V
À noite do dia aprazado reuniram-se as duas amigas em Catumbi. Pelas cartas que aí ficam escritas imaginem os leitores do tom em que foi a conversa. A sós, no gabinete de Teresa, puderam aquelas almas abrir-se e confiar uma à outra todos os segredos e todas as esperanças. Talvez chegassem a chorar; lágrimas naquela idade são como a chuva da primavera. Caem para deixar o céu mais belo e a terra mais jubilosa.
Dizia Teresa:
- Tu não sabes, minha Júlia, como aquele moço me deixou o coração. Não penso senão nele. Já sonhei com ele duas vezes. A primeira foi um sonho de felicidade; a segunda foi um sonho terrível.
- Ah!
- Sonhei que o vi, no mesmo cavalo, rolar por um despenhadeiro abaixo. Dei um grito e acordei. Que sonho, meu Deus!
- Felizmente era sonho.
- É verdade.
- Mas ainda me não contaste o primeiro sonho.
- O primeiro...
- Nada de vergonha; o primeiro sonho foi um sonho de felicidade, não? Pois conta. Não sou eu também confidente de felicidades?
- Sonhei que estávamos em vésperas de casar. Ele, a sós comigo, no jardim do tio Mateus, jurava aos meus pés, pela centésima vez, que eu seria o último pensamento de sua vida. Acreditarás que chorei mesmo no sonho, e que quando acordei tinha os olhos úmidos?
- Acredito, sim.
- Foi este o primeiro sonho. E tu? Não tens sonhado? Conta-me tudo.
- Não tenho sonhado, não; mas posso dizer que vivo em perpétuo sonho. Trago presente na memória a figura dele, de noite e de dia. É o mesmo ou talvez melhor que sonhar.
- Também eu! - disse Teresa suspirando.
Júlia continuou:
- Olha, se eu fosse tão feliz que me casasse com ele, e se tu também te casasses com o teu, havíamos de morar juntas. Que vida feliz, hem?
- Oh! Não fales!
- O amor de um lado e a amizade do outro. Que felicidade!
Bateram à porta do gabinete.
Teresa perguntou quem era.
- Sou eu - respondeu uma voz masculina.
- É o mano Gabriel - disse ela voltando-se para Júlia.
E foi abrir a porta.
Gabriel apareceu à porta. Era um rapaz simpático, muito parecido com a irmã. Tinha um ar de franqueza e de galhofa, sem excluir a delicadeza das maneiras, que o fazia querido das moças.
- Conversavam? Queria saber em quê. Imagino que não era sobre as sandálias de São Francisco de Paula.
- Cala a boca, herege! - disse Teresa.
- É heresia, sei, não precisa pôr mais na carta. Então sobre que conversavam as meninas?
- Quer saber? - disse Júlia -. Sobre os indiscretos.
- Passam em revista a humanidade. Pois eu aposto que não era sobre os indiscretos que falavam. Era talvez sobre amores.
- Apre lá, mano!
- Isso que tem entre moças?... A senhora minha irmã anda agora de namoro, sabe, D. Júlia?
As duas moças trocaram um olhar. Teriam sido ouvidas? Gabriel olhava para a irmã com ar de quem tinha prazer em ver aquela confusão. Teresa, depois de um minuto de silêncio, aventurou estas palavras:
- Quem lhe meteu estas cousas na cabeça?
- Ah! Eu adivinho.
- Pois enganou-se na adivinhação; mas se fosse verdade?...
- Se fosse verdade era uma cousa muito natural, e por isso não sei por que motivo não havia eu de saber as cousas do teu coração.
- Deus me livre!
- Ora essa! - disse Gabriel sentando-se num puff -, por que não havia eu de saber? Eu compreendo que D. Júlia não me conte os seus amores. Mas tu...
- Meus amores? - disse Júlia.
- Sim, senhora, sim, os seus amores. Aposto que também não os tem?
- Não tenho, é verdade.
- Nada, a mim é que não engana; sei que os tem, não só a senhora, como Teresa; e eu, na qualidade de irmão de uma e criado de outra, hei de saber de tudo... É a minha resolução.
- Tu ouviste? - perguntou Teresa a Gabriel.
- Tudo.
- Ah! Que curioso! - exclamaram as duas.
Gabriel ria-se para ambas e divertia-se interiormente com o embaraço em que ambas ficaram. As duas, não podendo suportar o olhar do moço, caíram nos braços uma da outra.
VI
Poucos dias depois um baile reunia as duas famílias. Era um baile de anos da filha do Comendador ***.
Pouco importa saber à nossa história quem eram os convidados, nem qual era o toilette das senhoras, nem quais as mais belas, nem as mais adoráveis e adoradas.
Basta-nos saber que as duas heroínas deste conto primavam de graça e de gosto. Nisto a natureza e a arte as fizeram igualmente irmãs. Os leitores nos dispensam sem dúvida a descrição minuciosa do traje de cada uma delas.
Mesmo nos bailes poucas vezes se separava Júlia de Teresa; em caso de força maior, resignavam-se, mas era para voltar logo a reunir-se.
Gabriel achava-se presente a esse baile.
Às dez horas da noite apareceu nos salões um cavalheiro que, por sua galharda presença e beleza original, começava a adquirir certa reputação. Era um filho de Campos; muito jovem fora à Europa, donde voltara havia poucos dias.
Antes que o moço convidado chegasse à saleta onde se achavam as duas heroínas, lá lhes chegara a fama. Uma natural curiosidade falou em ambas as criaturas. Vê-lo foi um pensamento que assaltou a um tempo o espírito de Júlia e de Teresa; mas ambas julgaram que deviam ir ao toilette ver mais duas amigas que lá as esperavam no fundo do vidro de um espelho, muito parecidas com elas, e talvez mais amigas ainda de cada uma delas, do que elas o eram entre si.
Foram.
Uma mulher tem sempre uma fita a prender, um fio de cabelo a arranjar, quando se trata de ver um homem pela primeira vez, ou mesmo pela segunda, ou mesmo pela centésima vez.
É por assim dizer as armas que elas dispõem para entrar no duelo da casquilhice, duelo onde não há necessidade de cartel nem de testemunhas.
Arranjada a fita ou o cabelo, ou, como talvez acontecesse, porque neste ponto a tradição é obscura, feita unicamente uma simples e rápida inspeção, dispunham-se as duas amigas a voltar ao salão.
Júlia ia adiante; com uma das mãos afastou o reposteiro para sair; mas Teresa, do outro lado, fez o mesmo, e ambas puseram o pé fora da porta ao mesmo tempo, quando por um rápido movimento tornaram a entrar.
Olharam-se.
- Lá está ele! - disseram ambas.
- Ele quem? - perguntou Teresa.
- O meu namorado - respondeu Júlia -. E o teu também está?
- Também.
Fora, com efeito, passeavam alguns cavalheiros.
As duas amigas colaram o olho a uma fresta do reposteiro e começaram a indicar uma à outra quem era o dono do coração.
Momentos depois desta investigação feita em voz baixa, e com a respiração compressa, olharam-se com espanto:
- É o mesmo!
Esta exclamação partiu de ambas.
Em tais ocasiões há sempre um momento de silêncio, ainda quando se trata de corações tão intimamente ligados como eram aqueles dous.
Com efeito, o acaso, autor de muitos lances imprevistos, preparara às duas amigas aquela circunstância engenhosa de ambas se apaixonarem pelo mesmo indivíduo. Era naturalmente o que lhes poderia acontecer de pior.
O silêncio que houve entre as duas amigas deu lugar a que muitas reflexões fizessem ambas sobre tão extraordinária situação. Mas, prolongá-lo era empiorar as cousas. Foi Teresa quem falou em primeiro lugar.
- Na verdade, é preciso que a sorte nos reserve como eterno exemplo de confraternidade para que nos aconteça tão singular encontro.
- É verdade - disse Júlia.
- Era o primeiro, e por desgraça é o mesmo.
- Dizes bem, por desgraça, porque... tu o amas, não?
- Muito. E tu?
- Tanto como tu. É uma desgraça.
As duas amigas foram sentar-se tristes. Creio até que uma lágrima rolou-lhes pela face, como se já de antemão estivessem a chorar o bem que iam perder mediante um ato de suspiro.
Estiveram assim durante algum tempo.
Depois Teresa levantou-se e foi a Júlia.
- Minha querida, somos irmãs pelo coração; se o teu amor é forte, se dele depende a tua vida, seja a conquista unicamente tua. Consola o teu coração e não te importes comigo.
- Isso não - respondeu Júlia levantando-se -. Em nome de quê devo eu consentir esse sacrifício? Não chorar para ver-te chorar, Teresa, prefiro morrer!
Tamanho interesse, duvido eu que alguém tenha visto, sobretudo com o ar de convicção sincera daquele; era um espetáculo que eu sinto ter sido apenas observado pelos espelhos do toilette e pela pena do romancista, que penetra até no íntimo do pensamento.
Todavia, se aquela luta da recusa do namorado em questão se prolongasse mais algum tempo, corria o risco de ser monótona. Parece que ambas compreenderam isto, porque trataram de pôr termo a ela.
Ocorreu, porém, a ambas uma ideia que até ali não tinha aparecido. Foi Teresa quem primeiro a enunciou.
- Mas, dize-me cá, se ele nos iludir a ambas? Não disseste que ele parecia corresponder-te?
- Correspondia.
- Também a mim.
- Enganava a ambas.
- Enganava. Isto é importante. Nós nos doíamos de amor por ele, sem sabermos que ambas fazíamos convergir o nosso espírito para um mesmo ponto, e ele, contente por contar com o coração de ambas, de ambas se ria entre si.
- Parece que é verdade isso.
- É, sem dúvida.
Juntou-se ao desgosto da situação um grão de despeito. Era o sal que faltava. Devo mesmo dizer que se não houvesse aquele despeito tão natural, o coração das duas moças sofreria dobradamente. Até então apenas tinham a idealidade de uma má fortuna contra quem exalar os seus suspiros e clamores; agora tinham diante de si um ente vivo, humano, a causa da situação aflitiva a que eram levadas.
Assim quê, uma vez concordes em que o moço zombava delas, as duas moças ficaram igualmente acordes num ponto: era que ele não devia entrar nas suas preocupações, posto que tão indigno se mostrara.
Mas, quem pode responder pelo coração? Era ainda o coração quem as animava contra o jovem namorado comum. Enganavam-se, talvez; venceria o amor ou a amizade? É o que as leitoras vão saber se tiverem a paciência de passar aos capítulos seguintes.
VII
Não pertenço ao número dos narradores que atribuem aos leitores uma cegueira completa para a averiguação de certos pontos das suas narrativas. Fica entendido que o leitor sabe já que o namorado de Júlia e Teresa, e o rapaz entrado às 10 horas na casa do Comendador ***, causando tanto abalo aos convidados, eram uma e a mesma pessoa.
Isto posto, direi mais duas palavras sobre o misterioso namorado. Já disse que chegara da Europa e que era um guapo rapaz. Acrescentarei que se chama Daniel. Tem 25 anos de idade. Profissão: duzentos contos em títulos da dívida pública e prédios inscritos nas companhias de seguro contra o fogo. Era gastador, mas gastava com certa conta; isto por experiência, visto que os duzentos contos eram já os restos de uma fortuna de oitocentos que lhe deixara o pai.
Tal é em traços largos o namorado das duas raparigas, que o seria de quantas quisesse, tão próprio a inspirar amores era ele.
Júlia e Teresa tinham saído para o salão.
Não viram Daniel.
Mas, na ocasião em que se anunciava uma quadrilha, viram aproximar-se do lugar em que elas estavam Daniel e Gabriel: Daniel era míope; quando pôs a luneta e conheceu as duas raparigas fez um gesto de surpresa. Não convinha, porém, mostrar-se conhecido de nada, e para logo se acalmou. Gabriel conduziu-o, apresentou-o às duas amigas, e disse para sua irmã que dançasse com ele.
- Tenho par - murmurou Teresa.
- Tens, é verdade - disse Gabriel -, mas o teu par sou eu. Ora, eu cedo em favor de Daniel.
Não era possível recuar. Todavia, Teresa não quis decidir-se sem consultar Júlia com o olhar.
Júlia levantou simplesmente os ombros; Teresa adivinhou o movimento e tomou o braço de Daniel.
Gabriel voltou-se para Júlia e disse:
- Se não tem par, D. Júlia. O meu vis-à-vis é Daniel.
- Não tenho - respondeu a moça.
Nesse momento soara o sinal da quadrilha. Júlia levantou-se e aceitou o braço do irmão de Teresa. Iam tomar lugar em frente de Teresa e Daniel, quando um cavalheiro se apresentou reclamando uma quadrilha de Júlia, a qual dizia ser aquela.
- Eu me enganei; o meu par era este cavalheiro.
O moço não insistiu.
Júlia corou. Tinha faltado à verdade e acabava de cometer uma imprudência; mas apenas se achou diante do par Teresa e Daniel, a moça esqueceu tudo, e cravou na amiga um olhar inteligente e indagador.
Entretanto a quadrilha começou e seguiu o seu curso. Daniel conversava muito com Teresa; esta respondia-lhe por monossílabos; mas de certo ponto em diante parecia interessar-se menos que ao princípio.
Qual seria o motivo da conversa?
Era esta a pergunta que Júlia fazia consigo. Mas não podendo saber logo, ardia por ver a quadrilha acabada. A quadrilha acabou; apenas se achou a sós com Teresa perguntou-lhe curiosa qual o objeto do diálogo que tivera com Daniel; Teresa respondeu que ele fizera correr a conversa sobre banalidades, que era um homem aborrecido e comum.
Isto tranquilizou a outra.
Dançou-se ainda algumas quadrilhas. Era já uma hora da noite. A família de Teresa, a instâncias desta, adiara a saída.
Gabriel apareceu de repente a Júlia levando pelo braço o seu amigo Daniel.
- O meu amigo Daniel é o melhor valsista da sala, incluindo-me eu próprio -disse ele a Júlia.
E, voltando-se para Daniel, continuou:
- D. Júlia é a melhor valsista desta sala, incluindo minha mana.
Seguiu-se uma valsa entre Daniel e Júlia: era natural.
A valsa foi realmente digna dos elogios que dos dous valsistas fizera Gabriel.
Quando pararam Júlia estava extenuada. De fadiga ou comoção? Talvez de uma e outra cousa. O que é certo é que Daniel tanto valsava como falava ao ouvido de Júlia, palavras brandas, rápidas e incisivas.
Ora, no fim da noite eis em resumo o que Daniel havia dito a Júlia e a Teresa.
A Teresa:
- Amo-a muito; é a única que trago em meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida, é o meu futuro, é o meu céu. Ame-me, ame-me!
A Júlia:
- Amo-a muito; é a única que trago no meu pensamento. Um capricho levou-me a querer brincar com a sua amiga; mas eu não tenho, nem quero ter outro amor que não seja este. É a minha alma, é a minha vida; é o meu futuro, é o meu céu! Ame-me, ame-me!
VIII
Passaram-se alguns dias depois do baile.
Nenhum acontecimento importante mudou a ordem antiga das cousas; as duas amigas comunicaram-se com frequência; as cartas iam e vinham com presteza, e a afeição fraternal parecia não ter sofrido em cousa alguma.
Uma só cousa se notava na correspondência de Júlia e de Teresa; era um silêncio obstinado a respeito de Daniel. Esse silêncio, depois dos acontecimentos e do diálogo dos dous no baile, era natural; mas acaso a declaração de Daniel influiria no ânimo?
Vamos ver o que foi.
IX
Daniel continuava a passar todas as tardes como anteriormente em Catumbi e nos Cajueiros. À hora do costume já as duas moças se achavam à janela.
Como explicar o procedimento de Daniel? Amaria ambas? Impossível. Enganaria ambas ou uma só?
O amor, para Daniel, era simplesmente um objeto de distração; ele não amava nem a Júlia, nem a Teresa; divertia-se com ambas, por mero passatempo.
Em tão má hora o fez, ou antes com toda a perfídia, que as duas boas moças declararam-se apaixonadas por ele.
E esta paixão foi a nuvem que cobriu o céu de amizade, até então puro e radiante.
Os dias correram do modo por que os leitores adivinham. O silêncio recíproco a respeito de Daniel deu a entender a Júlia e a Teresa que eram rivais uma da outra.
Isto devia naturalmente trazer uma explicação. Foi o que aconteceu; as duas, um dia que se achavam juntas, levaram naturalmente a conversa para o objeto comum.
Ambas declararam que amavam Daniel e comunicaram a esperança que este lhes dava. Como da primeira vez, chegaram ao conhecimento de que ambas eram enganadas. As cartas que ambas recebiam de Daniel foram igualmente comunicadas. A nova traição do rapaz foi descoberta.
No meio, porém, destas rivalidades e das nuvens que começavam a ensombrar o quadro da afeição fraternal de Júlia e de Teresa, o coração foi readquirindo os seus direitos e pôde contrabalançar o amor.
O que é certo é que um mês depois Júlia e Teresa recebiam uma da outra uma carta de desistência.
Eis a carta de Teresa a Júlia:
Minha querida Júlia
Sei quanto sofres, sei como amas Daniel. Compreendo esse amor por ele, visto que o tenho igualmente. Mas eu posso sofrer os golpes da fatalidade e reerguer-me sã e salva. Duvido que o possas tu. Sente-se que a tua vida depende desse amor.
Assim, pois, vou fazer o que meu coração me dita. É um dever de amizade leal, como convém a quem está sincera em tudo isto.
Amo Daniel, é verdade, mas entre o meu e o teu sacrifício, prefiro o meu. Sufocarei a minha paixão. Ama-o tu sozinha e sê feliz.
Procedendo assim, estou longe de crer que mereça louvores ou agradecimentos; faço o dever. Salvar uma amiga de uma dor grave é um dever de amizade. Se a amizade não servisse para estas grandes ocasiões seria uma cousa fácil.
Quando o céu nos fez tão iguais, e o mesmo sentimento nos ligou, foi para que nos mostrássemos assim. Se hoje faço isto, amanhã farás outra cousa por mim, e teremos ambas merecido o nome de verdadeiramente amigas.
Sossega, pois, o teu coração; alimenta as tuas esperanças. Ama Daniel. Sê feliz e crê-me tua amiga,
Teresa.
Quando Júlia lia esta carta de Teresa, Teresa lia a seguinte carta de Júlia:
Minha Teresa
Daniel é um tanto bandoleiro; mas ele pode ser firme e fiel, se um coração verdadeiramente apaixonado o contiver. Qualquer de nós lhe daria esse coração, mas de nós ambas só tu pareces mais fraca, mais exclusivamente apaixonada. Eu o estou bastante, mas agradeço restar-me um pouco de razão para ver que devo fazer um sacrifício em teu favor.
A que chegaríamos se eu insistisse em conservar o amor de Daniel? A uma luta estéril, sem resultado, a não ser o de perdermos ambas a tranquilidade do coração e a felicidade da nossa vida. Que isso me sucedesse a mim, pouco me importaria, mas tu é que não deves sofrer, e eu lastimaria do fundo d'alma tão funesto resultado.
O que te digo, pois, é que o ames só e procures ganhar exclusivamente toda a afeição de Daniel. Ele pode fazer-te feliz, e pela minha parte vou pedir a Deus que coroe os teus votos.
Não te importes comigo; sou mais forte do que tu; posso lutar e vencer. Por que não? Quando me faltasse coragem, bastaria a ideia de que cumpria um dever de irmã para ganhar forças. Não será uma luta estéril a luta do meu coração contra o amor. Mas vença o dever, e tanto basta para fazer-me contente.
Ama-o e sê feliz. Do coração to deseja a tua,
Júlia.
X
Estas duas cartas, chegando ao mesmo tempo e dizendo a mesma cousa, produziram idênticos efeitos.
Ambas viram que de parte a parte havia um sacrifício de amizade. Mas ambas persistiram no que haviam entendido, sem querer aproveitar o sacrifício da outra.
Novas cartas e novas recusas da parte de ambas.
E, para realizar o sacrifício oferecido, ambas deram de tábua ao gamenho Daniel.
A primeira vez que se encontraram caíram nos braços uma da outra, quase lavadas em lágrimas.
- Obrigada, minha amiga! O teu sacrifício é grande, mas em vão; não posso aceitá-lo.
- Nem eu, o teu.
- Por que não?
- Por que não?
- Aceita.
- Aceita tu.
E deste modo cada uma delas tratava de ver quem seria mais generosa que a outra.
Respondendo desta maneira, atirado de uma para outra, recuando por sentimento de magnanimidade, Daniel foi quem perdeu no tal joguinho. De onde se prova o provérbio que é sempre mau correr a duas lebres.
Mas falta à nossa história o epílogo e moralidade.
***
Quinze dias depois das cenas que se acabam de narrar, Teresa escreveu a Júlia as seguintes linhas:
Minha Júlia
Sei que és minha amiga e partilharás a minha felicidade. Vou ser feliz.
A felicidade para nós outras reduz-se a muito pouco: encher o nosso coração e satisfazer a nossa fantasia.
Vou casar. Acabo de ser pedida. O meu noivo possui o meu coração, e posso dizê-lo, sem vaidade para mim, eu possuo o dele.
Perguntarás quem ele é. É natural. Não te lembras do Alfredo Soares? Pois é ele. Vi-o tantas vezes a frio; não sei por que comecei a amá-lo. Hoje se ele não me pedisse, creio que eu morreria. O amor é isto, Júlia: é problema que só a morte ou o casamento resolve.
Adeus, abençoa o futuro de tua amiga,
Teresa.
Júlia leu esta carta e respondeu as seguintes linhas:
Minha Teresa
Estimo do fundo d'alma a tua felicidade e faço votos para que sejas completamente feliz. O teu noivo merece-te; é um belo mancebo, bem educado e de boa posição.
Mas não quero que te entristeças. O céu nos fez amigas e irmãs, não podia dar-nos a felicidade por meio. Também me deparou alguma cousa; e, se não estou pedida, vou sê-lo esta tarde.
Não conheces o meu noivo; chama-se Carlos da Silveira, tem 25 anos, e é um coração de pomba. Ama-me como eu amo a ele.
Meu pai não se poderá opor a este casamento. O que resta é que ele seja feito no mesmo dia, para que, fazendo em igual hora a nossa ventura, ratifiquemos a sorte propícia e idêntica que o céu nos deparou.
Agradeçamos a Deus tanta felicidade. Até amanhã à noite. Tua,
Júlia.