VII
Não pertenço ao número dos narradores que atribuem aos leitores uma cegueira completa para a averiguação de certos pontos das suas narrativas. Fica entendido que o leitor sabe já que o namorado de Júlia e Teresa, e o rapaz entrado às 10 horas na casa do Comendador ***, causando tanto abalo aos convidados, eram uma e a mesma pessoa.
Isto posto, direi mais duas palavras sobre o misterioso namorado. Já disse que chegara da Europa e que era um guapo rapaz. Acrescentarei que se chama Daniel. Tem 25 anos de idade. Profissão: duzentos contos em títulos da dívida pública e prédios inscritos nas companhias de seguro contra o fogo. Era gastador, mas gastava com certa conta; isto por experiência, visto que os duzentos contos eram já os restos de uma fortuna de oitocentos que lhe deixara o pai.
Tal é em traços largos o namorado das duas raparigas, que o seria de quantas quisesse, tão próprio a inspirar amores era ele.
Júlia e Teresa tinham saído para o salão.
Não viram Daniel.
Mas, na ocasião em que se anunciava uma quadrilha, viram aproximar-se do lugar em que elas estavam Daniel e Gabriel: Daniel era míope; quando pôs a luneta e conheceu as duas raparigas fez um gesto de surpresa. Não convinha, porém, mostrar-se conhecido de nada, e para logo se acalmou. Gabriel conduziu-o, apresentou-o às duas amigas, e disse para sua irmã que dançasse com ele.
- Tenho par - murmurou Teresa.
- Tens, é verdade - disse Gabriel -, mas o teu par sou eu. Ora, eu cedo em favor de Daniel.
Não era possível recuar. Todavia, Teresa não quis decidir-se sem consultar Júlia com o olhar.
Júlia levantou simplesmente os ombros; Teresa adivinhou o movimento e tomou o braço de Daniel.
Gabriel voltou-se para Júlia e disse:
- Se não tem par, D. Júlia. O meu vis-à-vis é Daniel.
- Não tenho - respondeu a moça.
Nesse momento soara o sinal da quadrilha. Júlia levantou-se e aceitou o braço do irmão de Teresa. Iam tomar lugar em frente de Teresa e Daniel, quando um cavalheiro se apresentou reclamando uma quadrilha de Júlia, a qual dizia ser aquela.
- Eu me enganei; o meu par era este cavalheiro.
O moço não insistiu.
Júlia corou. Tinha faltado à verdade e acabava de cometer uma imprudência; mas apenas se achou diante do par Teresa e Daniel, a moça esqueceu tudo, e cravou na amiga um olhar inteligente e indagador.
Entretanto a quadrilha começou e seguiu o seu curso. Daniel conversava muito com Teresa; esta respondia-lhe por monossílabos; mas de certo ponto em diante parecia interessar-se menos que ao princípio.
Qual seria o motivo da conversa?
Era esta a pergunta que Júlia fazia consigo. Mas não podendo saber logo, ardia por ver a quadrilha acabada. A quadrilha acabou; apenas se achou a sós com Teresa perguntou-lhe curiosa qual o objeto do diálogo que tivera com Daniel; Teresa respondeu que ele fizera correr a conversa sobre banalidades, que era um homem aborrecido e comum.
Isto tranquilizou a outra.
Dançou-se ainda algumas quadrilhas. Era já uma hora da noite. A família de Teresa, a instâncias desta, adiara a saída.
Gabriel apareceu de repente a Júlia levando pelo braço o seu amigo Daniel.
- O meu amigo Daniel é o melhor valsista da sala, incluindo-me eu próprio -disse ele a Júlia.
E, voltando-se para Daniel, continuou:
- D. Júlia é a melhor valsista desta sala, incluindo minha mana.
Seguiu-se uma valsa entre Daniel e Júlia: era natural.
A valsa foi realmente digna dos elogios que dos dous valsistas fizera Gabriel.
Quando pararam Júlia estava extenuada. De fadiga ou comoção? Talvez de uma e outra cousa. O que é certo é que Daniel tanto valsava como falava ao ouvido de Júlia, palavras brandas, rápidas e incisivas.
Ora, no fim da noite eis em resumo o que Daniel havia dito a Júlia e a Teresa.
A Teresa:
- Amo-a muito; é a única que trago em meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida, é o meu futuro, é o meu céu. Ame-me, ame-me!
A Júlia:
- Amo-a muito; é a única que trago no meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho, nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida; é o meu futuro, é o meu céu! Ame-me, ame-me!
VIII
Passaram-se alguns dias depois do baile.
Nenhum acontecimento importante mudou a ordem antiga das cousas; as duas amigas comunicaram-se com frequência; as cartas iam e vinham com presteza, e a afeição fraternal parecia não ter sofrido em cousa alguma.
Uma só cousa se notava na correspondência de Júlia e de Teresa; era um silêncio obstinado a respeito de Daniel. Esse silêncio, depois dos acontecimentos e do diálogo dos dous no baile, era natural; mas acaso a declaração de Daniel influiria no ânimo?
Vamos ver o que foi.
IX
Daniel continuava a passar todas as tardes como anteriormente em Catumbi e nos Cajueiros. À hora do costume já as duas moças se achavam à janela.
Como explicar o procedimento de Daniel? Amaria ambas? Impossível. Enganaria ambas ou uma só?
O amor, para Daniel, era simplesmente um objeto de distração; ele não amava nem a Júlia, nem a Teresa; divertia-se com ambas, por mero passatempo.
Em tão má hora o fez, ou antes com toda a perfídia, que as duas boas moças declararam-se apaixonadas por ele.
E esta paixão foi a nuvem que cobriu o céu de amizade, até então puro e radiante.
Os dias correram do modo por que os leitores adivinham. O silêncio recíproco a respeito de Daniel deu a entender a Júlia e a Teresa que eram rivais uma da outra.
Isto devia naturalmente trazer uma explicação. Foi o que aconteceu; as duas, um dia que se achavam juntas, levaram naturalmente a conversa para o objeto comum.
Ambas declararam que amavam Daniel e comunicaram a esperança que este lhes dava. Como da primeira vez, chegaram ao conhecimento de que ambas eram enganadas. As cartas que ambas recebiam de Daniel foram igualmente comunicadas. A nova traição do rapaz foi descoberta.
No meio, porém, destas rivalidades e das nuvens que começavam a ensombrar o quadro da afeição fraternal de Júlia e de Teresa, o coração foi readquirindo os seus direitos e pôde contrabalançar o amor.
O que é certo é que um mês depois Júlia e Teresa recebiam uma da outra uma carta de desistência.
Eis a carta de Teresa a Júlia:
Minha querida Júlia
Sei quanto sofres, sei como amas Daniel. Compreendo esse amor por ele, visto que o tenho igualmente. Mas eu posso sofrer os golpes da fatalidade e reerguer-me sã e salva. Duvido que o possas tu. Sente-se que a tua vida depende desse amor.
Assim, pois, vou fazer o que meu coração me dita. É um dever de amizade leal, como convém a quem está sincera em tudo isto.
Amo Daniel, é verdade, mas entre o meu e o teu sacrifício, prefiro o meu. Sufocarei a minha paixão. Ama-o tu sozinha e sê feliz.
Procedendo assim, estou longe de crer que mereça louvores ou agradecimentos; faço o dever. Salvar uma amiga de uma dor grave é um dever de amizade. Se a amizade não servisse para estas grandes ocasiões seria uma cousa fácil.
Quando o céu nos fez tão iguais, e o mesmo sentimento nos ligou, foi para que nos mostrássemos assim. Se hoje faço isto, amanhã farás outra cousa por mim, e teremos ambas merecido o nome de verdadeiramente amigas.
Sossega, pois, o teu coração; alimenta as tuas esperanças. Ama Daniel. Sê feliz e crê-me tua amiga,
Teresa.
Quando Júlia lia esta carta de Teresa, Teresa lia a seguinte carta de Júlia:
Minha Teresa
Daniel é um tanto bandoleiro; mas ele pode ser firme e fiel, se um coração verdadeiramente apaixonado o contiver. Qualquer de nós lhe daria esse coração, mas de nós ambas só tu pareces mais fraca, mais exclusivamente apaixonada. Eu o estou bastante, mas agradeço restar-me um pouco de razão para ver que devo fazer um sacrifício em teu favor.
A que chegaríamos se eu insistisse em conservar o amor de Daniel? A uma luta estéril, sem resultado, a não ser o de perdermos ambas a tranquilidade do coração e a felicidade da nossa vida. Que isso me sucedesse a mim, pouco me importaria, mas tu é que não deves sofrer, e eu lastimaria do fundo d'alma tão funesto resultado.
O que te digo, pois, é que o ames só e procures ganhar exclusivamente toda a afeição de Daniel. Ele pode fazer-te feliz, e pela minha parte vou pedir a Deus que coroe os teus votos.
Não te importes comigo; sou mais forte do que tu; posso lutar e vencer. Por que não? Quando me faltasse coragem, bastaria a ideia de que cumpria um dever de irmã para ganhar forças. Não será uma luta estéril a luta do meu coração contra o amor. Mas vença o dever, e tanto basta para fazer-me contente.
Ama-o e sê feliz. Do coração to deseja a tua,
Júlia.
X
Estas duas cartas, chegando ao mesmo tempo e dizendo a mesma cousa, produziram idênticos efeitos.
Ambas viram que de parte a parte havia um sacrifício de amizade. Mas ambas persistiram no que haviam entendido, sem querer aproveitar o sacrifício da outra.
Novas cartas e novas recusas da parte de ambas.
E, para realizar o sacrifício oferecido, ambas deram de tábua ao gamenho Daniel.
A primeira vez que se encontraram caíram nos braços uma da outra, quase lavadas em lágrimas.
- Obrigada, minha amiga! O teu sacrifício é grande, mas em vão; não posso aceitá-lo.
- Nem eu, o teu.
- Por que não?
- Por que não?
- Aceita.
- Aceita tu.
E deste modo cada uma delas tratava de ver quem seria mais generosa que a outra.
Respondendo desta maneira, atirado de uma para outra, recuando por sentimento de magnanimidade, Daniel foi quem perdeu no tal joguinho. De onde se prova o provérbio que é sempre mau correr a duas lebres.
Mas falta à nossa história o epílogo e moralidade.
***
Quinze dias depois das cenas que se acabam de narrar, Teresa escreveu a Júlia as seguintes linhas:
Minha Júlia
Sei que és minha amiga e partilharás a minha felicidade. Vou ser feliz.
A felicidade para nós outras reduz-se a muito pouco: encher o nosso coração e satisfazer a nossa fantasia.
Vou casar. Acabo de ser pedida. O meu noivo possui o meu coração, e posso dizê-lo, sem vaidade para mim, eu possuo o dele.
Perguntarás quem ele é. É natural. Não te lembras do Alfredo Soares? Pois é ele. Vi-o tantas vezes a frio; não sei por que comecei a amá-lo. Hoje se ele não me pedisse, creio que eu morreria. O amor é isto, Júlia: é problema que só a morte ou o casamento resolve.
Adeus, abençoa o futuro de tua amiga,
Teresa.
Júlia leu esta carta e respondeu as seguintes linhas:
Minha Teresa
Estimo do fundo d'alma a tua felicidade e faço votos para que sejas completamente feliz. O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.
Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma cousa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.
Não conheces o meu noivo; chama-se Carlos da Silveira, tem 25 anos, e é um coração de pomba. Ama-me como eu amo a ele.
Meu pai não se poderá opor a este casamento. O que resta é que ele seja feito no mesmo dia, para que, fazendo em igual hora a nossa ventura, ratifiquemos a sorte propícia e idêntica que o céu nos deparou.
Agradeçamos a Deus tanta felicidade. Até amanhã à noite. Tua,
Júlia.
XI
Na noite do dia seguinte reuniram-se todos, não em casa de Teresa, mas em casa de Júlia, nos Cajueiros. Estavam as duas e os dous noivos. Gabriel acompanhara a família à visita.
As duas moças comunicaram os seus projetos de felicidade. Nenhuma delas censurou à outra o silêncio que guardara até a hora do pedido em casamento, porque ambas tinham praticado a mesma cousa.
Ora, Gabriel, que soubera por sua irmã Teresa da recusa de ambas relativamente a Daniel, aproveitou uma ocasião que as acompanhou à janela e disse-lhes:
- Não há nada como a amizade. Admiro cada vez mais o ato de generosidade que ambas praticaram a respeito de Daniel.
- Ah! Sabe! - disse Júlia.
- Sei.
- Fui eu quem lho disse - acrescentou Teresa.
- Mas - continuou Gabriel -, são tão felizes que o céu lhes deparou logo um coração para responder aos seus.
- É verdade - disseram as duas.
Gabriel olhou para ambas, e depois, à meia voz, com intenção disse:
- Com a singularidade de que a carta de desistência do coração do primeiro foi escrita depois do primeiro olhar amoroso do segundo.
As duas moças coraram e esconderam o rosto.
Tinham de ficar vexadas.
Caía assim o véu que encobria o sacrifício e via-se que ambas haviam praticado o sacrifício no interesse pessoal; ou por outra: largavam um pássaro tendo outro em mão.
Mas as duas moças casaram-se e ficaram tão amigas como antes. Não sei se no correr dos tempos houve sacrifícios semelhantes.