Romance

Memórias Póstumas de Brás Cubas

1881

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memórias póstumas de Brás Cubas é o quinto romance de Machado de Assis e significou uma verdadeira revolução não só na carreira do autor, que nessa época já havia publicado quatro romances e dois livros de contos, além de três de poesia e de exercer intensa atividade jornalística (crônicas e ensaios críticos), mas também na literatura brasileira, que, com esse livro, alcança novo patamar de qualidade. Deixou perplexos leitores e críticos, que tiveram dificuldade para entender o romance, inovador em todos os aspectos. Capistrano de Abreu chegou a perguntar, em carta a Machado, se as Memórias póstumas seriam um romance.

De fato, a partir do título, que remete à obra Mémoires d'outre-tombe (Memórias de além-túmulo), do escritor francês René de Chateaubriand, o livro anuncia uma inverossimilhança: uma autobiografia não apenas publicada, mas escrita postumamente. No entanto, uma vez superado esse susto inicial, o enredo do romance se desenvolve de maneira bastante verossímil, acompanhando a vida de um membro da elite socio-econômica do Rio de Janeiro, entre 1805, ano de seu nascimento, e 1869, quando morre de uma pneumonia mal curada. Inteligente e matreira, a narrativa faz importante denúncia do comportamento ambivalente das classes dominantes no Brasil monárquico, que têm os olhos voltados para as conquistas burguesas e liberais da Europa, mas, ao mesmo tempo, vivem com os pés fincados num regime escravocrata - como bem demonstrou o crítico Roberto Schwarz em seu livro Um mestre na periferia do capitalismo (1990). É, ao mesmo tempo, um romance que traz à tona questões absolutamente universais (vaidade, hipocrisia, ambição, ciúme, deslealdade...), revelando a arte machadiana de penetrar a alma humana, como não o fizera até então (e mesmo, talvez, não o faria desde então) nenhum outro autor de nossa literatura.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, na Revista Brasileira entre março e dezembro de 1880, ganhando forma de livro em 1881. Apesar da dificuldade (afinal, era uma obra que fugia aos padrões de romance então vigentes) e dos obstáculos que propunha à leitura fluente, exigindo, ao contrário, bastante reflexão do leitor, o livro teve grande sucesso e, ainda em vida de Machado de Assis, conheceu mais duas edições em volume depois de 1881: em 1896 e em 1899.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1881), também existente na biblioteca da Fundação.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009; no entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "subtileza"/"sutileza", "conjectura"/"conjetura", "dous"/"dois"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Cumpriu, ainda nesses casos, manter o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das instabilidades linguísticas da época. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o uso de "talvez" com verbos conjugados no indicativo ("Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal."); o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado ("meia doce e meia triste"); o de "parêntesis" em vez de "parênteses"; e o uso da regência duplamente indireta em "Custou-lhe muito a aceitar a casa".

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação, de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("adoeci logo, e não me tratei"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas"). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista.") e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história, uma eterna loureira"), o que nem sempre é o procedimento autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, respeitou-se o uso do autor, que os emprega quase sempre por extenso, deixando-os em algarismos apenas em circunstâncias especiais, como no capítulo intitulado, precisamente, "13". Mantiveram-se em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

O fato de ter sido publicado em capítulos na Revista Brasileira em 1880 e logo no ano seguinte ter sido estampado em livro conduz a duas diferentes atitudes com respeito à numeração das edições: para alguns (Comissão Machado de Assis, Adriano da Gama Kury), que contam como primeira a edição no periódico, a de 1899 é a quarta; para outros (Afrânio Coutinho, José Aguilar Editora) que consideram a de 1881 como a primeira edição, a de 1899 é a terceira. Seguiu-se aqui a lição da Comissão Machado de Assis.

Acerca das notas, "Deus" foi marcado como link apenas quando a referência era especificamente a Deus-Pai ou Filho, da tradição religiosa ocidental em geral e da católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "Deus me perdoe", ou "Vá com Deus".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

julho de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

XCVI

A CARTA ANÔNIMA

Senti tocar-me no ombro; era Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos, inconsoláveis. Indaguei de Virgília, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a mão trêmula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre mim; mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim, Virgília contou-me tudo, daí a dias na Gamboa.

O marido mostrou-lhe a carta, logo que ela se restabeleceu. Era anônima e denunciava-nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava-se a precavê-lo contra a minha intimidade, e acrescentava que a suspeita era pública. Virgília leu a carta e disse com indignação que era uma calúnia infame.

- Calúnia? - perguntou Lobo Neves.

- Infame.

O marido respirou; mas, tornando à carta, parece que cada palavra dela lhe fazia com o dedo um sinal negativo, cada letra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião, a fitá-lo sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca invisível lhe repetiu ao ouvido as chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgília compreendeu que estava salva; mostrou-se irritada com a insistência, jurou que da minha parte só ouvira palavras de gracejo e cortesia. A carta havia de ser de algum namorado sem ventura. E citou alguns - um que a galanteara francamente, durante três semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com circunstâncias, estudando os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para não dar margem à calúnia, tratar-me-ia de maneira que eu não voltaria lá.

Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo de dissimulação que era preciso empregar de ora em diante, até afastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranquilidade moral de Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades, e até de remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a cabeça, porque eu olhava então para o soalho, e disse-me com certa amargura:

- Você não merece os sacrifícios que lhe faço.

Não lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e terror daria à nossa situação o sabor cáustico dos primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível que ela chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não lhe disse nada. Ela batia, nervosamente com a ponta do pé no chão; aproximei-me e beijei-a na testa. Virgília recuou, como se fosse um beijo de defunto.

XCVII

ENTRE A BOCA E A TESTA

Sinto que o leitor estremeceu - ou devia estremecer. Naturalmente a última palavra sugeriu-lhe três ou quatro reflexões. Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duas pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contacto de uma boca de cadáver. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita cousa - a contração de um ressentimento - a ruga da desconfiança - ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade...

XCVIII

SUPRIMIDO

Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A carta anônima restituía à nossa aventura o sal do mistério e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom que Virgília não perdesse naquela crise a posse de si mesma. De noite fui ao Teatro de São Pedro; representava-se uma grande peça, em que a Estela arrancava lágrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes; vejo em um deles Damasceno e a família. Trajava a filha com outra elegância e certo apuro, cousa difícil de explicar, porque o pai ganhava apenas o necessário para endividar-se; e daí, talvez fosse por isso mesmo.

No intervalo fui visitá-los. Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher, com muitos sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou mais os olhos de mim. Parecia-me agora mais bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao polido das formas terrenas: - expressão vaga, e condigna de um capítulo em que tudo há de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez habitual, dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário, negaceando a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso, que nos deu Otelo e os paquetes transatlânticos!

Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, l'ange et la bête, com a diferença que o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam bem juntinhas - l'ange, que dizia algumas cousas do céu - e la bête, que... Não; decididamente suprimo este capítulo.

XCIX

NA PLATEIA

Na plateia achei Lobo Neves, de conversa com alguns amigos, falamos por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervalo seguinte, prestes a levantar o pano, encontramo-nos num dos corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim, com muita afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos muito, principalmente ele, que parecia o mais tranquilo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversação para assuntos gerais, expansivo, quase risonho. Adivinhe quem quiser a causa da diferença; eu fujo ao Damasceno que me espreita ali da porta do camarote.

Não ouvi nada do seguinte ato, nem as palavras dos atores, nem as palmas do público. Reclinado na cadeira, apanhava de memória os retalhos da conversação do Lobo Neves, refazia as maneiras dele e concluía que era muito melhor a nova situação. Bastava-nos a Gamboa. A frequência da outra casa aguçaria as invejas. Rigorosamente podíamos dispensar-nos de falar todos os dias; até era melhor, metia a saudade de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor de paróquia. Urgia fazer alguma cousa, ainda por amor de Virgília, que havia de ufanar-se quando visse luzir o meu nome... Creio que nessa ocasião houve grandes aplausos, mas não juro; eu pensava em outra cousa.

Multidão, cujo amor cobicei até à morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Ésquilo fazia aos seus verdugos. Ah! Tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua indiferença, ou da tua agitação? Frágeis cadeias, amiga minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar cousa é ir considerar no ermo. O voluptuoso, o esquisito é insular-se o homem no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado, inaccessíveI, ausente. O mais que podem dizer, quando ele torna a si - isto é, quando torna aos outros -, é que baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse desvão luminoso e recatado do cérebro, que outra cousa é senão a afirmação desdenhosa da nossa liberdade espiritual? Vive Deus! Eis um bom fecho de capítulo.

C

O CASO PROVÁVEL

Se esse mundo não fosse uma região de espíritos desatentos, era escusado lembrar ao leitor que eu só afirmo certas leis, quando as possuo deveras; em relação a outras restrinjo-me à admissão da probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitui o presente capítulo, cuja leitura recomendo a todas as pessoas que amam o estudo dos fenômenos sociais. Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da vida pública e os da vida particular uma certa ação recíproca, regular, e talvez periódica - ou para usar de uma imagem - há alguma cousa semelhante às marés da praia do Flamengo e de outras igualmente maravilhosas. Com efeito, quando a onda investe a praia, alaga-a muitos palmos adentro; mas essa mesma água torna ao mar, com variável força, e vai engrossar a onda que há de vir, e que terá de tornar como a primeira. Esta é a imagem; vejamos a aplicação.

Deixei dito noutra página que o Lobo Neves, nomeado presidente de província, recusou a nomeação por motivo da data do decreto, que era 13; ato grave, cuja consequência foi separar do ministério o marido de Virgília. Assim, o fato particular da ojeriza de um número produziu o fenômeno da dissidência política. Resta ver como, tempos depois, um ato político determinou na vida particular uma cessação de movimento. Não convindo ao método deste livro descrever imediatamente esse outro fenômeno, limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro meses depois de nosso encontro no teatro, reconciliou-se com o ministério; fato que o leitor não deve perder de vista, se quiser penetrar a subtileza do meu pensamento.

CI

A REVOLUÇAO DÁLMATA

Foi Virgília quem me deu notícia da viravolta política do marido, certa manhã de outubro, entre onze e meio-dia; falou-me de reuniões, de conversas, de um discurso...

- De maneira, que desta vez fica você baronesa - interrompi eu.

Ela derreou os cantos da boca, e moveu a cabeça a um e outro lado; mas esse gesto de indiferença era desmentido por alguma cousa menos definível, menos clara, uma expressão de gosto e de esperança. Não sei por quê, imaginei que a carta imperial da nomeação podia atraí-la à virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido. Que ela amava cordialmente a nobreza. Um dos maiores desgostos de nossa vida foi o aparecimento de certo pelintra de legação - da legação da Dalmácia, suponhamos -, o conde B. V., que a namorou durante três meses. Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça de Virgília, que, além do mais, possuía a vocação diplomática. Não chego a alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmácia uma revolução, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi sangrenta a revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabeças; toda a gente fremia de indignação e piedade... Eu não, eu abençoava interiormente essa tragédia, que me tirara uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmácia era tão longe!

CII

DE REPOUSO

Mas este mesmo homem, que se alegrou com a partida do outro, praticou daí a tempos... Não, não hei de contá-lo nesta página; fique esse capítulo para repouso do meu vexame: uma ação grosseira, baixa, sem explicação possível... Repito, não contarei o caso nesta página.

CIII

DISTRAÇÃO

- Não, senhor doutor, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.

Tinha razão D. Plácida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde ao lugar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgília tinha ido embora. Dona Plácida contou-me que ela esperara muito, que se irritara, que chorara, que jurara votar-me ao desprezo, e outras mais cousas que a nossa caseira dizia com lágrimas na voz, pedindo-me que não desamparasse Iaiá, que era ser muito injusto com uma moça que me sacrificara tudo. Expliquei-lhe então que um equívoco... E não era, cuido que foi simples distração. Um dito, uma conversa, uma anedota, qualquer cousa; simples distração.

Coitada de D. Plácida! Estava aflita deveras. Andava de um lado para outro, abanando a cabeça, suspirando com estrépito, espiando pela rótula. Coitada de D. Plácida! Com que arte conchegava as roupas, bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! Que imaginação fértil em tornar as horas mais aprazíveis e breves! Flores, doces - os bons doces de outros dias - e muito riso, muito afago, riso e afago que cresciam com o tempo, como se ela quisesse fixar a nossa aventura, ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a nossa confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro referia suspiros e saudades que não presenciara; nada, nem a calúnia, porque uma vez chegou a atribuir-me uma paixão nova. - Você sabe que não posso gostar de outra mulher - foi a minha resposta, quando Virgília me falou em semelhante cousa. E esta só palavra, sem nenhum protesto ou admoestação, dissipou o aleive de D. Plácida, que ficou triste.

- Está bem - disse-lhe eu, depois de um quarto de hora -; Virgília há de reconhecer que não tive culpa nenhuma... Quer você levar-lhe uma carta agora mesmo?

- Ela há de estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte de ninguém; mas, se o senhor doutor algum dia chegar a casar com Iaiá, então sim, é que há de ver o anjo que ela é!

Lembra-me que desviei o rosto e baixei os olhos ao chão. Recomendo este gesto às pessoas que não tiverem uma palavra pronta para responder, ou ainda às que recearem encarar a pupila de outros olhos. Em tais casos, alguns preferem recitar uma oitava dos Lusíadas, outros adotam o recurso de assobiar a Norma; eu atenho-me ao gesto indicado; é mais simples, exige menos esforço.

Três dias depois, estava tudo explicado. Suponho que Virgília ficou um pouco admirada, quando lhe pedi desculpas das lágrimas que derramara naquela triste ocasião. Nem me lembra se interiormente as atribuí a D. Plácida. Com efeito, podia acontecer que D. Plácida chorasse, ao vê-la desapontada, e, por um fenômeno da visão, as lágrimas que tinha nos próprios olhos lhe parecessem cair dos olhos de Virgília. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas não perdoado, e menos ainda esquecido. Virgília dizia-me uma porção de cousas duras, ameaçava-me com a separação, enfim louvava o marido. Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim, delicado, um primor de cortesia e afeição; é o que ela dizia, enquanto eu, sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão, onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre mosca! Pobre formiga!

- Mas você não diz nada, nada? - perguntou Virgília, parando diante de mim.

- Que hei de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que hei de dizer? Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se aborrece, que quer acabar...

- Justamente!

Foi dali pôr o chapéu, com a mão trêmula, raivosa...

- Adeus, D. Plácida - bradou ela para dentro.

Depois foi até à porta, correu o fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura.

- Está bom, está bom - disse-lhe.

Virgília ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe que ficasse, que esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no canapé. Sentei-me ao pé dela, disse-lhe muitas cousas meigas, outras humildes, outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios chegaram à distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um brinco de Virgília, que eu inclinei-me a apanhá-lo, e que a mosca de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na palma da mão aquele casal de mortificados; calculei toda a distância que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que interesse podia haver num episódio tão mofino. Se concluis daí que eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília, a fim de separar os dous insetos; mas a mosca farejou a minha intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! Pobre formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escritura.

CIV

ERA ELE!

Restituí o grampo a Virgília, que o repregou nos cabelos, e preparou-se para sair. Era tarde; tinham dado três horas. Tudo estava esquecido e perdoado. Dona Plácida, que espreitava a ocasião idônea para a saída, fecha subitamente a janela e exclama:

- Virgem Nossa Senhora! Aí vem o marido de Iaiá!

O momento de terror foi curto, mas completo. Virgília fez-se da cor das rendas do vestido, correu até a porta da alcova; D. Plácida, que fechara a rótula, queria fechar também a porta de dentro; eu dispus-me a esperar o Lobo Neves. Esse curto instante passou. Virgília tornou a si, empurrou-me para a alcova, disse a D. Plácida que voltasse à janela; a confidente obedeceu.

Era ele. Dona Plácida abriu-lhe a porta com muitas exclamações de pasmo:

- O senhor por aqui! Honrando a casa de sua velha! Entre, faça favor. Adivinhe quem está cá... Não tem que adivinhar, não veio por outra cousa... Apareça, Iaiá.

Virgília, que estava a um canto, atirou-se ao marido. Eu espreitava-os pelo buraco da fechadura. O Lobo Neves entrou lentamente, pálido, frio, quieto, sem explosão, sem arrebatamento, e circulou um olhar em volta da sala.

- Que é isto? - exclamou Virgília -. Você por aqui?

- Ia passando, vi D. Plácida à janela, e vim cumprimentá-la.

- Muito obrigada - acudiu esta -. E digam que as velhas não valem alguma cousa... Olhai, gentes! Iaiá parece estar com ciúmes - e acariciando-a muito -: este anjinho é que nunca se esqueceu da velha Plácida. Coitadinha! É mesmo a cara da mãe... Sente-se, senhor doutor...

- Não me demoro.

- Você vai para casa? - disse Virgília -. Vamos juntos.

- Vou.

- Dê cá o meu chapéu, D. Plácida.

- Está aqui.

Dona Plácida foi buscar um espelho, abriu-o diante dela. Virgília punha o chapéu, atava as fitas, arranjava os cabelos, falando ao marido, que não respondia nada. A nossa boa velha tagarelava demais; era um modo de disfarçar as tremuras do corpo. Virgília, dominado o primeiro instante, tornara à posse de si mesma.

- Pronta! - disse ela -. Adeus, D. Plácida; não se esqueça de aparecer, ouviu?

A outra prometeu que sim, e abriu-lhes a porta.

A+
A-