Memórias Póstumas de Brás Cubas
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memórias póstumas de Brás Cubas é o quinto romance de Machado de Assis e significou uma verdadeira revolução não só na carreira do autor, que nessa época já havia publicado quatro romances e dois livros de contos, além de três de poesia e de exercer intensa atividade jornalística (crônicas e ensaios críticos), mas também na literatura brasileira, que, com esse livro, alcança novo patamar de qualidade. Deixou perplexos leitores e críticos, que tiveram dificuldade para entender o romance, inovador em todos os aspectos. Capistrano de Abreu chegou a perguntar, em carta a Machado, se as Memórias póstumas seriam um romance.
De fato, a partir do título, que remete à obra Mémoires d'outre-tombe (Memórias de além-túmulo), do escritor francês René de Chateaubriand, o livro anuncia uma inverossimilhança: uma autobiografia não apenas publicada, mas escrita postumamente. No entanto, uma vez superado esse susto inicial, o enredo do romance se desenvolve de maneira bastante verossímil, acompanhando a vida de um membro da elite socio-econômica do Rio de Janeiro, entre 1805, ano de seu nascimento, e 1869, quando morre de uma pneumonia mal curada. Inteligente e matreira, a narrativa faz importante denúncia do comportamento ambivalente das classes dominantes no Brasil monárquico, que têm os olhos voltados para as conquistas burguesas e liberais da Europa, mas, ao mesmo tempo, vivem com os pés fincados num regime escravocrata - como bem demonstrou o crítico Roberto Schwarz em seu livro Um mestre na periferia do capitalismo (1990). É, ao mesmo tempo, um romance que traz à tona questões absolutamente universais (vaidade, hipocrisia, ambição, ciúme, deslealdade...), revelando a arte machadiana de penetrar a alma humana, como não o fizera até então (e mesmo, talvez, não o faria desde então) nenhum outro autor de nossa literatura.
Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, na Revista Brasileira entre março e dezembro de 1880, ganhando forma de livro em 1881. Apesar da dificuldade (afinal, era uma obra que fugia aos padrões de romance então vigentes) e dos obstáculos que propunha à leitura fluente, exigindo, ao contrário, bastante reflexão do leitor, o livro teve grande sucesso e, ainda em vida de Machado de Assis, conheceu mais duas edições em volume depois de 1881: em 1896 e em 1899.
O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1881), também existente na biblioteca da Fundação.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009; no entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "subtileza"/"sutileza", "conjectura"/"conjetura", "dous"/"dois"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Cumpriu, ainda nesses casos, manter o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das instabilidades linguísticas da época. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o uso de "talvez" com verbos conjugados no indicativo ("Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal."); o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado ("meia doce e meia triste"); o de "parêntesis" em vez de "parênteses"; e o uso da regência duplamente indireta em "Custou-lhe muito a aceitar a casa".
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação, de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("adoeci logo, e não me tratei"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas"). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista.") e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história, uma eterna loureira"), o que nem sempre é o procedimento autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, respeitou-se o uso do autor, que os emprega quase sempre por extenso, deixando-os em algarismos apenas em circunstâncias especiais, como no capítulo intitulado, precisamente, "13". Mantiveram-se em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
O fato de ter sido publicado em capítulos na Revista Brasileira em 1880 e logo no ano seguinte ter sido estampado em livro conduz a duas diferentes atitudes com respeito à numeração das edições: para alguns (Comissão Machado de Assis, Adriano da Gama Kury), que contam como primeira a edição no periódico, a de 1899 é a quarta; para outros (Afrânio Coutinho, José Aguilar Editora) que consideram a de 1881 como a primeira edição, a de 1899 é a terceira. Seguiu-se aqui a lição da Comissão Machado de Assis.
Acerca das notas, "Deus" foi marcado como link apenas quando a referência era especificamente a Deus-Pai ou Filho, da tradição religiosa ocidental em geral e da católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "Deus me perdoe", ou "Vá com Deus".
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XCI
CARTA EXTRAORDINÁRIA
Por esse tempo recebi uma carta extraordinária, acompanhada de um objeto não menos extraordinário. Eis o que a carta dizia:
Meu caro Brás Cubas,
Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfação de restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmo, porém outro, não digo superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous, monseigneur? – como dizia Fígaro – c'est la misère. Muitas cousas se deram depois do nosso encontro; irei contá-las pelo miúdo, se me não fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma famosa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de São Francisco; finalmente, almoço.
Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estudo, um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das cousas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Sêneca, cujo estoicismo era um verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente espantoso esse meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das cousas. Minha primeira ideia revelava uma grande enfatuação; era chamar-lhe borbismo, de Borba; denominação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma cousa há que possa fazer-me esquecer as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na minha mão, essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas. Saudades do
Velho amigo
JOAQUIM BORBA DOS SANTOS.
Li esta carta sem entendê-la. Vinha com ela uma boceta contendo um bonito relógio com as minhas iniciais gravadas, e esta frase: Lembrança do velho Quincas. Voltei à carta, reli-a com pausa, com atenção. A restituição do relógio excluía toda a ideia de burla; a lucidez, a serenidade, a convicção - um pouco jactanciosa, é certo - pareciam excluir a suspeita de insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há cousas que se não podem reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. Guardei a carta e o relógio, e esperei a filosofia.
XCII
UM HOMEM EXTRAORDINÁRIO
Já agora acabo com as cousas extraordinárias. Vinha de guardar a carta e o relógio, quando me procurou um homem magro e meão, com um bilhete do Cotrim, convidando-me para jantar. O portador era casado com uma irmã do Cotrim, chegara poucos dias antes do Norte, chamava-se Damasceno, e fizera a revolução de 1831. Foi ele mesmo que me disse isto, no espaço de cinco minutos. Saíra do Rio de Janeiro, por desacordo com o Regente, que era um asno, pouco menos asno do que os ministros que serviram com ele. De resto, a revolução estava outra vez às portas. Neste ponto, conquanto trouxesse as ideias políticas um pouco baralhadas, consegui organizar e formular o governo de suas preferências: era um despotismo temperado, não por cantigas - como dizem alhures -, mas por penachos da Guarda Nacional. Só não pude alcançar se ele queria o despotismo de um, de três, de trinta ou de trezentos. Opinava por várias cousas, entre outras, o desenvolvimento do tráfico dos africanos e a expulsão dos ingleses. Gostava muito de teatro; logo que chegou foi ao Teatro de São Pedro, onde viu um drama soberbo, a Maria Joana, e uma comédia muito interessante, Kettly, ou a volta à Suíça. Também gostara muito da Deperini, na Safo, ou na Ana Bolena, não se lembrava bem. Mas a Candiani! Sim, senhor, era papa-fina. Agora queria ouvir o Ernani, que a filha dele cantava em casa, ao piano: Ernani, Ernani, involami... - E dizia isto levantando-se e cantarolando a meia voz. No Norte essas cousas chegavam como um eco. A filha morria por ouvir todas as óperas. Tinha uma voz muito mimosa, a filha. E gosto, muito gosto. Ah! Ele estava ansioso por voltar ao Rio de Janeiro. Já havia corrido a cidade toda, com umas saudades... Palavra! Em alguns lugares teve vontade de chorar. Mas não embarcaria mais. Enjoara muito a bordo, como todos os outros passageiros, exceto um inglês... Que os levasse o diabo, os ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barra fora. Que é que a Inglaterra podia fazer-nos? Se ele encontrasse algumas pessoas de boa vontade, era obra de uma noite a expulsão de tais godemes... Graças a Deus, tinha patriotismo - e batia no peito -, o que não admirava porque era de família, descendia de um antigo capitão-mor muito patriota. Sim, não era nenhum pé-rapado. Viesse a ocasião, e ele havia de mostrar de que pau era a canoa... Mas fazia-se tarde, ia dizer que eu não faltaria ao jantar, e lá me esperava para maior palestra. Levei-o até a porta da sala; ele parou dizendo que simpatizava muito comigo. Quando casara, estava eu na Europa. Conheceu meu pai, um homem às direitas, com quem dançara num célebre baile da Praia Grande... Coisas! Coisas! Falaria depois, fazia-se tarde, tinha de ir levar a resposta ao Cotrim. Saiu; fechei-lhe a porta...
XCIII
O JANTAR
Que suplício que foi o jantar! Felizmente, Sabina fez-me sentar ao pé da filha do Damasceno, uma D. Eulália, ou mais familiarmente Nhã-loló, moça graciosa, um tanto acanhada a princípio, mas só a princípio. Faltava-lhe elegância, mas compensava-a com os olhos, que eram soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de mim, exceto quando desciam ao prato; mas Nhã-loló comia tão pouco, que quase não olhava para o prato. De noite cantou; a voz era como dizia o pai, "muito mimosa". Não obstante, esquivei-me. Sabina veio até à porta, e perguntou-me que tal achara a filha do Damasceno.
- Assim, assim.
- Muito simpática, não é? - acudiu ela -; falta-lhe um pouco mais de corte. Mas que coração! É uma pérola. Bem boa noiva para você.
- Não gosto de pérolas.
- Casmurro! Para quando é que você se guarda? Para quando estiver a cair de maduro, já sei. Pois, meu rico, quer você queira quer não, há de casar com Nhã-loló.
E dizia isto a bater-me na face com os dedos, meiga como uma pomba, e ao mesmo tempo intimativa e resoluta. Santo Deus! Seria esse o motivo da reconciliação? Fiquei um pouco desconsolado com a ideia, mas uma voz misteriosa chamava-me à casa do Lobo Neves; disse adeus a Sabina e às suas ameaças.
XCIV
A CAUSA SECRETA
- Como está a minha querida mamãe?
A esta palavra, Virgília amuou-se, como sempre. Estava ao canto de uma janela, sozinha, a olhar para a lua, e recebeu-me alegremente; mas quando lhe falei no nosso filho amuou-se. Não gostava de semelhante alusão, aborreciam-lhe as minhas antecipadas carícias paternais. Eu, para quem ela era já uma pessoa sagrada, uma âmbula divina, deixava-a estar quieta. Supus a princípio que o embrião, esse perfil do incógnito, projetando-se na nossa aventura, lhe restituíra a consciência do mal. Enganava-me. Nunca Virgília me parecera mais expansiva, mais sem reservas, menos preocupada dos outros e do marido. Não eram remorsos. Imaginei também que a concepção seria um puro invento, um modo de prender-me a ela, recurso sem longa eficácia, que talvez começava de oprimi-la. Não era absurda esta hipótese; a minha doce Virgília mentia às vezes, com tanta graça!
Naquela noite descobri a causa verdadeira. Era medo do parto e vexame da gravidez. Padecera muito quando lhe nasceu o primeiro filho; e essa hora, feita de minutos de vida e minutos de morte, dava-lhe já imaginariamente os calafrios do patíbulo. Quanto ao vexame, complicava-se ainda da forçada privação de certos hábitos da vida elegante. Com certeza, era isso mesmo; dei-lho a entender, repreendendo-a, um pouco em nome dos meus direitos de pai. Virgília fitou-me; em seguida desviou os olhos e sorriu de um jeito incrédulo.
XCV
FLORES DE ANTANHO
Onde estão elas, as flores de antanho? Uma tarde, após algumas semanas de gestação, esboroou-se todo o edifício das minhas quimeras paternais. Foi-se o embrião, naquele ponto em que se não distingue Laplace de uma tartaruga. Tive a notícia por boca do Lobo Neves, que me deixou na sala e acompanhou o médico à alcova da frustrada mãe. Eu encostei-me à janela, a olhar para a chácara onde verdejavam as laranjeiras sem flores. Onde iam elas, as flores de antanho?
XCVI
A CARTA ANÔNIMA
Senti tocar-me no ombro; era Lobo Neves. Encaramo-nos alguns instantes, mudos, inconsoláveis. Indaguei de Virgília, depois ficamos a conversar uma meia hora. No fim desse tempo, vieram trazer-lhe uma carta; ele leu-a, empalideceu muito, e fechou-a com a mão trêmula. Creio que lhe vi fazer um gesto, como se quisesse atirar-se sobre mim; mas não me lembra bem. O que me lembra claramente é que durante os dias seguintes recebeu-me frio e taciturno. Enfim, Virgília contou-me tudo, daí a dias na Gamboa.
O marido mostrou-lhe a carta, logo que ela se restabeleceu. Era anônima e denunciava-nos. Não dizia tudo; não falava, por exemplo, das nossas entrevistas externas; limitava-se a precavê-lo contra a minha intimidade, e acrescentava que a suspeita era pública. Virgília leu a carta e disse com indignação que era uma calúnia infame.
- Calúnia? - perguntou Lobo Neves.
- Infame.
O marido respirou; mas, tornando à carta, parece que cada palavra dela lhe fazia com o dedo um sinal negativo, cada letra bradava contra a indignação da mulher. Esse homem, aliás intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião, a fitá-lo sarcasticamente, com um ar de pulha; talvez uma boca invisível lhe repetiu ao ouvido as chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque tudo lhe perdoaria. Virgília compreendeu que estava salva; mostrou-se irritada com a insistência, jurou que da minha parte só ouvira palavras de gracejo e cortesia. A carta havia de ser de algum namorado sem ventura. E citou alguns - um que a galanteara francamente, durante três semanas, outro que lhe escrevera uma carta, e ainda outros e outros. Citava-os pelo nome, com circunstâncias, estudando os olhos do marido, e concluiu dizendo que, para não dar margem à calúnia, tratar-me-ia de maneira que eu não voltaria lá.
Ouvi tudo isto um pouco turbado, não pelo acréscimo de dissimulação que era preciso empregar de ora em diante, até afastar-me inteiramente da casa do Lobo Neves, mas pela tranquilidade moral de Virgília, pela falta de comoção, de susto, de saudades, e até de remorsos. Virgília notou a minha preocupação, levantou-me a cabeça, porque eu olhava então para o soalho, e disse-me com certa amargura:
- Você não merece os sacrifícios que lhe faço.
Não lhe disse nada; era ocioso ponderar-lhe que um pouco de desespero e terror daria à nossa situação o sabor cáustico dos primeiros dias; mas se lho dissesse, não é impossível que ela chegasse lenta e artificiosamente até esse pouco de desespero e terror. Não lhe disse nada. Ela batia, nervosamente com a ponta do pé no chão; aproximei-me e beijei-a na testa. Virgília recuou, como se fosse um beijo de defunto.
XCVII
ENTRE A BOCA E A TESTA
Sinto que o leitor estremeceu - ou devia estremecer. Naturalmente a última palavra sugeriu-lhe três ou quatro reflexões. Veja bem o quadro: numa casinha da Gamboa, duas pessoas que se amam há muito tempo, uma inclinada para a outra, a dar-lhe um beijo na testa, e a outra a recuar, como se sentisse o contacto de uma boca de cadáver. Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa, antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita cousa - a contração de um ressentimento - a ruga da desconfiança - ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade...
XCVIII
SUPRIMIDO
Separamo-nos alegremente. Jantei reconciliado com a situação. A carta anônima restituía à nossa aventura o sal do mistério e a pimenta do perigo; e afinal foi bem bom que Virgília não perdesse naquela crise a posse de si mesma. De noite fui ao Teatro de São Pedro; representava-se uma grande peça, em que a Estela arrancava lágrimas. Entro; corro os olhos pelos camarotes; vejo em um deles Damasceno e a família. Trajava a filha com outra elegância e certo apuro, cousa difícil de explicar, porque o pai ganhava apenas o necessário para endividar-se; e daí, talvez fosse por isso mesmo.
No intervalo fui visitá-los. Damasceno recebeu-me com muitas palavras, a mulher, com muitos sorrisos. Quanto a Nhã-loló, não tirou mais os olhos de mim. Parecia-me agora mais bonita que no dia do jantar. Achei-lhe certa suavidade etérea casada ao polido das formas terrenas: - expressão vaga, e condigna de um capítulo em que tudo há de ser vago. Realmente, não sei como lhes diga que não me senti mal, ao pé da moça, trajando garridamente um vestido fino, um vestido que me dava cócegas de Tartufo. Ao contemplá-lo, cobrindo casta e redondamente o joelho, foi que eu fiz uma descoberta subtil, a saber, que a natureza previu a vestidura humana, condição necessária ao desenvolvimento da nossa espécie. A nudez habitual, dada a multiplicação das obras e dos cuidados do indivíduo, tenderia a embotar os sentidos e a retardar os sexos, ao passo que o vestuário, negaceando a natureza, aguça e atrai as vontades, ativa-as, reprodu-las, e conseguintemente faz andar a civilização. Abençoado uso, que nos deu Otelo e os paquetes transatlânticos!
Estou com vontade de suprimir este capítulo. O declive é perigoso. Mas enfim eu escrevo as minhas memórias e não as tuas, leitor pacato. Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefinível. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, l'ange et la bête, com a diferença que o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam bem juntinhas - l'ange, que dizia algumas cousas do céu - e la bête, que... Não; decididamente suprimo este capítulo.
XCIX
NA PLATEIA
Na plateia achei Lobo Neves, de conversa com alguns amigos, falamos por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervalo seguinte, prestes a levantar o pano, encontramo-nos num dos corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim, com muita afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos muito, principalmente ele, que parecia o mais tranquilo dos homens. Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas torceu logo a conversação para assuntos gerais, expansivo, quase risonho. Adivinhe quem quiser a causa da diferença; eu fujo ao Damasceno que me espreita ali da porta do camarote.
Não ouvi nada do seguinte ato, nem as palavras dos atores, nem as palmas do público. Reclinado na cadeira, apanhava de memória os retalhos da conversação do Lobo Neves, refazia as maneiras dele e concluía que era muito melhor a nova situação. Bastava-nos a Gamboa. A frequência da outra casa aguçaria as invejas. Rigorosamente podíamos dispensar-nos de falar todos os dias; até era melhor, metia a saudade de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor de paróquia. Urgia fazer alguma cousa, ainda por amor de Virgília, que havia de ufanar-se quando visse luzir o meu nome... Creio que nessa ocasião houve grandes aplausos, mas não juro; eu pensava em outra cousa.
Multidão, cujo amor cobicei até à morte, era assim que eu me vingava às vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a gente humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Ésquilo fazia aos seus verdugos. Ah! Tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade, da tua indiferença, ou da tua agitação? Frágeis cadeias, amiga minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar cousa é ir considerar no ermo. O voluptuoso, o esquisito é insular-se o homem no meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado, inaccessíveI, ausente. O mais que podem dizer, quando ele torna a si - isto é, quando torna aos outros -, é que baixa do mundo da lua; mas o mundo da lua, esse desvão luminoso e recatado do cérebro, que outra cousa é senão a afirmação desdenhosa da nossa liberdade espiritual? Vive Deus! Eis um bom fecho de capítulo.
C
O CASO PROVÁVEL
Se esse mundo não fosse uma região de espíritos desatentos, era escusado lembrar ao leitor que eu só afirmo certas leis, quando as possuo deveras; em relação a outras restrinjo-me à admissão da probabilidade. Um exemplo da segunda classe constitui o presente capítulo, cuja leitura recomendo a todas as pessoas que amam o estudo dos fenômenos sociais. Segundo parece, e não é improvável, existe entre os fatos da vida pública e os da vida particular uma certa ação recíproca, regular, e talvez periódica - ou para usar de uma imagem - há alguma cousa semelhante às marés da praia do Flamengo e de outras igualmente maravilhosas. Com efeito, quando a onda investe a praia, alaga-a muitos palmos adentro; mas essa mesma água torna ao mar, com variável força, e vai engrossar a onda que há de vir, e que terá de tornar como a primeira. Esta é a imagem; vejamos a aplicação.
Deixei dito noutra página que o Lobo Neves, nomeado presidente de província, recusou a nomeação por motivo da data do decreto, que era 13; ato grave, cuja consequência foi separar do ministério o marido de Virgília. Assim, o fato particular da ojeriza de um número produziu o fenômeno da dissidência política. Resta ver como, tempos depois, um ato político determinou na vida particular uma cessação de movimento. Não convindo ao método deste livro descrever imediatamente esse outro fenômeno, limito-me a dizer por ora que o Lobo Neves, quatro meses depois de nosso encontro no teatro, reconciliou-se com o ministério; fato que o leitor não deve perder de vista, se quiser penetrar a subtileza do meu pensamento.
CI
A REVOLUÇAO DÁLMATA
Foi Virgília quem me deu notícia da viravolta política do marido, certa manhã de outubro, entre onze e meio-dia; falou-me de reuniões, de conversas, de um discurso...
- De maneira, que desta vez fica você baronesa - interrompi eu.
Ela derreou os cantos da boca, e moveu a cabeça a um e outro lado; mas esse gesto de indiferença era desmentido por alguma cousa menos definível, menos clara, uma expressão de gosto e de esperança. Não sei por quê, imaginei que a carta imperial da nomeação podia atraí-la à virtude, não digo pela virtude em si mesma, mas por gratidão ao marido. Que ela amava cordialmente a nobreza. Um dos maiores desgostos de nossa vida foi o aparecimento de certo pelintra de legação - da legação da Dalmácia, suponhamos -, o conde B. V., que a namorou durante três meses. Esse homem, vero fidalgo de raça, transtornara um pouco a cabeça de Virgília, que, além do mais, possuía a vocação diplomática. Não chego a alcançar o que seria de mim, se não rebentasse na Dalmácia uma revolução, que derrocou o governo e purificou as embaixadas. Foi sangrenta a revolução, dolorosa, formidável; os jornais, a cada navio que chegava da Europa, transcreviam os horrores, mediam o sangue, contavam as cabeças; toda a gente fremia de indignação e piedade... Eu não, eu abençoava interiormente essa tragédia, que me tirara uma pedrinha do sapato. E depois a Dalmácia era tão longe!