Conto

O Que São As Moças

1866

O que são as moças *

Capítulo primeiro

Diz-se muita cousa feroz a respeito da amizade das mulheres. Ora, este conto tem por objeto a amizade de duas mulheres, tão firme, tão profunda, tão verdadeira, que as famílias respectivas, para melhor caracterizá-la, davam às duas a designação de Orestes e Pílades... de balão. Já se usava balão no tempo deste conto; isto é, as mulheres que haviam sido belas desde Eva até dez anos atrás sem o auxílio da crinolina, imaginaram que sem a crinolina já não podiam agradar.

Se outras razões não houvessem para suprimir a crinolina bastava a simples comparação entre... Mas não, leitoras, deste modo interrompo o romance e deito já em vosso espírito um germe de aversão pelo singelo escritor.

Tenho, pois, aqui a história de duas mulheres amigas e unidas como carne e unha. Razões de simpatia e de convivência longa trouxeram esta amizade, que fazia a felicidade das famílias e a admiração de toda a gente. Uma chamava-se Júlia e a outra, Teresa. Esta tinha cabelos louros e era clara; aquela tinha-os castanhos e era morena. Eram estas as diferenças; no mais, igualmente belas e igualmente vestidas. Vestidas, sim, porque quando não estavam juntas, a primeira que acordava mandava perguntar à outra que vestido pretendia trajar naquele dia, e era assim que ambas sempre andavam vestidas do mesmo modo.

Imagine-se depois o resto. Nenhuma delas ia ao teatro, ao baile, ao passeio, sem a outra. À mesa de algum jantar, fosse ou não de cerimônia, o que esta comia, comia aquela, às vezes sem consulta, por simples inspiração.

Esta conformidade, tão ostensiva como era, não alterava o fundo da amizade, como acontece geralmente. Eram verdadeiramente amigas. Quando uma adoecia, a outra não adoecia, como devia ser, mas isto pela simples razão de que a doente não recebia um caldo que não fosse das mãos da outra. Talvez que esta simples circunstância influísse na cura.

Ambas contavam a mesma idade, com diferença de dias. Tinham vinte anos.

Já estou a ouvir uma pergunta da parte das leitoras, pergunta que naturalmente dará ainda mais interesse ao meu conto, pela simples razão de que não responderei a ela.

A pergunta é esta. Aquelas duas almas, tão irmãs, tão conformes, namoravam acaso o mesmo indivíduo? A pergunta é natural e lógica, adivinho mesmo os terrores a que pode dar lugar o desenvolvimento dela; mas nada disso me demove do propósito de deixá-la sem resposta.

O mais que posso dizer é que até o momento em que a nossa história começa o coração de ambas não havia ainda palpitado por amor, cousa rara nos vinte anos, idade em que a maioria das mulheres já conservam vinte maços de cartas, correspondentes a outros tantos namorados inconstantes ou infelizes. Quero ao menos dotar as minhas heroínas destas duas singularidades.

Teresa é filha de um proprietário; Júlia é filha de um empregado público de ordem superior. Tinham as mães vivas e eram filhas únicas: não importa saber mais nada.

Teresa morava em Catumbi. Júlia, nos Cajueiros. Calculem daqui a maçada que levava o moleque encarregado de ir dos Cajueiros ao Catumbi ou vice-versa para saber de que maneira se vestiam as duas amigas, que, como disse, até nisto queriam manter a mais perfeita conformidade!

Estamos no mês de junho. Faz algum frio. Júlia, retirada para o seu gabinete de trabalho, ocupa-se em terminar um bordado que destina mandar a Teresa. Tem a porta e janela fechada por causa do frio. Trabalha com atividade para acabar o bordado naquele mesmo dia. Mas alguém vem interrompê-la: é uma mulatinha de dez anos, cria de casa, que acaba de receber uma carta mandada por Teresa.

Júlia abre a carta e lê o seguinte:

Minha querida Júlia.

Talvez esta noite lá vá. Tenho cousas muito importantes a contar-te. Que romance, minha amiga! É para duas horas, senão mais. Prepara-te. Até logo!

Tua do coração,

Teresa.

Júlia leu a carta, releu-a, e murmurou:

- Que singularidade!

Depois, escreveu as seguintes linhas em resposta a Teresa:

Vem, minha querida. Se não viesses ia eu! Há muito que te não vejo e quero ouvir-te e falar-te. Com que ouvidos te hei de ouvir, e com que palavras te hei de falar. Nem cinco horas. O melhor é vires dormir cá. Tua,

Júlia.

O leitor compreende facilmente que as cousas muito importantes de que falava Teresa não seria decerto nem a alça de fundos, nem a mudança de ministério, nem mesmo a criação de bancos. Aos vinte anos só há um banco: o coração; só há um ministério: o amor. As firmezas e as infidelidades são a alça e a baixa de fundos.

Daqui concebe o leitor, que é perspicaz, o seguinte: o negócio importante de Teresa é algum amor.

E dizendo isto o leitor prepara-se para ver despontar no horizonte daquele coração virgem a primeira alva de um sentimento puro e ardente. Não serei eu que lhe impeça o prazer, mas só lho consentirei nos posteriores capítulos; neste não. Dir-lhe-ei somente, para melhor orientá-lo, que a visita prometida por Teresa não teve lugar por causa de visitas inesperadas que foram à casa dela. A moça arrepelou-se, mas não era possível vencer aquele obstáculo. Vingou-se porém; não deu palavra durante a noite e deitou-se mais cedo que de costume.

II

Dous dias depois Teresa recebia de Júlia a seguinte carta:

Minha querida Teresa.

Quiseste contar-me não sei que acontecimento; dizes-me que preparas uma carta para isso. Enquanto espero a tua carta, escrevo-te eu uma para dar-te parte de um acontecimento meu.

Até nisto parecemos irmãs.

Ah! Se morássemos juntas seria a suprema felicidade; nós que juntas vivemos tão iguais.

Sabes que até hoje estou como a livre borboleta dos campos; ninguém tem feito bater o meu coração. Pois bem, chegou a minha vez.

Aí vais rir, minha cruelzinha, destas confidências; tu que não amas, vais zombar de mim, que me alistei nas bandeiras do amor.

Amo, sim, e não poderia deixar de fazê-lo, tão bela, tão interessante é a pessoa em questão.

Quem é? - perguntarás tu -. Será o Oliveira? O Tavares? O Luís Bento? Nenhum desses, descansa. Nem lhe sei o nome. Não é conhecido nosso. Vi-o apenas duas vezes, a primeira há oito dias, a segunda ontem. Verdadeiramente o amor descobriu-se ontem. Que belo rapaz! Se o visses ficavas a morrer por ele. Quisera fazer-te a pintura, mas não sei. É um belo rapaz, de olhos pretos, moreno, cabelos abundantes e da cor dos olhos; um par de bigodes grossos e pretos.

Tem passado aqui por nossa rua, às tardes entre as cinco e seis horas. Passa sempre a cavalo. Olha, Teresa, até o cavalo me parece adorável; cuido às vezes que está ensinado, porque ao passar em frente às nossas janelas, começa a saltar, como que me cumprimenta e agradece a simpatia que o dono me inspira.

Que tolices estou eu dizendo! Mas desculpa, minha Teresa, isto é amor. No amor sente-se muita cousa que não se sente de ordinário. Agora o sei.

Vais perguntar-me se ele gosta de mim, se repara em mim? Repara, posso afirmar-te; mas se gosta não sei. Porém é acaso possível que se repare muito em alguém sem gostar? A mim me parece que não. Talvez seja ilusão do meu coração e dos meus desejos.

Não sabes como isto me tem posto a cabeça tonta. Ontem mamãe reparou e me perguntou que tinha eu; respondi que nada, mas de tal modo que ela sacudiu a cabeça e disse baixinho: Ah! Amores, talvez!

Estive para abraçá-la, mas recuei e entrei para o quarto. Tenho medo que se saiba disto; entretanto, não creio que seja crime gostar de um moço bonito e bem educado, como ele parece ser. Que dizes tu?

Preciso dos teus conselhos. Tu és franca e és minha amiga verdadeira. Tuas palavras me servirão de muito. Se eu não tivesse uma amiga como tu, abafava com semelhante cousa.

Escreve-me, quero palavras tuas. Se quiseres o portador esperará; em todo o caso desejo que me respondas hoje.

Adeus, Teresa; até amanhã, porque eu e mamãe lá vamos. Escreve-me e sê sempre amiga da tua amiga,

Júlia.

III

Teresa a Júlia:

Minha Júlia.

Apaixonada! Que me dizes tu? Pois é possível que achasses afinal o noivo do teu coração? E assim, sem mais nem menos, como uma chuva de verão, caindo no meio de um dia claro e bonito?

Dou-te do fundo d´alma os meus parabéns.

E se os dou não é simplesmente porque eu deseje a tua felicidade, é porque igualmente devo receber parabéns de tua parte. Sabes por que motivo? É porque também amo! Também, sim... Anch´io sono pittore! - como diz o mano Gabriel.

Vê como a sorte protege nossos corações. Seria para doer que só uma de nós se apaixonasse e deixasse a outra no inteiro abandono. Mas não; Deus nos uniu e não quer que caminhemos isoladamente. Dá-nos as mãos a ambas e quer que sigamos de braço dado pela alameda do amor. Pois caminhemos, minha querida. Irás com o teu namorado e eu irei com o meu.

Ah! O meu é um belo rapaz, é a mesma figura que pintas na tua carta. Se lhe soubesse o nome mandava dizer-to aqui; mas não sei, porque mal o tenho visto passar às tardes a cavalo. Também a cavalo, como o teu; que felicidade! Belos cabelos e belos olhos. Que olhos, minha Júlia! Mais bonitos que os meus, posso jurar. Nunca vi olhos assim. Parecem mágicos; não sei por quê, mas não posso fitá-los.

Já o vi cinco vezes. A segunda estava tão embebido para mim que foi quase esbarrar contra um carro.

Fiquei tão vexada! As Avelares, que moram defronte, puseram-se a falar entre si. Parece que descobriram. A mim não me importa que se riam ou não. É de inveja, porque eu duvido que haja um rapaz de gosto que as namore, tão feias são. A mais velha parece uma lagosta; a mais moça tem cara de periquito; a do meio é periquito e lagosta ao mesmo tempo. Mano Gabriel chama aquela gente - a família impossível. E olha que é.

Mas aqui vou eu já longe do meu namorado e dos nossos amores, que vão par a par. É, como te disse, uma verdadeira proteção da sorte. Aceitemo-la, minha Júlia; amemos juntas, sejamos felizes à mesma hora, para que a mesma hora nos transfira para o céu.

Nada de ideias tristes.

Cá fico, minha querida Júlia, à tua espera.

Tua,

Teresa.

IV

Júlia a Teresa.

Até logo. Escrevi este bilhete só para dizer-te que ele passou aqui ontem à tarde. Estou cada vez mais apaixonada.

Adeus.

Júlia.

V

À noite do dia aprazado reuniram-se as duas amigas em Catumbi. Pelas cartas que aí ficam escritas imaginem os leitores do tom em que foi a conversa. A sós, no gabinete de Teresa, puderam aquelas almas abrir-se e confiar uma à outra todos os segredos e todas as esperanças. Talvez chegassem a chorar; lágrimas naquela idade são como a chuva da primavera. Caem para deixar o céu mais belo e a terra mais jubilosa.

Dizia Teresa:

- Tu não sabes, minha Júlia, como aquele moço me deixou o coração. Não penso senão nele. Já sonhei com ele duas vezes. A primeira foi um sonho de felicidade; a segunda foi um sonho terrível.

- Ah!

- Sonhei que o vi, no mesmo cavalo, rolar por um despenhadeiro abaixo. Dei um grito e acordei. Que sonho, meu Deus!

- Felizmente era sonho.

- É verdade.

- Mas ainda me não contaste o primeiro sonho.

- O primeiro...

- Nada de vergonha; o primeiro sonho foi um sonho de felicidade, não? Pois conta. Não sou eu também confidente de felicidades?

- Sonhei que estávamos em vésperas de casar. Ele, a sós comigo, no jardim do tio Mateus, jurava aos meus pés, pela centésima vez, que eu seria o último pensamento de sua vida. Acreditarás que chorei mesmo no sonho, e que quando acordei tinha os olhos úmidos?

- Acredito, sim.

- Foi este o primeiro sonho. E tu? Não tens sonhado? Conta-me tudo.

- Não tenho sonhado, não; mas posso dizer que vivo em perpétuo sonho. Trago presente na memória a figura dele, de noite e de dia. É o mesmo ou talvez melhor que sonhar.

- Também eu! - disse Teresa suspirando.

Júlia continuou:

- Olha, se eu fosse tão feliz que me casasse com ele, e se tu também te casasses com o teu, havíamos de morar juntas. Que vida feliz, hem?

- Oh! Não fales!

- O amor de um lado e a amizade do outro. Que felicidade!

Bateram à porta do gabinete.

Teresa perguntou quem era.

- Sou eu - respondeu uma voz masculina.

- É o mano Gabriel - disse ela voltando-se para Júlia.

E foi abrir a porta.

Gabriel apareceu à porta. Era um rapaz simpático, muito parecido com a irmã. Tinha um ar de franqueza e de galhofa, sem excluir a delicadeza das maneiras, que o fazia querido das moças.

- Conversavam? Queria saber em quê. Imagino que não era sobre as sandálias de São Francisco de Paula.

- Cala a boca, herege! - disse Teresa.

- É heresia, sei, não precisa pôr mais na carta. Então sobre que conversavam as meninas?

- Quer saber? - disse Júlia -. Sobre os indiscretos.

- Passam em revista a humanidade. Pois eu aposto que não era sobre os indiscretos que falavam. Era talvez sobre amores.

- Apre lá, mano!

- Isso que tem entre moças?... A senhora minha irmã anda agora de namoro, sabe, D. Júlia?

As duas moças trocaram um olhar. Teriam sido ouvidas? Gabriel olhava para a irmã com ar de quem tinha prazer em ver aquela confusão. Teresa, depois de um minuto de silêncio, aventurou estas palavras:

- Quem lhe meteu estas cousas na cabeça?

- Ah! Eu adivinho.

- Pois enganou-se na adivinhação; mas se fosse verdade?...

- Se fosse verdade era uma cousa muito natural, e por isso não sei por que motivo não havia eu de saber as cousas do teu coração.

- Deus me livre!

- Ora essa! - disse Gabriel sentando-se num puff -, por que não havia eu de saber? Eu compreendo que D. Júlia não me conte os seus amores. Mas tu...

- Meus amores? - disse Júlia.

- Sim, senhora, sim, os seus amores. Aposto que também não os tem?

- Não, tenho, é verdade.

- Nada, a mim é que não engana; sei que os tem, não só a senhora, como Teresa; e eu, na qualidade de irmão de uma e criado de outra, hei de saber de tudo... É a minha resolução.

- Tu ouviste? - perguntou Teresa a Gabriel.

- Tudo.

- Ah! Que curioso! - exclamaram as duas.

Gabriel ria-se para ambas e divertia-se interiormente com o embaraço em que ambas ficaram. As duas, não podendo suportar o olhar do moço, caíram nos braços uma da outra.

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