a miséria.

Que fazer em tal situação?

Vasconcelos pegou no chapéu e saiu.

Vinha caindo a noite.

Depois de andar algum tempo pelas ruas entregue às suas meditações, Vasconcelos entrou no Alcazar.

Era um meio de distrair-se.

Ali encontraria a sociedade do costume.

Batista veio ao encontro do amigo.

- Que cara é essa? - disse-lhe.

- Não é nada, pisaram-me um calo - respondeu Vasconcelos, que não encontrava melhor resposta.

Mas um pedicuro que se achava perto de ambos ouviu o dito, e nunca mais perdeu de vista o infeliz Vasconcelos, a quem a cousa mais indiferente incomodava. O olhar persistente do pedicuro aborreceu-o tanto, que Vasconcelos saiu.

Entrou no Hotel de Milão, para jantar. Por mais preocupado que ele estivesse, a exigência do estômago não se demorou.

Ora, no meio do jantar lembrou-lhe aquilo que não devia ter-lhe saído da cabeça: o pedido de casamento feito nessa tarde por Gomes.

Foi um raio de luz.

"Gomes é rico", pensou Vasconcelos; "o meio de escapar a maiores desgostos é este; Gomes casa-se com Adelaide, e como é meu amigo não me negará o que eu precisar. Pela minha parte procurarei ganhar o perdido... Que boa fortuna foi aquela lembrança do casamento!"

Vasconcelos comeu alegremente; voltou depois ao Alcazar, onde alguns rapazes e outras pessoas fizeram esquecer completamente os seus infortúnios.

Às três horas da noite Vasconcelos entrava para casa com a tranquilidade e regularidade do costume.

IV

No dia seguinte o primeiro cuidado de Vasconcelos foi consultar o coração de Adelaide. Queria porém fazê-lo na ausência de Augusta. Felizmente esta precisava de ir ver à rua da Quitanda umas fazendas novas, e saiu com o cunhado, deixando a Vasconcelos toda a liberdade.

Como os leitores já sabem, Adelaide queria muito ao pai, e era capaz de fazer por ele tudo. Era, além disso, um excelente coração. Vasconcelos contava com essas duas forças.

- Vem cá, Adelaide - disse ele entrando na sala -; sabes quantos anos tens?

- Tenho quinze.

- Sabes quantos anos tem tua mãe?

- Vinte e sete, não é?

- Tem trinta; quer dizer que tua mãe casou-se com quinze anos.

Vasconcelos parou, a fim de ver o efeito que produziam estas palavras; mas foi inútil a expectativa; Adelaide não compreendeu nada.

O pai continuou:

- Não pensaste no casamento?

A menina corou muito, hesitou em falar, mas como o pai instasse, respondeu:

- Qual, papai! Eu não quero casar...

- Não queres casar? É boa! Por quê?

- Porque não tenho vontade, e vivo bem aqui.

- Mas tu podes casar e continuar a viver aqui...

- Bem; mas não tenho vontade.

- Anda lá... Amas alguém, confessa.

- Não me pergunte isso, papai... eu não amo ninguém.

A linguagem de Adelaide era tão sincera, que Vasconcelos não podia duvidar.

"Ela fala a verdade", pensou ele; "é inútil tentar por esse lado..."

Adelaide sentou-se ao pé dele, e disse:

- Portanto, meu paizinho, não falemos mais nisso...

- Falemos, minha filha; tu és criança, não sabes calcular. Imagina que eu e a tua mãe morremos amanhã. Quem te há de amparar? Só um marido.

- Mas se eu não gosto de ninguém...

- Por ora; mas hás de vir a gostar se o noivo for um bonito rapaz, de bom coração... Eu já escolhi um que te ama muito, e a quem tu hás de amar.

Adelaide estremeceu.

- Eu? - disse ela-. Mas... quem é?

- É o Gomes.

- Não o amo, meu pai...

- Agora, creio; mas não negas que ele é digno de ser amado. Dentro de dous meses estás apaixonada por ele.

Adelaide não disse palavra. Curvou a cabeça e começou a torcer nos dedos uma das tranças bastas e negras. O seio arfava-lhe com força; a menina tinha os olhos cravados no tapete.

- Vamos, está decidido, não? - perguntou Vasconcelos.

- Mas, papai, e se eu for infeliz?...

- Isso é impossível, minha filha; hás de ser muito feliz; e hás de amar muito a teu marido.

- Oh! Papai - disse-lhe Adelaide com os olhos rasos de água-, peço-lhe que não me case ainda...

- Adelaide, o primeiro dever de uma filha é obedecer a seu pai, e eu sou teu pai. Quero que te cases com o Gomes; hás de casar.

Estas palavras, para terem todo o efeito, deviam ser seguidas de uma retirada rápida. Vasconcelos compreendeu isso, e saiu da sala deixando Adelaide na maior desolação.

Adelaide não amava ninguém. A sua recusa não tinha por ponto de partida nenhum outro amor; também não era resultado de aversão que tivesse pelo seu pretendente.

A menina sentia simplesmente uma total indiferença pelo rapaz.

Nestas condições o casamento não deixava de ser uma odiosa imposição.

Mas que faria Adelaide? A quem recorreria?

Recorreu às lágrimas.

Quanto a Vasconcelos, subiu ao gabinete e escreveu as seguintes linhas ao futuro genro:

Tudo caminha bem; autorizo-te a vires fazer a corte à pequena, e espero que dentro de dous meses o casamento esteja concluído.

Fechou a carta e mandou-a.

Pouco depois voltaram de fora Augusta e Lourenço.

Enquanto Augusta subiu para o quarto da toilette para mudar de roupa, Lourenço foi ter com Adelaide, que estava no jardim.

Reparou que ela tinha os olhos vermelhos, e inquiriu a causa; mas a moça negou que fosse de chorar.

Lourenço não acreditou nas palavras da sobrinha, e instou com ela para que lhe contasse o que havia.

Adelaide tinha grande confiança no tio, até por causa da sua rudeza de maneiras. No fim de alguns minutos de instâncias, Adelaide contou a Lourenço a cena com o pai.

- Então, é por isso que estás chorando, pequena?

- Pois então? Como fugir ao casamento?

- Descansa, não te casarás; eu te prometo que não te hás de casar...

A moça sentiu um estremecimento de alegria.

- Promete, meu tio, que há de convencer a papai?

- Hei de vencê-lo ou convencê-lo, não importa; tu não te hás de casar. Teu pai é um tolo.

Lourenço subiu ao gabinete de Vasconcelos, exatamente no momento em que este se dispunha a sair.

- Vais sair? - perguntou-lhe Lourenço.

- Vou.

- Preciso falar-te.

Lourenço sentou-se, e Vasconcelos, que já tinha o chapéu na cabeça, esperou de pé que ele falasse.

- Senta-te - disse Lourenço.

Vasconcelos sentou-se.

- Há dezesseis anos...

- Começas de muito longe; vê se abrevias uma meia dúzia de anos, sem o quê não prometo ouvir o que me vais dizer.

- Há dezesseis anos - continuou Lourenço - que és casado; mas a diferença entre o primeiro dia e o dia de hoje é grande.

- Naturalmente - disse Vasconcelos -. Tempora mutantur et...

- Naquele tempo - continuou Lourenço -, dizias que encontraras o paraíso, o verdadeiro paraíso, e foste durante dous ou três anos o modelo dos maridos. Depois mudaste completamente; e o paraíso tornar-se-ia verdadeiro inferno se tua mulher não fosse tão indiferente e fria como é, evitando assim as mais terríveis cenas domésticas.

- Mas, Lourenço, que tens com isso?

- Nada; nem é disso que vou falar-te. O que me interessa é que não sacrifiques tua filha por um capricho, entregando-a a um dos teus companheiros de vida solta...

Vasconcelos levantou-se:

- Estás doudo! - disse ele.

- Estou calmo, e dou-te o prudente conselho de não sacrificares tua filha a um libertino.

- Gomes não é libertino; teve uma vida de rapaz, é verdade, mas gosta de Adelaide, e reformou-se completamente. É um bom casamento, e por isso acho que todos devemos aceitá-lo. É a minha vontade, e nesta casa quem manda sou eu.

Lourenço procurou falar ainda, mas Vasconcelos já ia longe.

"Que fazer?", pensou Lourenço.

V

A oposição de Lourenço não causava grande impressão a Vasconcelos. Ele podia, é verdade, sugerir à sobrinha ideias de resistência; mas Adelaide, que era um espírito fraco, cederia ao último que lhe falasse, e os conselhos de um dia seriam vencidos pela imposição do dia seguinte.

Todavia era conveniente obter o apoio de Augusta. Vasconcelos pensou em tratar disso o mais cedo que lhe fosse possível.

Entretanto, urgia organizar os seus negócios, e Vasconcelos procurou um advogado a quem entregou todos os papéis e informações, encarregando-o de orientá-lo em todas as necessidades da situação, quais os meios que poderia opor em qualquer caso de reclamação por dívida ou hipoteca.

Nada disto fazia supor da parte de Vasconcelos uma reforma de costumes. Preparava-se apenas para continuar a vida anterior.

Dous dias depois da conversa com o irmão, Vasconcelos procurou Augusta, para tratar francamente do casamento de Adelaide.

Já nesse intervalo o futuro noivo, obedecendo ao conselho de Vasconcelos, fazia corte prévia à filha. Era possível que, se o casamento não lhe fosse imposto, Adelaide acabasse por gostar do rapaz. Gomes era um homem belo e elegante; e, além disso, conhecia todos os recursos de que se deve usar para impressionar uma mulher.

Teria Augusta notado a presença assídua do moço? Vasconcelos fazia essa pergunta ao seu espírito no momento em que entrava na toilette da mulher.

- Vais sair? - perguntou ele.

- Não; tenho visitas.

- Ah! Quem?

- A mulher do Seabra - disse ela.

Vasconcelos sentou-se, e procurou um meio de encabeçar a conversa especial que ali o levava.

- Estás muito bonita hoje!

- Deveras? - disse ela sorrindo -. Pois estou hoje como sempre, e é singular que o digas hoje...

- Não; realmente hoje estás mais bonita do que costumas, a ponto que sou capaz de ter ciúmes...

- Qual! - disse Augusta com um sorriso irônico.

Vasconcelos coçou a cabeça, tirou o relógio, deu-lhe corda; depois entrou a puxar as barbas, pegou uma folha, leu dous ou três anúncios, atirou a folha ao chão, e afinal, depois de um silêncio já prolongado, Vasconcelos achou melhor atacar a praça de frente.

- Tenho pensado ultimamente em Adelaide - disse ele.

- Ah! Por quê?

- Está moça...

- Moça! - exclamou Augusta -, é uma criança...

- Está mais velha do que tu quando te casaste...

Augusta franziu ligeiramente a testa.

- Mas então... - disse ela.

- Então é que desejo fazê-la feliz e feliz pelo casamento. Um rapaz, digno dela a todos os respeitos, pediu-ma há dias, e eu disse-lhe que sim. Em sabendo quem é, aprovarás a escolha; é o Gomes. Casamo-la, não?

- Não! - respondeu Augusta.

- Como, não?

- Adelaide é uma criança; não tem juízo nem idade própria... Casar-se-á quando for tempo.

- Quando for tempo? Estás certa se o noivo esperará até que seja tempo?

- Paciência - disse Augusta.

- Tens alguma cousa que notar no Gomes?

- Nada. É um moço distinto; mas não convém a Adelaide.

Vasconcelos hesitava em continuar; parecia-lhe que nada se podia arranjar; mas a ideia da fortuna deu-lhe forças, e ele perguntou:

- Por quê?

- Estás certo de que ele convenha a Adelaide? - perguntou Augusta, eludindo a pergunta do marido.

- Afirmo que convém.

- Convenha ou não, a pequena não deve casar já.

- E se ela amasse?...

- Que importa isso? Esperaria!

- Entretanto, Augusta, não podemos prescindir deste casamento... É uma necessidade fatal.

- Fatal? - não compreendo.

- Vou explicar-me. O Gomes tem uma boa fortuna.

- Também nós temos uma...

- É o teu engano - interrompeu Vasconcelos.

- Como assim?

Vasconcelos continuou:

- Mais tarde ou mais cedo havias de sabê-lo, e eu estimo ter esta ocasião de dizer-te toda a verdade. A verdade é que, se não estamos pobres, estamos arruinados.

Augusta ouviu estas palavras com os olhos espantados. Quando ele acabou, disse:

- Não é possível!

- Infelizmente é verdade!

Seguiu-se algum tempo de silêncio.

"Tudo está arranjado", pensou Vasconcelos. Augusta rompeu o silêncio.

- Mas - disse ela -, se a nossa fortuna está abalada, creio que o senhor tem cousa melhor para fazer do que estar conversando; é reconstruí-la.

Vasconcelos fez com a cabeça um movimento de espanto, e como se fosse aquilo uma pergunta, Augusta apressou-se a responder:

- Não se admire disto; creio que o seu dever é reconstruir a fortuna.

- Não me admira esse dever; admira-me que mo lembres por esse modo. Dir-se-ia que a culpa é minha...

- Bom! - disse Augusta -, vais dizer que fui eu...

- A culpa, se culpa há, é de nós ambos.

- Por quê? É também minha?

- Também. As tuas despesas loucas contribuíram em grande parte para este resultado; eu nada te recusei nem recuso, e é nisso que sou culpado. Se é isso que me lanças em rosto, aceito.

Augusta levantou os ombros com um gesto de despeito; e deitou a Vasconcelos um olhar de tamanho desdém que bastaria para intentar uma ação de divórcio.

Vasconcelos viu o movimento e o olhar.

- O amor do luxo e do supérfluo - disse ele - há de sempre produzir estas consequências. São terríveis, mas explicáveis. Para conjurá-las era preciso viver com moderação. Nunca pensaste nisso. No fim de seis meses de casada entraste a viver no turbilhão da moda, e o pequeno regato das despesas tornou-se um rio imenso de desperdícios. Sabes o que me disse uma vez meu irmão? Disse-me que a ideia de mandar Adelaide para a roça foi-te sugerida pela necessidade de viver sem cuidados de natureza alguma.

Augusta tinha-se levantado, e deu alguns passos; estava trêmula e pálida.

Vasconcelos ia por diante nas suas recriminações, quando a mulher o interrompeu, dizendo:

- Mas por que motivo não impediu o senhor essas despesas que eu fazia?

- Queria a paz doméstica.

- Não! - clamou ela -. O senhor queria ter por sua parte uma vida livre e independente; vendo que eu me entregava a essas despesas imaginou comprar a minha tolerância com a sua tolerância. Eis o único motivo; a sua vida não será igual à minha; mas é pior... Se eu fazia despesas em casa o senhor as fazia na rua... É inútil negar, porque eu sei tudo; conheço, de nome, as rivais que sucessivamente o senhor me deu, e nunca lhe disse uma única palavra, nem agora lho censuro, porque seria inútil e tarde.

A situação tinha mudado. Vasconcelos começara constituindo-se juiz, e passara a ser co-réu. Negar era impossível; discutir era arriscado e inútil. Preferiu sofismar.

- Dado que fosse assim (e eu não discuto esse ponto), em todo caso a culpa será de nós ambos, e não vejo razão para que ma lances em rosto. Devo reparar a fortuna, concordo; há um meio, e é este: o casamento de Adelaide com o Gomes.

- Não - disse Augusta.

- Bem; seremos pobres, ficaremos piores do que estamos agora; venderemos tudo...

- Perdão - disse Augusta -, eu não sei por que razão não há de o senhor, que é forte, e tem a maior parte no desastre, empregar esforços para a reconstrução da fortuna destruída.

- É trabalho longo; e daqui até lá a vida continua e gasta-se. O meio, já lho disse, é este: casar Adelaide com o Gomes.

- Não quero! - disse Augusta-. Não consinto em semelhante casamento.

Vasconcelos ia responder, mas Augusta, logo depois de proferir estas palavras, tinha saído precipitadamente do gabinete.

Vasconcelos saiu alguns minutos depois.

VI

Lourenço não teve conhecimento da cena entre o irmão e a cunhada, e depois da teima de Vasconcelos resolveu nada mais dizer; entretanto, como queria muito à sobrinha, e não queria vê-la entregue a um homem de costumes que ele reprovava, Lourenço esperou que a situação tomasse caráter mais decisivo para assumir mais ativo papel.

Mas, a fim de não perder tempo, e poder usar alguma arma poderosa, Lourenço tratou de instaurar uma pesquisa mediante a qual pudesse colher informações minuciosas acerca de Gomes.

Este cuidava que o casamento era cousa decidida, e não perdia um só dia na conquista de Adelaide.

Notou, porém, que Augusta tornava-se mais fria e indiferente, sem causa que ele conhecesse, e entrou-lhe no espírito a suspeita de que viesse dali alguma oposição.

Quanto a Vasconcelos, desanimado pela cena da toilette, esperou melhores dias, e contou sobretudo com o império da necessidade.

Um dia, porém, exatamente quarenta e oito horas depois da grande discussão com Augusta, Vasconcelos fez dentro de si esta pergunta:

"Augusta recusa a mão de Adelaide para o Gomes; por quê?"

De pergunta em pergunta, de dedução em dedução, abriu-se no espírito de Vasconcelos campo para uma suspeita dolorosa.

"Amá-lo-á ela?", perguntou ele a si próprio.

Depois, como se o abismo atraísse o abismo, e uma suspeita reclamasse outra, Vasconcelos perguntou:

- Ter-se-iam eles amado algum tempo?

Pela primeira vez, Vasconcelos sentiu morder-lhe no coração a serpe do ciúme.

Do ciúme digo eu, por eufemismo; não sei se aquilo era ciúme; era amor-próprio ofendido.

As suspeitas de Vasconcelos teriam razão?

Devo dizer a verdade: não tinham. Augusta era vaidosa, mas era fiel ao infiel marido; e isso por dous motivos: um de consciência, outro de temperamento. Ainda que ela não estivesse convencida do seu dever de esposa, é certo que nunca trairia o juramento conjugal. Não era feita para as paixões, a não ser as paixões ridículas que a vaidade impõe. Ela amava antes de tudo a sua própria beleza; o seu melhor amigo era o que dissesse que ela era mais bela entre as mulheres; mas se lhe dava a sua amizade, não lhe daria nunca o coração; isso a salvava.

A verdade é esta; mas quem o diria a Vasconcelos? Uma vez suspeitoso de que a sua honra estava afetada, Vasconcelos começou a recapitular toda a sua vida. Gomes frequentava a sua casa há seis anos, e tinha nela plena liberdade. A traição era fácil. Vasconcelos entrou a recordar as palavras, os gestos, os olhares, tudo que antes lhe foi indiferente, e que naquele momento tomava um caráter suspeitoso.

Dous dias andou Vasconcelos cheio deste pensamento. Não saía de casa. Quando Gomes chegava, Vasconcelos observava a mulher com desusada persistência; a própria frieza com que ela recebia o rapaz era aos olhos do marido uma prova do delito.

Estava nisto, quando na manhã do terceiro dia (Vasconcelos já se levantava cedo) entrou-lhe no gabinete o irmão, sempre com o ar selvagem do costume.

A presença de Lourenço inspirou a Vasconcelos a ideia de contar-lhe tudo.

Lourenço era um homem de bom senso, e em caso de necessidade era um apoio.

O irmão ouviu tudo quanto Vasconcelos contou, e concluindo este, rompeu o seu silêncio com estas palavras:

- Tudo isso é uma tolice; se tua mulher recusa o casamento, será por qualquer outro motivo que não esse.

- Mas é o casamento com o Gomes que ela recusa.

- Sim, porque lhe falaste no Gomes; fala-lhe em outro, talvez recuse do mesmo modo. Há de haver outro motivo; talvez Adelaide lhe contasse, talvez lhe pedisse para opor-se, porque tua filha não ama o rapaz, e não pode casar com ele.

- Não casará...

- Não só por isso, mas até porque...

- Acaba.

- Até porque este casamento é uma especulação do Gomes.

- Uma especulação? - perguntou Vasconcelos.

- Igual à tua -, disse Lourenço. Tu dás-lhe a filha com os olhos na fortuna dele; ele aceita-a com os olhos na tua fortuna...

- Mas ele possui...

- Não possui nada; está arruinado como tu. Indaguei e soube da verdade. Quer naturalmente continuar a mesma vida dissipada que teve até hoje, e a tua fortuna é um meio...

- Estás certo disso?

- Certíssimo!...

Vasconcelos ficou aterrado. No meio de todas as suspeitas, ainda lhe restava a esperança de ver a sua honra salva, e realizado aquele negócio que lhe daria uma excelente situação.

Mas a revelação de Lourenço matou-o.

- Se queres uma prova, manda chamá-lo, e dize-lhe que estás pobre, e por isso lhe recusas a filha; observa-o bem, e verás o efeito que as tuas palavras lhe hão de produzir.

Não foi preciso mandar chamar o pretendente. Daí a uma hora apresentou-se ele em casa de Vasconcelos.

Vasconcelos mandou-o subir ao gabinete.

A+
A-