Romance

Memórias Póstumas de Brás Cubas

1881

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memórias póstumas de Brás Cubas é o quinto romance de Machado de Assis e significou uma verdadeira revolução não só na carreira do autor, que nessa época já havia publicado quatro romances e dois livros de contos, além de três de poesia e de exercer intensa atividade jornalística (crônicas e ensaios críticos), mas também na literatura brasileira, que, com esse livro, alcança novo patamar de qualidade. Deixou perplexos leitores e críticos, que tiveram dificuldade para entender o romance, inovador em todos os aspectos. Capistrano de Abreu chegou a perguntar, em carta a Machado, se as Memórias póstumas seriam um romance.

De fato, a partir do título, que remete à obra Mémoires d'outre-tombe (Memórias de além-túmulo), do escritor francês René de Chateaubriand, o livro anuncia uma inverossimilhança: uma autobiografia não apenas publicada, mas escrita postumamente. No entanto, uma vez superado esse susto inicial, o enredo do romance se desenvolve de maneira bastante verossímil, acompanhando a vida de um membro da elite socio-econômica do Rio de Janeiro, entre 1805, ano de seu nascimento, e 1869, quando morre de uma pneumonia mal curada. Inteligente e matreira, a narrativa faz importante denúncia do comportamento ambivalente das classes dominantes no Brasil monárquico, que têm os olhos voltados para as conquistas burguesas e liberais da Europa, mas, ao mesmo tempo, vivem com os pés fincados num regime escravocrata - como bem demonstrou o crítico Roberto Schwarz em seu livro Um mestre na periferia do capitalismo (1990). É, ao mesmo tempo, um romance que traz à tona questões absolutamente universais (vaidade, hipocrisia, ambição, ciúme, deslealdade...), revelando a arte machadiana de penetrar a alma humana, como não o fizera até então (e mesmo, talvez, não o faria desde então) nenhum outro autor de nossa literatura.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, na Revista Brasileira entre março e dezembro de 1880, ganhando forma de livro em 1881. Apesar da dificuldade (afinal, era uma obra que fugia aos padrões de romance então vigentes) e dos obstáculos que propunha à leitura fluente, exigindo, ao contrário, bastante reflexão do leitor, o livro teve grande sucesso e, ainda em vida de Machado de Assis, conheceu mais duas edições em volume depois de 1881: em 1896 e em 1899.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1881), também existente na biblioteca da Fundação.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009; no entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "subtileza"/"sutileza", "conjectura"/"conjetura", "dous"/"dois"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Cumpriu, ainda nesses casos, manter o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das instabilidades linguísticas da época. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o uso de "talvez" com verbos conjugados no indicativo ("Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal."); o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado ("meia doce e meia triste"); o de "parêntesis" em vez de "parênteses"; e o uso da regência duplamente indireta em "Custou-lhe muito a aceitar a casa".

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação, de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("adoeci logo, e não me tratei"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas"). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista.") e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história, uma eterna loureira"), o que nem sempre é o procedimento autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, respeitou-se o uso do autor, que os emprega quase sempre por extenso, deixando-os em algarismos apenas em circunstâncias especiais, como no capítulo intitulado, precisamente, "13". Mantiveram-se em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

O fato de ter sido publicado em capítulos na Revista Brasileira em 1880 e logo no ano seguinte ter sido estampado em livro conduz a duas diferentes atitudes com respeito à numeração das edições: para alguns (Comissão Machado de Assis, Adriano da Gama Kury), que contam como primeira a edição no periódico, a de 1899 é a quarta; para outros (Afrânio Coutinho, José Aguilar Editora) que consideram a de 1881 como a primeira edição, a de 1899 é a terceira. Seguiu-se aqui a lição da Comissão Machado de Assis.

Acerca das notas, "Deus" foi marcado como link apenas quando a referência era especificamente a Deus-Pai ou Filho, da tradição religiosa ocidental em geral e da católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "Deus me perdoe", ou "Vá com Deus".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

julho de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

LXXVIII

A PRESIDÊNCIA

Certo dia, meses depois, entrou Lobo Neves em casa, dizendo que iria talvez ocupar uma presidência de província. Olhei para Virgília, que empalideceu; ele, que a viu empalidecer, perguntou-lhe:

- A modo que não gostaste, Virgília?

Virgília abanou a cabeça.

- Não me agrada muito - foi a sua resposta.

Não se disse mais nada; mas de noite Lobo Neves insistiu no projeto um pouco mais resolutamente do que de tarde; dous dias depois declarou à mulher que a presidência era cousa definitiva. Virgília não pôde dissimular a repugnância que isto lhe causava. O marido respondia a tudo com as necessidades políticas.

- Não posso recusar o que me pedem; é até conveniência nossa, do nosso futuro, dos teus brasões, meu amor, porque eu prometi que serias marquesa, e nem baronesa estás. Dirás que sou ambicioso? Sou-o deveras, mas é preciso que me não ponhas um peso nas asas da ambição.

Virgília ficou desorientada. No dia seguinte achei-a triste, na casa da Gamboa, à minha espera; tinha dito tudo a D. Plácida, que buscava consolá-la, como podia. Não fiquei menos abatido.

- Você há de ir conosco - disse-me Virgília.

- Está douda? Seria uma insensatez.

- Mas então...?

- Então, é preciso desfazer o projeto.

- É impossível.

- Já aceitou?

- Parece que sim.

Levantei-me, atirei o chapéu a uma cadeira, e entrei a passear de um lado para outro, sem saber o que faria. Cogitei largamente, e não achei nada. Enfim, cheguei-me a Virgília, que estava sentada, e travei-lhe da mão; D. Plácida foi à janela.

- Nesta pequenina mão está toda a minha existência - disse eu -; você é responsável por ela; faça o que lhe parecer.

Virgília teve um gesto aflitivo; eu fui encostar-me ao consolo fronteiro. Decorreram alguns instantes de silêncio; ouvíamos somente o latir de um cão, e não sei se o rumor da água, que morria na praia. Vendo que não falava, olhei para ela. Virgília tinha os olhos no chão, parados, sem luz, as mãos deixadas sobre os joelhos, com os dedos cruzados, na atitude da suprema desesperança. Noutra ocasião, por diferente motivo, é certo que eu me lançaria aos pés dela, e a ampararia com a minha razão e a minha ternura; agora, porém, era preciso compeli-la ao esforço de si mesma, ao sacrifício, à responsabilidade da nossa vida comum, e conseguintemente desampará-la, deixá-la, e sair; foi o que fiz.

- Repito, a minha felicidade está nas tuas mãos - disse eu.

Virgília quis agarrar-me, mas eu já estava fora da porta. Cheguei a ouvir um prorromper de lágrimas, e digo-lhes que estive a ponto de voltar, para as enxugar com um beijo; mas subjuguei-me e saí.

LXXIX

COMPROMISSO

Não acabaria se houvesse de contar pelo miúdo o que padeci nas primeiras horas. Vacilava entre um querer e um não querer, entre a piedade que me empuxava à casa de Virgília e outro sentimento - egoísmo, suponhamos - que me dizia: "Fica; deixa-a a sós com o problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor". Creio que essas duas forças tinham igual intensidade, investiam e resistiam ao mesmo tempo, com ardor, com tenacidade, e nenhuma cedia definitivamente. Às vezes sentia um dentezinho de remorso; parecia-me que abusava da fraqueza de uma mulher amante e culpada, sem nada sacrificar nem arriscar de mim próprio; e, quando ia a capitular, vinha outra vez o amor, e me repetia o conselho egoísta, e eu ficava irresoluto e inquieto, desejoso de a ver, e receoso de que a vista me levasse a compartir a responsabilidade da solução.

Por fim interveio um compromisso entre o egoísmo e a piedade; eu iria vê-la em casa, e só em casa, em presença do marido, para lhe não dizer nada, à espera do efeito da minha intimação. Deste modo poderia conciliar as duas forças. Agora, que isto escrevo, quer-me parecer que o compromisso era uma burla, que essa piedade era ainda uma forma de egoísmo, e que a resolução de ir consolar Virgília não passava de uma sugestão de meu próprio padecimento.

LXXX

DE SECRETÁRIO

Na noite seguinte fui efetivamente à casa do Lobo Neves; estavam ambos, Virgília muito triste, ele muito jovial. Juro que ela sentiu certo alívio, quando os nossos olhos se encontraram, cheios de curiosidade e ternura. Lobo Neves contou-me os planos que levava para a presidência, as dificuldades locais, as esperanças, as resoluções; estava tão contente! Tão esperançado! Virgília, ao pé da mesa, fingia ler um livro, mas por cima da página olhava-me de quando em quando, interrogativa e ansiosa.

- O pior - disse-me de repente o Lobo Neves - é que ainda não achei secretário.

- Não?

- Não, e tenho uma ideia.

- Ah!

- Uma ideia... Quer você dar um passeio ao Norte?

Não sei o que lhe disse.

- Você é rico - continuou ele -, não precisa de um magro ordenado; mas se quisesse obsequiar-me, ia de secretário comigo.

Meu espírito deu um salto para trás, como se descobrisse uma serpente diante de si. Encarei o Lobo Neves, fixamente, imperiosamente, a ver se lhe apanhava algum pensamento oculto... Nem sombra disso; o olhar vinha direito e franco, a placidez do rosto era natural, não violenta, uma placidez salpicada de alegria. Respirei, e não tive ânimo de olhar para Virgília; senti por cima da página o olhar dela, que me pedia também a mesma cousa, e disse que sim, que iria. Na verdade, um presidente, uma presidenta, um secretário, era resolver as cousas de um modo administrativo.

LXXXI

A RECONCILIAÇÃO

Contudo, ao sair de lá, tive umas sombras de dúvida; cogitei se não ia expor insanamente a reputação de Virgília, se não haveria outro meio razoável de combinar o Estado e a Gamboa. Não achei nada. No dia seguinte, ao levantar-me da cama, trazia o espírito feito e resoluto a aceitar a nomeação. Ao meio-dia, veio o criado dizer-me que estava na sala uma senhora, coberta com um véu. Corro; era minha irmã Sabina.

- Isto não pode continuar assim - disse ela -; é preciso que, de uma vez por todas, façamos as pazes. Nossa família está acabando; não havemos de ficar como dous inimigos.

- Mas se eu não te peço outra cousa, mana! - bradei estendendo-lhe os braços.

Sentei-a ao pé de mim, falei-lhe do marido, da filha, dos negócios, de tudo. Tudo ia bem; a filha estava linda como os amores. O marido viria mostrar-ma, se eu consentisse.

- Ora essa! Irei eu mesmo vê-la.

- Sim?

- Palavra.

- Tanto melhor! - respirou Sabina -. É tempo de acabar com isto.

Achei-a mais gorda, e talvez mais moça. Parecia ter vinte anos, e contava mais de trinta. Graciosa, afável, nenhum acanhamento, nenhum ressentimento. Olhávamos um para o outro, com as mãos seguras, falando de tudo e de nada, como dous namorados. Era minha infância que ressurgia, fresca, travessa e loura; os anos iam caindo como as fileiras de cartas de jogar encurvadas, com que eu brincava em pequeno, e deixavam-me ver a nossa casa, a nossa família, as nossas festas. Suportei a recordação com algum esforço; mas um barbeiro da vizinhança lembrou-se de zangarrear na clássica rabeca, e essa voz - porque até então a recordação era muda -, essa voz do passado, fanhosa e saudosa, a tal ponto me comoveu, que...

Os olhos dela estavam secos. Sabina não herdara a flor amarela e mórbida. Que importa? Era minha irmã, meu sangue, um pedaço de minha mãe, e eu disse-lho com ternura, com sinceridade... Súbito, ouço bater à porta da sala; vou abrir; era um anjinho de cinco anos.

- Entra, Sara - disse Sabina.

Era minha sobrinha. Apanhei-a do chão, beijei-a muitas vezes; a pequena, espantada, empurrava-me o ombro com a mãozinha, quebrando o corpo para descer... Nisto, aparece-me à porta um chapéu, e logo um homem, o Cotrim, nada menos que o Cotrim. Eu estava tão comovido, que deixei a filha e lancei-me aos braços do pai. Talvez essa efusão o desconcertou um pouco; é certo que me pareceu acanhado. Simples prólogo. Daí a pouco falávamos como bons amigos velhos. Nenhuma alusão ao passado, muitos planos de futuro, promessa de jantarmos em casa um do outro. Não deixei de dizer que essa troca de jantares podia ser que tivesse uma curta interrupção, porque eu andava com ideias de uma viagem ao Norte. Sabina olhou para o Cotrim, o Cotrim, para Sabina; ambos concordaram que essas ideias não tinham senso comum. Que diacho podia eu achar no Norte? Pois não era na Corte, em plena Corte, que devia continuar a luzir, a meter num chinelo os rapazes do tempo? Que, na verdade, nenhum havia que se me comparasse; ele, Cotrim, acompanhava-me de longe, e não obstante uma briga ridícula, teve sempre interesse, orgulho, vaidade nos meus triunfos. Ouvia o que se dizia a meu respeito, nas ruas e nas salas; era um concerto de louvores e admirações. E deixa-se isso para ir passar alguns meses na província, sem necessidade, sem motivo sério? A menos que não fosse política...

- Justamente política - disse eu.

- Nem assim - replicou ele daí a um instante. E depois de outro silêncio: - Seja como for, venha jantar hoje conosco.

- Certamente que vou; mas, amanhã ou depois, hão de vir jantar comigo.

- Não sei, não sei - objetou Sabina -; casa de homem solteiro... Você precisa casar, mano. Também eu quero uma sobrinha, ouviu?

Cotrim reprimiu-a com um gesto, que não entendi bem. Não importa; a reconciliação de uma família vale bem um gesto enigmático.

LXXXII

QUESTÃO DE BOTÂNICA

Digam o que quiserem dizer os hipocondríacos: a vida é uma cousa doce. Foi o que eu pensei comigo, ao ver Sabina, o marido e a filha descerem de tropel as escadas, dizendo muitas palavras afetuosas para cima, onde eu ficava - no patamar -, a dizer-lhes outras tantas para baixo. Continuei a pensar que, na verdade, era feliz. Amava-me uma mulher, tinha a confiança do marido, ia por secretário de ambos, e reconciliava-me com os meus. Que podia desejar mais, em vinte e quatro horas?

Nesse mesmo dia, tratando de aparelhar os ânimos, comecei a espalhar que talvez fosse para o Norte como secretário de província, a fim de realizar certos desígnios políticos, que me eram pessoais. Disse-o na rua do Ouvidor, repeti-o no dia seguinte, no Pharoux e no teatro. Alguns, ligando a minha nomeação à do Lobo Neves, que já andava em boatos, sorriam maliciosamente, outros batiam-me no ombro. No teatro disse-me uma senhora que era levar muito longe o amor da escultura. Referia-se às belas formas de Virgília.

Mas a alusão mais rasgada que me fizeram foi em casa de Sabina, três dias depois. Fê-la um certo Garcez, velho cirurgião, pequenino, trivial e grulha, que podia chegar aos setenta, aos oitenta, aos noventa anos, sem adquirir jamais aquela compostura austera, que é a gentileza do ancião. A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana.

- Já sei, desta vez vai ler Cícero - disse-me ele, ao saber da viagem.

- Cícero! - exclamou Sabina.

- Pois então? Seu mano é um grande latinista. Traduz Virgílio de relance. Olhe que é Virgílio, e não Virgília... não confunda...

E ria, de um riso grosso, rasteiro e frívolo. Sabina olhou para mim receosa de alguma réplica; mas sorriu, quando me viu sorrir, e voltou o rosto para disfarçá-lo. As outras pessoas olhavam-me com um ar de curiosidade, indulgência e simpatia; era transparente que não acabavam de ouvir nenhuma novidade. O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor. Entretanto sorri, um sorriso curto, fugitivo e guloso - palreiro como as pegas de Sintra. Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a princípio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores; mas - palavra de honra! - sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira. Uma vez, porém, aconteceu-me sorrir, e continuei a fazê-lo das outras vezes. Não sei se há aí alguém que explique o fenômeno. Eu explico-o assim: a princípio, o contentamento, sendo interior, era por assim dizer o mesmo sorriso, mas abotoado, andando o tempo, desabotoou-se em flor, e apareceu aos olhos do próximo. Simples questão de botânica.

LXXXIII

13

Cotrim tirou-me daquele gozo, levando-me à janela.

- Você quer que lhe diga uma cousa? - perguntou ele -. Não faça essa viagem; é insensata, é perigosa.

- Por quê?

- Você bem sabe por quê - tornou ele -: é, sobretudo, perigosa, muito perigosa. Aqui na Corte, um caso desses perde-se na multidão da gente e dos interesses; mas na província muda de figura; e, tratando-se de personagens políticos, é realmente insensatez. As gazetas de oposição, logo que farejarem o negócio, passam a imprimi-lo com todas as letras, e aí virão as chufas, os remoques, as alcunhas...

- Mas não entendo...

- Entende, entende. Em verdade, seria bem pouco amigo nosso, se me negasse o que toda a gente sabe. Eu sei disso há longos meses. Repito, não faça semelhante viagem; suporte a ausência, que é melhor, e evite algum grande escândalo e maior desgosto...

Disse isto, e foi para dentro. Eu deixei-me estar com os olhos no lampião da esquina - um antigo lampião de azeite -, triste, obscuro e recurvado, como um ponto de interrogação. Que me cumpria fazer? Era o caso de Hamlet: ou dobrar-me à fortuna, ou lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não embarcar. Esta era a questão. O lampião não me dizia nada. As palavras do Cotrim ressoavam-me aos ouvidos da memória, de um modo mui diverso do das palavras do Garcez. Talvez Cotrim tivesse razão; mas podia eu separar-me de Virgília?

Sabina veio ter comigo, e perguntou-me em que estava pensando. Respondi que em cousa nenhuma, que tinha sono e ia para casa. Sabina esteve um instante calada.

- O que você precisa, sei eu; é uma noiva. Deixe, que eu ainda arranjo uma noiva para você.

Saí de lá opresso, desorientado. Tudo pronto para embarcar - espírito e coração -, e eis aí me surge esse porteiro das conveniências, que me pede o cartão de ingresso. Dei ao diabo as conveniências, e com elas a constituição, o corpo legislativo, o ministério, tudo.

No dia seguinte, abro uma folha política e leio a notícia de que, por decreto de 13, tínhamos sido nomeados presidente e secretário da província de *** o Lobo Neves e eu. Escrevi imediatamente a Virgília, e segui duas horas depois para a Gamboa. Coitada de D. Plácida! Estava cada vez mais aflita; perguntou-me se esqueceríamos a nossa velha, se a ausência era grande e se a província ficava longe. Consolei-a; mas eu próprio precisava de consolações; a objeção de Cotrim afligia-me. Virgília chegou daí a pouco, lépida como uma andorinha; mas, ao ver-me triste, ficou muito séria.

- Que aconteceu?

- Vacilo - disse eu -; não sei se devo aceitar...

Virgília deixou-se cair, no canapé, a rir.

- Por quê? - disse ela.

- Não é conveniente, dá muito na vista...

- Mas nós já não vamos.

- Como assim?

Contou-me que o marido ia recusar a nomeação, e por motivo que só lhe disse, a ela, pedindo-lhe o maior segredo; não podia confessá-lo a ninguém mais.

- É pueril - observou ele -, é ridículo; mas, em suma, é um motivo poderoso para mim.

Referiu-lhe que o decreto trazia a data de 13, e que esse número significava para ele uma recordação fúnebre. O pai morreu num dia 13, treze dias depois de um jantar em que havia treze pessoas. A casa em que morrera a mãe tinha o nº 13. Et cætera. Era um algarismo fatídico. Não podia alegar semelhante cousa ao ministro; dir-lhe-ia que tinha razões particulares para não aceitar. Eu fiquei como há de estar o leitor - um pouco assombrado com esse sacrifício a um número; mas, sendo ele ambicioso, o sacrifício devia ser sincero...

LXXXIV

O CONFLITO

Número fatídico, lembras-te que te abençoei muitas vezes? Assim também as virgens ruivas de Tebas deviam abençoar a égua, de ruiva crina, que as substituiu no sacrifício de Pelópidas - uma donosa égua, que lá morreu, coberta de flores, sem que ninguém lhe desse nunca uma palavra de saudade. Pois dou-ta eu, égua piedosa, não só pela morte havida, como porque, entre as donzelas escapas, não é impossível que figurasse uma avó dos Cubas... Número fatídico, tu foste a nossa salvação. Não me confessou o marido a causa da recusa; disse-me também que eram negócios particulares, e o rosto sério, convencido, com que eu o escutei, fez honra à dissimulação humana. Ele é que mal podia encobrir a tristeza profunda que o minava; falava pouco, absorvia-se, metia-se em casa, a ler. Outras vezes recebia, e então conversava e ria muito, com estrépito e afetação. Oprimiam-no duas cousas - a ambição, que um escrúpulo desazara, e logo depois a dúvida -, e talvez o arrependimento, mas um arrependimento que viria outra vez, se se repetisse a hipótese, porque o fundo supersticioso existia. Duvidava da superstição, sem chegar a rejeitá-la. Essa persistência de um sentimento, que repugna ao mesmo indivíduo, era um fenômeno digno de alguma atenção. Mas eu preferia a pura ingenuidade de D. Plácida, quando confessava não poder ver um sapato voltado para o ar.

- Que tem isso? - perguntava-lhe eu.

- Faz mal - era a sua resposta.

Isto somente, esta única resposta, que valia para ela o livro dos sete selos. Faz mal. Disseram-lhe isso em criança, sem outra explicação, e ela contentava-se com a certeza do mal. Já não acontecia a mesma cousa quando se falava de apontar uma estrela com o dedo; aí sabia perfeitamente que era caso de criar uma verruga.

Ou verruga ou outra cousa, que valia isso, para quem não perde uma presidência de província? Tolera-se uma superstição gratuita ou barata; é insuportável a que leva uma parte da vida. Este era o caso do Lobo Neves com o acréscimo da dúvida e do terror de haver sido ridículo. E mais este outro acréscimo, que o ministro não acreditou nos motivos particulares; atribuiu a recusa do Lobo Neves a manejos políticos, ilusão complicada de algumas aparências; tratou-o mal, comunicou a desconfiança aos colegas; sobrevieram incidentes; enfim, com o tempo, o presidente resignatário foi para a oposição.

LXXXV

O CIMO DA MONTANHA

Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. Entrei a amar Virgília com muito mais ardor, depois que estive a pique de a perder, e a mesma cousa lhe aconteceu a ela. Assim, a presidência não fez mais do que avivar a afeição primitiva; foi a droga com que tornamos mais saboroso o nosso amor, e mais prezado também. Nos primeiros dias, depois daquele incidente, folgávamos de imaginar a dor da separação, se houvesse separação, a tristeza de um e de outro, à proporção que o mar, como uma toalha elástica, se fosse dilatando entre nós; e, semelhantes às crianças, que se achegam ao regaço das mães, para fugir a uma simples careta, fugíamos do suposto perigo, apertando-nos com abraços.

- Minha boa Virgília!

- Meu amor!

- Tu és minha, não?

- Tua, tua...

E assim reatamos o fio da aventura como a sultana Scheherazade, o dos seus contos. Esse foi, cuido eu, o ponto máximo do nosso amor, o cimo da montanha, donde por algum tempo divisamos os vales de leste e de oeste, e por cima de nós, o céu tranquilo e azul. Repousado esse tempo, começamos a descer a encosta, com as mãos presas ou soltas, mas a descer, a descer...

LXXXVI

O MISTÉRIO

Serra abaixo, como eu a visse um pouco diferente, não sei se abatida ou outra cousa, perguntei-lhe o que tinha; calou-se, fez um gesto de enfado, de mal-estar, de fadiga; ateimei, ela disse-me que... Um fluido subtil percorreu todo o meu corpo: sensação forte, rápida, singular, que eu não chegarei jamais a fixar no papel. Travei-lhe das mãos, puxei-a levemente a mim, e beijei-a na testa, com uma delicadeza de zéfiro e uma gravidade de Abraão. Ela estremeceu, colheu-me a cabeça entre as palmas, fitou-me os olhos, depois afagou-me com um gesto maternal... Eis aí um mistério; deixemos ao leitor o tempo de decifrar este mistério.

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