Conto

O Que São As Moças

1866
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em maio e junho de 1866, assinado por Max. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

V

À noite do dia aprazado reuniram-se as duas amigas em Catumbi. Pelas cartas que aí ficam escritas imaginem os leitores do tom em que foi a conversa. A sós, no gabinete de Teresa, puderam aquelas almas abrir-se e confiar uma à outra todos os segredos e todas as esperanças. Talvez chegassem a chorar; lágrimas naquela idade são como a chuva da primavera. Caem para deixar o céu mais belo e a terra mais jubilosa.

Dizia Teresa:

- Tu não sabes, minha Júlia, como aquele moço me deixou o coração. Não penso senão nele. Já sonhei com ele duas vezes. A primeira foi um sonho de felicidade; a segunda foi um sonho terrível.

- Ah!

- Sonhei que o vi, no mesmo cavalo, rolar por um despenhadeiro abaixo. Dei um grito e acordei. Que sonho, meu Deus!

- Felizmente era sonho.

- É verdade.

- Mas ainda me não contaste o primeiro sonho.

- O primeiro...

- Nada de vergonha; o primeiro sonho foi um sonho de felicidade, não? Pois conta. Não sou eu também confidente de felicidades?

- Sonhei que estávamos em vésperas de casar. Ele, a sós comigo, no jardim do tio Mateus, jurava aos meus pés, pela centésima vez, que eu seria o último pensamento de sua vida. Acreditarás que chorei mesmo no sonho, e que quando acordei tinha os olhos úmidos?

- Acredito, sim.

- Foi este o primeiro sonho. E tu? Não tens sonhado? Conta-me tudo.

- Não tenho sonhado, não; mas posso dizer que vivo em perpétuo sonho. Trago presente na memória a figura dele, de noite e de dia. É o mesmo ou talvez melhor que sonhar.

- Também eu! - disse Teresa suspirando.

Júlia continuou:

- Olha, se eu fosse tão feliz que me casasse com ele, e se tu também te casasses com o teu, havíamos de morar juntas. Que vida feliz, hem?

- Oh! Não fales!

- O amor de um lado e a amizade do outro. Que felicidade!

Bateram à porta do gabinete.

Teresa perguntou quem era.

- Sou eu - respondeu uma voz masculina.

- É o mano Gabriel - disse ela voltando-se para Júlia.

E foi abrir a porta.

Gabriel apareceu à porta. Era um rapaz simpático, muito parecido com a irmã. Tinha um ar de franqueza e de galhofa, sem excluir a delicadeza das maneiras, que o fazia querido das moças.

- Conversavam? Queria saber em quê. Imagino que não era sobre as sandálias de São Francisco de Paula.

- Cala a boca, herege! - disse Teresa.

- É heresia, sei, não precisa pôr mais na carta. Então sobre que conversavam as meninas?

- Quer saber? - disse Júlia -. Sobre os indiscretos.

- Passam em revista a humanidade. Pois eu aposto que não era sobre os indiscretos que falavam. Era talvez sobre amores.

- Apre lá, mano!

- Isso que tem entre moças?... A senhora minha irmã anda agora de namoro, sabe, D. Júlia?

As duas moças trocaram um olhar. Teriam sido ouvidas? Gabriel olhava para a irmã com ar de quem tinha prazer em ver aquela confusão. Teresa, depois de um minuto de silêncio, aventurou estas palavras:

- Quem lhe meteu estas cousas na cabeça?

- Ah! Eu adivinho.

- Pois enganou-se na adivinhação; mas se fosse verdade?...

- Se fosse verdade era uma cousa muito natural, e por isso não sei por que motivo não havia eu de saber as cousas do teu coração.

- Deus me livre!

- Ora essa! - disse Gabriel sentando-se num puff -, por que não havia eu de saber? Eu compreendo que D. Júlia não me conte os seus amores. Mas tu...

- Meus amores? - disse Júlia.

- Sim, senhora, sim, os seus amores. Aposto que também não os tem?

- Não tenho, é verdade.

- Nada, a mim é que não engana; sei que os tem, não só a senhora, como Teresa; e eu, na qualidade de irmão de uma e criado de outra, hei de saber de tudo... É a minha resolução.

- Tu ouviste? - perguntou Teresa a Gabriel.

- Tudo.

- Ah! Que curioso! - exclamaram as duas.

Gabriel ria-se para ambas e divertia-se interiormente com o embaraço em que ambas ficaram. As duas, não podendo suportar o olhar do moço, caíram nos braços uma da outra.

VI

Poucos dias depois um baile reunia as duas famílias. Era um baile de anos da filha do Comendador ***.

Pouco importa saber à nossa história quem eram os convidados, nem qual era o toilette das senhoras, nem quais as mais belas, nem as mais adoráveis e adoradas.

Basta-nos saber que as duas heroínas deste conto primavam de graça e de gosto. Nisto a natureza e a arte as fizeram igualmente irmãs. Os leitores nos dispensam sem dúvida a descrição minuciosa do traje de cada uma delas.

Mesmo nos bailes poucas vezes se separava Júlia de Teresa; em caso de força maior, resignavam-se, mas era para voltar logo a reunir-se.

Gabriel achava-se presente a esse baile.

Às dez horas da noite apareceu nos salões um cavalheiro que, por sua galharda presença e beleza original, começava a adquirir certa reputação. Era um filho de Campos; muito jovem fora à Europa, donde voltara havia poucos dias.

Antes que o moço convidado chegasse à saleta onde se achavam as duas heroínas, lá lhes chegara a fama. Uma natural curiosidade falou em ambas as criaturas. Vê-lo foi um pensamento que assaltou a um tempo o espírito de Júlia e de Teresa; mas ambas julgaram que deviam ir ao toilette ver mais duas amigas que lá as esperavam no fundo do vidro de um espelho, muito parecidas com elas, e talvez mais amigas ainda de cada uma delas, do que elas o eram entre si.

Foram.

Uma mulher tem sempre uma fita a prender, um fio de cabelo a arranjar, quando se trata de ver um homem pela primeira vez, ou mesmo pela segunda, ou mesmo pela centésima vez.

É por assim dizer as armas que elas dispõem para entrar no duelo da casquilhice, duelo onde não há necessidade de cartel nem de testemunhas.

Arranjada a fita ou o cabelo, ou, como talvez acontecesse, porque neste ponto a tradição é obscura, feita unicamente uma simples e rápida inspeção, dispunham-se as duas amigas a voltar ao salão.

Júlia ia adiante; com uma das mãos afastou o reposteiro para sair; mas Teresa, do outro lado, fez o mesmo, e ambas puseram o pé fora da porta ao mesmo tempo, quando por um rápido movimento tornaram a entrar.

Olharam-se.

- Lá está ele! - disseram ambas.

- Ele quem? - perguntou Teresa.

- O meu namorado - respondeu Júlia -. E o teu também está?

- Também.

Fora, com efeito, passeavam alguns cavalheiros.

As duas amigas colaram o olho a uma fresta do reposteiro e começaram a indicar uma à outra quem era o dono do coração.

Momentos depois desta investigação feita em voz baixa, e com a respiração compressa, olharam-se com espanto:

- É o mesmo!

Esta exclamação partiu de ambas.

Em tais ocasiões há sempre um momento de silêncio, ainda quando se trata de corações tão intimamente ligados como eram aqueles dous.

Com efeito, o acaso, autor de muitos lances imprevistos, preparara às duas amigas aquela circunstância engenhosa de ambas se apaixonarem pelo mesmo indivíduo. Era naturalmente o que lhes poderia acontecer de pior.

O silêncio que houve entre as duas amigas deu lugar a que muitas reflexões fizessem ambas sobre tão extraordinária situação. Mas, prolongá-lo era empiorar as cousas. Foi Teresa quem falou em primeiro lugar.

- Na verdade, é preciso que a sorte nos reserve como eterno exemplo de confraternidade para que nos aconteça tão singular encontro.

- É verdade - disse Júlia.

- Era o primeiro, e por desgraça é o mesmo.

- Dizes bem, por desgraça, porque... tu o amas, não?

- Muito. E tu?

- Tanto como tu. É uma desgraça.

As duas amigas foram sentar-se tristes. Creio até que uma lágrima rolou-lhes pela face, como se já de antemão estivessem a chorar o bem que iam perder mediante um ato de suspiro.

Estiveram assim durante algum tempo.

Depois Teresa levantou-se e foi a Júlia.

- Minha querida, somos irmãs pelo coração; se o teu amor é forte, se dele depende a tua vida, seja a conquista unicamente tua. Consola o teu coração e não te importes comigo.

- Isso não - respondeu Júlia levantando-se -. Em nome de quê devo eu consentir esse sacrifício? Não chorar para ver-te chorar, Teresa, prefiro morrer!

Tamanho interesse, duvido eu que alguém tenha visto, sobretudo com o ar de convicção sincera daquele; era um espetáculo que eu sinto ter sido apenas observado pelos espelhos do toilette e pela pena do romancista, que penetra até no íntimo do pensamento.

Todavia, se aquela luta da recusa do namorado em questão se prolongasse mais algum tempo, corria o risco de ser monótona. Parece que ambas compreenderam isto, porque trataram de pôr termo a ela.

Ocorreu, porém, a ambas uma ideia que até ali não tinha aparecido. Foi Teresa quem primeiro a enunciou.

- Mas, dize-me cá, se ele nos iludir a ambas? Não disseste que ele parecia corresponder-te?

- Correspondia.

- Também a mim.

- Enganava a ambas.

- Enganava. Isto é importante. Nós nos doíamos de amor por ele, sem sabermos que ambas fazíamos convergir o nosso espírito para um mesmo ponto, e ele, contente por contar com o coração de ambas, de ambas se ria entre si.

- Parece que é verdade isso.

- É, sem dúvida.

Juntou-se ao desgosto da situação um grão de despeito. Era o sal que faltava. Devo mesmo dizer que se não houvesse aquele despeito tão natural, o coração das duas moças sofreria dobradamente. Até então apenas tinham a idealidade de uma má fortuna contra quem exalar os seus suspiros e clamores; agora tinham diante de si um ente vivo, humano, a causa da situação aflitiva a que eram levadas.

Assim quê, uma vez concordes em que o moço zombava delas, as duas moças ficaram igualmente acordes num ponto: era que ele não devia entrar nas suas preocupações, posto que tão indigno se mostrara.

Mas, quem pode responder pelo coração? Era ainda o coração quem as animava contra o jovem namorado comum. Enganavam-se, talvez; venceria o amor ou a amizade? É o que as leitoras vão saber se tiverem a paciência de passar aos capítulos seguintes.

VII

Não pertenço ao número dos narradores que atribuem aos leitores uma cegueira completa para a averiguação de certos pontos das suas narrativas. Fica entendido que o leitor sabe já que o namorado de Júlia e Teresa, e o rapaz entrado às 10 horas na casa do Comendador ***, causando tanto abalo aos convidados, eram uma e a mesma pessoa.

Isto posto, direi mais duas palavras sobre o misterioso namorado. Já disse que chegara da Europa e que era um guapo rapaz. Acrescentarei que se chama Daniel. Tem 25 anos de idade. Profissão: duzentos contos em títulos da dívida pública e prédios inscritos nas companhias de seguro contra o fogo. Era gastador, mas gastava com certa conta; isto por experiência, visto que os duzentos contos eram já os restos de uma fortuna de oitocentos que lhe deixara o pai.

Tal é em traços largos o namorado das duas raparigas, que o seria de quantas quisesse, tão próprio a inspirar amores era ele.

Júlia e Teresa tinham saído para o salão.

Não viram Daniel.

Mas, na ocasião em que se anunciava uma quadrilha, viram aproximar-se do lugar em que elas estavam Daniel e Gabriel: Daniel era míope; quando pôs a luneta e conheceu as duas raparigas fez um gesto de surpresa. Não convinha, porém, mostrar-se conhecido de nada, e para logo se acalmou. Gabriel conduziu-o, apresentou-o às duas amigas, e disse para sua irmã que dançasse com ele.

- Tenho par - murmurou Teresa.

- Tens, é verdade - disse Gabriel -, mas o teu par sou eu. Ora, eu cedo em favor de Daniel.

Não era possível recuar. Todavia, Teresa não quis decidir-se sem consultar Júlia com o olhar.

Júlia levantou simplesmente os ombros; Teresa adivinhou o movimento e tomou o braço de Daniel.

Gabriel voltou-se para Júlia e disse:

- Se não tem par, D. Júlia. O meu vis-à-vis é Daniel.

- Não tenho - respondeu a moça.

Nesse momento soara o sinal da quadrilha. Júlia levantou-se e aceitou o braço do irmão de Teresa. Iam tomar lugar em frente de Teresa e Daniel, quando um cavalheiro se apresentou reclamando uma quadrilha de Júlia, a qual dizia ser aquela.

- Eu me enganei; o meu par era este cavalheiro.

O moço não insistiu.

Júlia corou. Tinha faltado à verdade e acabava de cometer uma imprudência; mas apenas se achou diante do par Teresa e Daniel, a moça esqueceu tudo, e cravou na amiga um olhar inteligente e indagador.

Entretanto a quadrilha começou e seguiu o seu curso. Daniel conversava muito com Teresa; esta respondia-lhe por monossílabos; mas de certo ponto em diante parecia interessar-se menos que ao princípio.

Qual seria o motivo da conversa?

Era esta a pergunta que Júlia fazia consigo. Mas não podendo saber logo, ardia por ver a quadrilha acabada. A quadrilha acabou; apenas se achou a sós com Teresa perguntou-lhe curiosa qual o objeto do diálogo que tivera com Daniel; Teresa respondeu que ele fizera correr a conversa sobre banalidades, que era um homem aborrecido e comum.

Isto tranquilizou a outra.

Dançou-se ainda algumas quadrilhas. Era já uma hora da noite. A família de Teresa, a instâncias desta, adiara a saída.

Gabriel apareceu de repente a Júlia levando pelo braço o seu amigo Daniel.

- O meu amigo Daniel é o melhor valsista da sala, incluindo-me eu próprio -disse ele a Júlia.

E, voltando-se para Daniel, continuou:

- D. Júlia é a melhor valsista desta sala, incluindo minha mana.

Seguiu-se uma valsa entre Daniel e Júlia: era natural.

A valsa foi realmente digna dos elogios que dos dous valsistas fizera Gabriel.

Quando pararam Júlia estava extenuada. De fadiga ou comoção? Talvez de uma e outra cousa. O que é certo é que Daniel tanto valsava como falava ao ouvido de Júlia, palavras brandas, rápidas e incisivas.

Ora, no fim da noite eis em resumo o que Daniel havia dito a Júlia e a Teresa.

A Teresa:

- Amo-a muito; é a única que trago em meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida, é o meu futuro, é o meu céu. Ame-me, ame-me!

A Júlia:

- Amo-a muito; é a única que trago no meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho, nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida; é o meu futuro, é o meu céu! Ame-me, ame-me!

VIII

Passaram-se alguns dias depois do baile.

Nenhum acontecimento importante mudou a ordem antiga das cousas; as duas amigas comunicaram-se com frequência; as cartas iam e vinham com presteza, e a afeição fraternal parecia não ter sofrido em cousa alguma.

Uma só cousa se notava na correspondência de Júlia e de Teresa; era um silêncio obstinado a respeito de Daniel. Esse silêncio, depois dos acontecimentos e do diálogo dos dous no baile, era natural; mas acaso a declaração de Daniel influiria no ânimo?

Vamos ver o que foi.

IX

Daniel continuava a passar todas as tardes como anteriormente em Catumbi e nos Cajueiros. À hora do costume já as duas moças se achavam à janela.

Como explicar o procedimento de Daniel? Amaria ambas? Impossível. Enganaria ambas ou uma só?

O amor, para Daniel, era simplesmente um objeto de distração; ele não amava nem a Júlia, nem a Teresa; divertia-se com ambas, por mero passatempo.

Em tão má hora o fez, ou antes com toda a perfídia, que as duas boas moças declararam-se apaixonadas por ele.

E esta paixão foi a nuvem que cobriu o céu de amizade, até então puro e radiante.

Os dias correram do modo por que os leitores adivinham. O silêncio recíproco a respeito de Daniel deu a entender a Júlia e a Teresa que eram rivais uma da outra.

Isto devia naturalmente trazer uma explicação. Foi o que aconteceu; as duas, um dia que se achavam juntas, levaram naturalmente a conversa para o objeto comum.

Ambas declararam que amavam Daniel e comunicaram a esperança que este lhes dava. Como da primeira vez, chegaram ao conhecimento de que ambas eram enganadas. As cartas que ambas recebiam de Daniel foram igualmente comunicadas. A nova traição do rapaz foi descoberta.

No meio, porém, destas rivalidades e das nuvens que começavam a ensombrar o quadro da afeição fraternal de Júlia e de Teresa, o coração foi readquirindo os seus direitos e pôde contrabalançar o amor.

O que é certo é que um mês depois Júlia e Teresa recebiam uma da outra uma carta de desistência.

Eis a carta de Teresa a Júlia:

Minha querida Júlia

Sei quanto sofres, sei como amas Daniel. Compreendo esse amor por ele, visto que o tenho igualmente. Mas eu posso sofrer os golpes da fatalidade e reerguer-me sã e salva. Duvido que o possas tu. Sente-se que a tua vida depende desse amor.

Assim, pois, vou fazer o que meu coração me dita. É um dever de amizade leal, como convém a quem está sincera em tudo isto.

Amo Daniel, é verdade, mas entre o meu e o teu sacrifício, prefiro o meu. Sufocarei a minha paixão. Ama-o tu sozinha e sê feliz.

Procedendo assim, estou longe de crer que mereça louvores ou agradecimentos; faço o dever. Salvar uma amiga de uma dor grave é um dever de amizade. Se a amizade não servisse para estas grandes ocasiões seria uma cousa fácil.

Quando o céu nos fez tão iguais, e o mesmo sentimento nos ligou, foi para que nos mostrássemos assim. Se hoje faço isto, amanhã farás outra cousa por mim, e teremos ambas merecido o nome de verdadeiramente amigas.

Sossega, pois, o teu coração; alimenta as tuas esperanças. Ama Daniel. Sê feliz e crê-me tua amiga,

Teresa.

Quando Júlia lia esta carta de Teresa, Teresa lia a seguinte carta de Júlia:

Minha Teresa

Daniel é um tanto bandoleiro; mas ele pode ser firme e fiel, se um coração verdadeiramente apaixonado o contiver. Qualquer de nós lhe daria esse coração, mas de nós ambas só tu pareces mais fraca, mais exclusivamente apaixonada. Eu o estou bastante, mas agradeço restar-me um pouco de razão para ver que devo fazer um sacrifício em teu favor.

A que chegaríamos se eu insistisse em conservar o amor de Daniel? A uma luta estéril, sem resultado, a não ser o de perdermos ambas a tranquilidade do coração e a felicidade da nossa vida. Que isso me sucedesse a mim, pouco me importaria, mas tu é que não deves sofrer, e eu lastimaria do fundo d'alma tão funesto resultado.

O que te digo, pois, é que o ames só e procures ganhar exclusivamente toda a afeição de Daniel. Ele pode fazer-te feliz, e pela minha parte vou pedir a Deus que coroe os teus votos.

Não te importes comigo; sou mais forte do que tu; posso lutar e vencer. Por que não? Quando me faltasse coragem, bastaria a ideia de que cumpria um dever de irmã para ganhar forças. Não será uma luta estéril a luta do meu coração contra o amor. Mas vença o dever, e tanto basta para fazer-me contente.

Ama-o e sê feliz. Do coração to deseja a tua,

Júlia.

X

Estas duas cartas, chegando ao mesmo tempo e dizendo a mesma cousa, produziram idênticos efeitos.

Ambas viram que de parte a parte havia um sacrifício de amizade. Mas ambas persistiram no que haviam entendido, sem querer aproveitar o sacrifício da outra.

Novas cartas e novas recusas da parte de ambas.

E, para realizar o sacrifício oferecido, ambas deram de tábua ao gamenho Daniel.

A primeira vez que se encontraram caíram nos braços uma da outra, quase lavadas em lágrimas.

- Obrigada, minha amiga! O teu sacrifício é grande, mas em vão; não posso aceitá-lo.

- Nem eu, o teu.

- Por que não?

- Por que não?

- Aceita.

- Aceita tu.

E deste modo cada uma delas tratava de ver quem seria mais generosa que a outra.

Respondendo desta maneira, atirado de uma para outra, recuando por sentimento de magnanimidade, Daniel foi quem perdeu no tal joguinho. De onde se prova o provérbio que é sempre mau correr a duas lebres.

Mas falta à nossa história o epílogo e moralidade.

***

Quinze dias depois das cenas que se acabam de narrar, Teresa escreveu a Júlia as seguintes linhas:

Minha Júlia

Sei que és minha amiga e partilharás a minha felicidade. Vou ser feliz.

A felicidade para nós outras reduz-se a muito pouco: encher o nosso coração e satisfazer a nossa fantasia.

Vou casar. Acabo de ser pedida. O meu noivo possui o meu coração, e posso dizê-lo, sem vaidade para mim, eu possuo o dele.

Perguntarás quem ele é. É natural. Não te lembras do Alfredo Soares? Pois é ele. Vi-o tantas vezes a frio; não sei por que comecei a amá-lo. Hoje se ele não me pedisse, creio que eu morreria. O amor é isto, Júlia: é problema que só a morte ou o casamento resolve.

Adeus, abençoa o futuro de tua amiga,

Teresa.

Júlia leu esta carta e respondeu as seguintes linhas:

Minha Teresa

Estimo do fundo d'alma a tua felicidade e faço votos para que sejas completamente feliz. O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.

Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma cousa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.

Não conheces o meu noivo; chama-se Carlos da Silveira, tem 25 anos, e é um coração de pomba. Ama-me como eu amo a ele.

Meu pai não se poderá opor a este casamento. O que resta é que ele seja feito no mesmo dia, para que, fazendo em igual hora a nossa ventura, ratifiquemos a sorte propícia e idêntica que o céu nos deparou.

Agradeçamos a Deus tanta felicidade. Até amanhã à noite. Tua,

Júlia.

A+
A-