Romance

Memórias Póstumas de Brás Cubas

1881

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memórias póstumas de Brás Cubas é o quinto romance de Machado de Assis e significou uma verdadeira revolução não só na carreira do autor, que nessa época já havia publicado quatro romances e dois livros de contos, além de três de poesia e de exercer intensa atividade jornalística (crônicas e ensaios críticos), mas também na literatura brasileira, que, com esse livro, alcança novo patamar de qualidade. Deixou perplexos leitores e críticos, que tiveram dificuldade para entender o romance, inovador em todos os aspectos. Capistrano de Abreu chegou a perguntar, em carta a Machado, se as Memórias póstumas seriam um romance.

De fato, a partir do título, que remete à obra Mémoires d'outre-tombe (Memórias de além-túmulo), do escritor francês René de Chateaubriand, o livro anuncia uma inverossimilhança: uma autobiografia não apenas publicada, mas escrita postumamente. No entanto, uma vez superado esse susto inicial, o enredo do romance se desenvolve de maneira bastante verossímil, acompanhando a vida de um membro da elite socio-econômica do Rio de Janeiro, entre 1805, ano de seu nascimento, e 1869, quando morre de uma pneumonia mal curada. Inteligente e matreira, a narrativa faz importante denúncia do comportamento ambivalente das classes dominantes no Brasil monárquico, que têm os olhos voltados para as conquistas burguesas e liberais da Europa, mas, ao mesmo tempo, vivem com os pés fincados num regime escravocrata - como bem demonstrou o crítico Roberto Schwarz em seu livro Um mestre na periferia do capitalismo (1990). É, ao mesmo tempo, um romance que traz à tona questões absolutamente universais (vaidade, hipocrisia, ambição, ciúme, deslealdade...), revelando a arte machadiana de penetrar a alma humana, como não o fizera até então (e mesmo, talvez, não o faria desde então) nenhum outro autor de nossa literatura.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, na Revista Brasileira entre março e dezembro de 1880, ganhando forma de livro em 1881. Apesar da dificuldade (afinal, era uma obra que fugia aos padrões de romance então vigentes) e dos obstáculos que propunha à leitura fluente, exigindo, ao contrário, bastante reflexão do leitor, o livro teve grande sucesso e, ainda em vida de Machado de Assis, conheceu mais duas edições em volume depois de 1881: em 1896 e em 1899.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília: Instituto Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em casos extremos de dúvida, recorreu-se à primeira edição em livro (1881), também existente na biblioteca da Fundação.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009; no entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "subtileza"/"sutileza", "conjectura"/"conjetura", "dous"/"dois"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Cumpriu, ainda nesses casos, manter o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das instabilidades linguísticas da época. Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, frequentemente "corrigidas" em edições posteriores, como o uso de "talvez" com verbos conjugados no indicativo ("Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal."); o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado ("meia doce e meia triste"); o de "parêntesis" em vez de "parênteses"; e o uso da regência duplamente indireta em "Custou-lhe muito a aceitar a casa".

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação, de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("adoeci logo, e não me tratei"); assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das cousas externas"). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso ("Fitei-a muito, e a sensação foi tão penosa, que recuei um passo e desviei a vista.") e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história, uma eterna loureira"), o que nem sempre é o procedimento autor. Também nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, respeitou-se o uso do autor, que os emprega quase sempre por extenso, deixando-os em algarismos apenas em circunstâncias especiais, como no capítulo intitulado, precisamente, "13". Mantiveram-se em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

O fato de ter sido publicado em capítulos na Revista Brasileira em 1880 e logo no ano seguinte ter sido estampado em livro conduz a duas diferentes atitudes com respeito à numeração das edições: para alguns (Comissão Machado de Assis, Adriano da Gama Kury), que contam como primeira a edição no periódico, a de 1899 é a quarta; para outros (Afrânio Coutinho, José Aguilar Editora) que consideram a de 1881 como a primeira edição, a de 1899 é a terceira. Seguiu-se aqui a lição da Comissão Machado de Assis.

Acerca das notas, "Deus" foi marcado como link apenas quando a referência era especificamente a Deus-Pai ou Filho, da tradição religiosa ocidental em geral e da católica em particular, e não simplesmente parte de uma frase feita, como "Deus me perdoe", ou "Vá com Deus".

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos, bolsista de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

julho de 2009

Revisto em fevereiro de 2011.

XXVI

O AUTOR HESITA

Súbito ouço uma voz:

- Olá, meu rapaz, isto não é vida!

Era meu pai, que chegava com duas propostas na algibeira. Sentei-me no baú e recebi-o sem alvoroço. Ele esteve alguns instantes de pé, a olhar para mim; depois estendeu-me a mão com um gesto comovido:

- Meu filho, conforma-te com a vontade de Deus.

- Já me conformei - foi a minha resposta, e beijei-lhe a mão.

Não tinha almoçado; almoçamos juntos. Nenhum de nós aludiu ao triste motivo da minha reclusão. Uma só vez falamos nisso, de passagem, quando meu pai fez recair a conversa na Regência: foi então que aludiu à carta de pêsames que um dos regentes lhe mandara. Trazia a carta consigo, já bastante amarrotada, talvez por havê-la lido a muitas outras pessoas. Creio haver dito que era de um dos regentes. Leu-ma duas vezes.

- Já lhe fui agradecer este sinal de consideração - concluiu meu pai -, e acho que deves ir também...

- Eu?

- Tu; é um homem notável, faz hoje as vezes de imperador. Demais trago comigo uma ideia, um projeto, ou... sim, digo-te tudo; trago dous projetos, um lugar de deputado e um casamento.

Meu pai disse isto com pausa, e não no mesmo tom, mas dando às palavras um jeito e disposição cujo fim era cavá-las mais profundamente no meu espírito. A proposta, porém, desdizia tanto das minhas sensações últimas, que eu cheguei a não entendê-la bem. Meu pai não fraqueou e repetiu-a; encareceu o lugar e a noiva.

- Aceitas?

- Não entendo de política - disse eu depois de um instante -; quanto à noiva... deixe-me viver como um urso, que sou.

- Mas os ursos casam-se - replicou ele.

- Pois traga-me uma ursa. Olhe, a Ursa Maior...

Riu-se meu pai, e depois de rir, tornou a falar sério. Era-me necessária a carreira política, dizia ele, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as com exemplos de pessoas do nosso conhecimento. Quanto à noiva, bastava que eu a visse; se a visse, iria logo pedi-la ao pai, logo, sem demora de um dia. Experimentou assim a fascinação, depois a persuasão, depois a intimação; eu não dava resposta, afiava a ponta de um palito ou fazia bolas de miolo de pão, a sorrir ou a refletir; e, para tudo dizer, nem dócil nem rebelde à proposta. Sentia-me aturdido. Uma parte de mim mesmo dizia que sim, que uma esposa formosa e uma posição política eram bens dignos de apreço; outra dizia que não; e a morte de minha mãe me aparecia como um exemplo da fragilidade das cousas, das afeições, da família...

- Não vou daqui sem uma resposta definitiva - disse meu pai -. De-fi-ni-ti-va! repetiu, batendo as sílabas com o dedo.

Bebeu o último gole de café; repoltreou-se e entrou a falar de tudo, do Senado, da Câmara, da Regência, da Restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Mata-cavalos... Eu deixava-me estar ao canto da mesa, a escrever desvairadamente num pedaço de papel, com uma ponta de lápis; traçava uma palavra, uma frase, um verso, um nariz, um triângulo, e repetia-os muitas vezes, sem ordem, ao acaso, assim:

arma virumque cano
A
Arma virumque cano
arma virumque cano
arma virumque
arma virumque cano
virunque

Maquinalmente tudo isto; e, não obstante, havia certa lógica, certa dedução; por exemplo, foi o virumque que me fez chegar ao nome do próprio poeta, por causa da primeira sílaba; ia a escrever virumque, e sai-me Virgílio, então continuei:

Vir
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Virgílio
Virgílio

Meu pai, um pouco despeitado com aquela indiferença, ergueu-se, veio a mim, lançou os olhos ao papel...

- Virgílio! - exclamou.- És tu, meu rapaz; a tua noiva chama-se justamente Virgília.

XXVII

VIRGÍLIA

Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois...? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas mais íntimas sensações. Naquele tempo contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção - devoção, ou talvez medo; creio que medo.

Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida e era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda fores viva quando estas páginas vierem à luz - tu que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte não me tornou rabugento, nem injusto.

- Mas - dirás tu -, como é que podes assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos anos?

Ah! Indiscreta! Ah! Ignorantona! Mas é isso mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nossas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.

XXVIII

CONTANTO QUE...

- Virgília? - interrompi eu.

- Sim, senhor; é o nome da noiva. Um anjo, meu pateta, um anjo sem asas. Imagina uma moça assim, desta altura, viva como um azougue, e uns olhos... filha do Dutra...

- Que Dutra?

- O conselheiro Dutra, não conheces; uma influência política. Vamos lá, aceitas?

Não respondi logo; fitei por alguns segundos a ponta do botim; declarei depois que estava disposto a examinar as duas cousas, a candidatura e o casamento, contanto que...

- Contanto que?

- Contanto que não fique obrigado a aceitar as duas; creio que posso ser separadamente homem casado ou homem público...

- Todo o homem público deve ser casado - interrompeu sentenciosamente meu pai -. Mas seja como queres; estou por tudo; fico certo de que a vista fará fé! Demais, a noiva e o parlamento são a mesma cousa... isto é, não... saberás depois... Vá; aceito a dilação, contanto que...

- Contanto que?... - interrompi eu, imitando-lhe a voz.

- Ah! Brejeiro! Contanto que não te deixes ficar aí inútil, obscuro, e triste; não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais. Olha, estou com sessenta anos, mas se fosse necessário começar vida nova, começava, sem hesitar um só minuto. Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios...

E foi por diante o mágico, a agitar diante de mim um chocalho, como me faziam, em pequeno, para eu andar depressa, e a flor da hipocondria recolheu-se ao botão para deixar a outra flor menos amarela, e nada mórbida - o amor da nomeada, o emplasto Brás Cubas.

XXIX

A VISITA

Vencera meu pai; dispus-me a aceitar o diploma e o casamento, Virgília e a Câmara dos Deputados.

- As duas Virgílias - disse ele num assomo de ternura política.

Aceitei-os; meu pai deu-me dous fortes abraços. Era o seu próprio sangue que ele, enfim, reconhecia.

- Desces comigo?

- Desço amanhã. Vou fazer primeiramente uma visita a D. Eusébia...

Meu pai torceu o nariz, mas não disse nada; despediu-se e desceu. Eu, na tarde desse mesmo dia, fui visitar D. Eusébia. Achei-a a repreender um preto jardineiro, mas deixou tudo para vir falar-me, com um alvoroço, um prazer tão sincero, que me desacanhou logo. Creio que chegou a cingir-me com o seu par de braços robustos. Fez-me sentar ao pé de si, na varanda, entre muitas exclamações de contentamento:

- Ora, o Brasinho! Um homem! Quem diria, há anos... Um homenzarrão! E bonito! Qual! Você não se lembra de mim...

Disse-lhe que sim, que não era possível esquecer uma amiga tão familiar de nossa casa. Dona Eusébia começou a falar de minha mãe, com muitas saudades, com tantas saudades, que me cativou logo, posto me entristecesse. Ela percebeu-o nos meus olhos, e torceu a rédea à conversação; pediu-me que lhe contasse a viagem, os estudos os namoros... Sim, os namoros também; confessou-me que era uma velha patusca. Nisto recordei-me do episódio de 1814, ela, o Vilaça, a moita, o beijo, o meu grito; e estando a recordá-lo, ouço um ranger de porta, um farfalhar de saias e esta palavra:

- Mamãe... mamãe...

XXX

A FLOR DA MOITA

A voz e as saias pertenciam a uma mocinha morena, que se deteve à porta, alguns instantes, ao ver gente estranha. Silêncio curto e constrangido. Dona Eusébia quebrou-o, enfim, com resolução e franqueza:

- Vem cá, Eugênia - disse ela -, cumprimenta o Dr. Brás Cubas, filho do Sr. Cubas, veio da Europa.

E voltando-se para mim:

- Minha filha Eugênia.

Eugênia, a flor da moita, mal respondeu ao gesto de cortesia que lhe fiz; olhou-me admirada e acanhada, e lentamente se aproximou da cadeira da mãe. A mãe arranjou-lhe uma das tranças do cabelo cuja ponta se desmanchara.

- Ah! Travessa! - dizia. - Não imagina doutor, o que isto é...

E beijou-a com tão expansiva ternura que me comoveu um pouco; lembrou-me minha mãe, e - direi tudo - tive umas cócegas de ser pai.

- Travessa? - disse eu. - Pois já não está em idade própria, ao que parece.

- Quantos lhe dá?

- Dezessete.

- Menos um.

- Dezesseis. Pois então! É uma moça.

Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas emendou-se logo, e ficou como dantes, erecta, fria e muda. Em verdade, parecia ainda mais mulher do que era; seria criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria, com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante...

Digo lá dentro, porque cá fora o que esvoaçou foi uma borboleta preta, que subitamente penetrou na varanda, e começou a bater as asas em derredor de D. Eusébia. Dona Eusébia deu um grito, levantou-se, praguejou umas palavras soltas:

- T'sconjuro!... Sai, diabo!... Virgem Nossa Senhora!...

- Não tenha medo - disse eu; e, tirando o lenço, expeli a borboleta.

Dona Eusébia sentou-se outra vez, ofegante, um pouco envergonhada; a filha, pode ser que pálida de medo, dissimulava a impressão com muita força de vontade. Apertei-lhes a mão e saí, a rir comigo da superstição das duas mulheres, um rir filosófico, desinteressado, superior. De tarde, vi passar a cavalo a filha de D. Eusébia, seguida de um pajem; fez-me um cumprimento com a ponta do chicote. Confesso que me lisonjeei com a ideia de que alguns passos adiante ela voltaria a cabeça para trás; mas não voltou.

XXXI

A BORBOLETA PRETA

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

"Também por que diabo não era ela azul?" - disse comigo.

E esta reflexão - uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas - me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: "Este é provavelmente o inventor das borboletas." A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dous palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as providas formigas... Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.

XXXII

COXA DE NASCENÇA

Fui dali acabar os preparativos da viagem. Já agora não me demoro mais. Desço imediatamente; desço, ainda que algum leitor circunspecto me detenha para perguntar se o capítulo passado é apenas uma sensaboria ou se chega a empulhação... Ai, não contava com D. Eusébia. Estava pronto, quando me entrou por casa. Vinha convidar-me para transferir a descida, e ir lá jantar nesse dia. Cheguei a recusar; mas instou tanto, tanto, tanto, que não pude deixar de aceitar; demais, era-lhe devida aquela compensação; fui.

Eugênia desataviou-se nesse dia por minha causa. Creio que foi por minha causa, se é que não andava muita vez assim. Nem as bichas de ouro, que trazia na véspera, lhe pendiam agora das orelhas, duas orelhas finamente recortadas numa cabeça de ninfa. Um simples vestido branco, de cassa, sem enfeites, tendo ao colo, em vez de broche, um botão de madrepérola, e outro botão nos punhos, fechando as mangas, e nem sombra de pulseira.

Era isso no corpo; não era outra cousa no espírito. Ideias claras, maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora, e não sei se alguma outra cousa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe, a qual me lembrava o episódio de 1814, e então dava-me ímpetos de glosar o mesmo mote à filha...

- Agora vou mostrar-lhe a chácara - disse a mãe, logo que esgotamos o último gole de café.

Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:

- Não, senhor, sou coxa de nascença.

Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que a vi - na véspera - a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e que naquele dia já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito; mas por que razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei que ia triste.

Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; não me foi difícil, porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de cousas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia...

Palavra que o olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são; vinha de uns olhos pretos e tranquilos. Creio que duas ou três vezes baixaram estes, um pouco turvados; mas duas ou três vezes somente; em geral, fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos.

XXXIII

BEM-AVENTURADOS OS QUE NÃO DESCEM

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, sem atinar com a solução do enigma. O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudi-lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e aí fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo.

Amanheceu chovendo, transferi a descida; mas no outro dia, a manhã era límpida e azul, e apesar disso deixei-me ficar, não menos que no terceiro dia, e no quarto, até o fim da semana. Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a noiva, e o Parlamento, e eu sem acudir a cousa nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo, ao pé dela sentia-me bem, e ela, creio que ainda se sentia melhor ao pé de mim. E isto na Tijuca. Uma simples égloga. Dona Eusébia vigiava-nos, mas pouco; temperava a necessidade com a conveniência. A filha, nessa primeira explosão da natureza, entregava-me a alma em flor.

- O senhor desce amanhã? - disse-me ela no sábado.

- Pretendo.

- Não desça.

Não desci, e acrescentei um versículo ao Evangelho: - Bem-aventurados os que não descem, porque deles é o primeiro beijo das moças. Com efeito, foi no domingo esse primeiro beijo de Eugênia,- o primeiro que nenhum outro varão jamais lhe tomara, e não furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue, como um devedor honesto paga uma dívida. Pobre Eugênia! Se tu soubesses que ideias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue, à tua origem...

Dona Eusébia entrou inesperadamente, mas não tão súbita, que nos apanhasse ao pé um do outro. Eu fui até à janela; Eugênia sentou-se a concertar uma das tranças. Que dissimulação graciosa! Que arte infinita e delicada! Que tartufice profunda! E tudo isso natural, vivo, não estudado, natural como o apetite, natural como o sono. Tanto melhor! D. Eusébia não suspeitou nada.

A+
A-