Romance

Memorial de Aires

1908

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.

De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).

A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".

O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.

A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.

Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"

Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

janeiro de 2011

30 de junho

Lá estive na casa Aguiar. Não falamos de cousas velhas nem de cousas novas, mas só das futuras. No fim da noite adverti que falávamos todos, menos o casal recente; esse, depois de algumas palavras mal atadas, entrou a dizer de si mesmo, um dizer calado, espraiado e fundido. De quando em quando os dous davam alguma sílaba à conversação, e logo tornavam ao puro silêncio. Também tocaram piano. Também foram falar entre si ao canto da janela. Sós os quatro velhos - o desembargador com os três -, fazíamos planos futuros.

Certo é que D. Carmo alguma vez acompanhou os dous com os seus olhos inquietos, como a perguntar-lhes que parte viriam eles ter no futuro que ela e nós imaginávamos; mas o receio de os interromper na felicidade tapava-lhe a boca, e a santa senhora contentava-se de os mirar e amar. Ao chá a conversação fez-se de todos, e Tristão referiu alguns casos de Lisboa, casos de política e de recreação.

Vindo para casa acudiu-me em caminho uma ideia, indiscreta, decerto, mas felizmente não a disse a ninguém, e mal a deixo nesta folha de papel. A ideia é saber se Fidélia terá voltado ao cemitério depois de casada. Possivelmente, sim; possivelmente, não. Não a censurarei, se não: a alma de uma pessoa pode ser estreita para duas afeições grandes. Se sim, não lhe ficarei querendo mal, ao contrário. Os mortos podem muito bem combater os vivos, sem os vencer inteiramente.

Sem data

Hoje foi a última recepção dos Aguiares, e eu quis despedir-me dos viajantes, que embarcam depois de amanhã. Bastante gente, entre ela o Faria e D. Cesária, e a viúva do corretor Miranda, ainda abatida. A nota geral da noite não era alegre, ao contrário: todos buscavam ir pelo tom da casa, que era tristonha. A própria Fidélia parecia definhar-se ao pé da amiga, e uma vez a mana Rita a foi achar que dizia à outra:

- D. Carmo, por que não vem conosco? Ainda é tempo de comprar bilhetes, e se os não houver, Tristão adia a viagem, e vamos no outro paquete.

D. Carmo respondia que não; sentia-se cansada e abatida.

- Viagem não cansa, e lá chegando cria alma nova.

Rita juntou o seu voto ao da moça, e ambas teimaram com ela, mas não puderam nada. Como última razão, vinha a separação do marido, razão velha e parece que decisiva. Rita notou que as duas estavam sinceramente desconsoladas, mas D. Carmo buscava fortalecer-se, enquanto que Fidélia não acabava de vencer o desgosto.

- Olhe, mano, eu ainda creio que ela desfaz a viagem...

Era no escuro, à vinda da praia; por isso a mana não me pôde ver o gesto incrédulo, mas certamente o adivinhou e trocou o que disse. "Não, que desfaça não digo, mas daria muito para não ter consentido em partir". Repetiu-me as palavras que Fidélia lhe disse de D. Carmo, chamando-lhe boa e santa, "a santa Aguiar".

Confesso que vim de lá aborrecido; preferia não ter ido, ou quisera ter saído logo. Tristão vem cá almoçar comigo amanhã.

Véspera de embarque

Tristão cumpriu a promessa, veio almoçar comigo, eram onze horas e meia. Vinha triste - triste e calado. Quer dizer que falamos muito pouco. Não havendo melhor assunto de conversa que esse mesmo silêncio, lembrou-me dizer-lhe que compreendia as saudades que ele levava daqui, já da terra, já das pessoas, e particularmente das duas pessoas que lhe queriam tanto. A ocasião era boa para dizer dos dous velhos as melhores cousas - ou repeti-las, pois já mas tinha confiado várias vezes; outrossim, inteirar-me dos seus planos de futuro, até onde ia a viagem, e em que tempo tornaria com a formosa esposa. Não me disse nada; afirmou de cabeça e mergulhou no mesmo grande silêncio do princípio. Creio que não me ouviu metade.

No fim do almoço, como fumássemos, deu-me novamente a indicação da casa em Lisboa, o título da folha política em que colabora, e ia confiar-me alguma cousa mais que calou, pareceu-me. Mergulhou outra vez no silêncio. Eu respeitava aquela melancolia e deixava-me ir atrás do fumo do charuto. Tristão finalmente despediu-se.

- Não nos veremos mais? - perguntou-me.

- Irei ao cais Pharoux, pode ser que a bordo também.

- Até amanhã; vá fazendo as encomendas.

Levei-o até à escada, que ele começou a descer vagarosamente, depois de me apertar a mão com força. A meio caminho deteve-se e subiu outra vez.

- Olhe, conselheiro, Fidélia e eu fizemos tudo para que a velha e o velho vão conosco; não podem, ela diz que está cansada, ele, que não se separa dela, e ambos esperam que voltemos.

- Pois voltem depressa - aconselhei.

Tristão fitou-me os olhos cheios de mistérios, e tornou à sala; vim com ele.

- Conselheiro, vou fazer-lhe uma confidência, que não fiz nem faço a ninguém mais; fio do seu silêncio.

Fiz um gesto de assentimento. Tristão meteu a mão na algibeira das calças e tirou de lá um papel de cor; abriu-o e entregou-mo que lesse. Era um telegrama do pai, datado da véspera; anuncia-lhe a eleição para daqui a oito dias.

Ficamos a olhar um para o outro, calados ambos, ele como que a apertar os dentes. Depois de alguns segundos de pausa:

- Eleição certa - disse ele -. As cartas já me faziam crer isto, mas não cuidei que fosse tão próxima.

Restituí-lhe o telegrama. Tristão insistiu pelo meu silêncio, e acrescentou:

- Queria que eles viessem conosco; eu lhes diria a bordo o que conviesse, e o resto seria regulado entre as duas - ou entre as três, contando minha mãe. Fidélia mesma é que me lembrou este plano, e trabalhou por ele, mas não alcançamos nada; ficam esperando.

Quis dizer-lhe que era esperarem por sapatos de defunto, mas evitei o dito, e mudei de pensamento. Como ele não dissesse mais, fiquei um tanto acanhado; Tristão, porém, completou a intenção do ato, acrescentando:

- Confesso-lhe isto para que alguém que nos merece a todos dê um dia testemunho do que fiz e tentei para me não separar dos meus velhos pais de estimação; fica sabendo que não alcancei nada. Que quer, conselheiro? A vida é assim cheia de liames e de imprevistos...

Não sei que disse mais; a mim chegava-me outra ideia que também deixei passar, não querendo ser indiscreto. Era indagar se Fidélia sabia já do telegrama; ele dissera-me que o não mostrara a ninguém, mas é claro que a mulher era ele mesmo, e estava excluída do silêncio que tivera com os outros.

18 de julho

Vim de bordo, aonde fui acompanhar os dous, com o velho Aguiar, o desembargador Campos e outros amigos. D. Carmo foi só até o cais; estava sucumbida, e enxugava os olhos. Ficou parada, a ver a lancha em que íamos, dizendo adeus com o lenço; não tardou que o espaço nos separasse inteiramente da vista.

Fidélia ia realmente triste; o mar não tardaria em espancar as sombras, e depois a outra terra, que a receberia com a outra gente. Eu, no tombadilho do paquete, imaginei o cemitério, o túmulo, a figura, as mãos postas e o resto. Tristão, à despedida, disse palavras amigas e saudosas a Aguiar, mandou outras para a madrinha, e a mim pediu-me que não esquecesse os pais de empréstimo e os fosse ver e consolar. Prometi que sim. Descemos para a lancha e afastamo-nos do paquete.

Tenho embarcado e desembarcado muitas vezes, devia estar gasto. Pois não estou. Não sentia a separação, é verdade; trazia os olhos no velho Aguiar e o pensamento na velha Carmo. Quanto ao desembargador vinha triste com a separação, mas a sobrinha obrigou-o a prometer, à última hora, que iria vê-la no ano próximo, e ele não advertiu que o pedido desdizia da promessa que lhe tinha feito de regressar no fim do ano ao Rio de Janeiro.

Despedimo-nos no cais. Aguiar seguiu para o Banco, eu vim para casa, onde escrevo isto. De noite irei ao Flamengo, a cumprir desde já a promessa que fiz a Tristão e a Fidélia.

Não acabarei esta página sem dizer que me passou agora pela frente a figura de Fidélia, tal como a deixei a bordo, mas sem lágrimas. Sentou-se no canapé e ficamos a olhar um para o outro, ela desfeita em graça, eu desmentindo Shelley com todas as forças sexagenárias restantes. Ah! Basta! Cuidemos de ir logo aos velhos.

*****

Dez horas da noite

Venho do Flamengo. Quisera ficar mais tempo, mas eles precisavam descansar da separação. Campos também lá foi, e ambos saímos cedo, nove e meia; não se falou dos viajantes.

29 de agosto

Chegou paquete da Europa, trouxe cartas de Lisboa e notícias políticas. As cartas eram saudosas, e as notícias, interessantes; aliás só vieram à noite. Na rua tinha-me Aguiar dito o que havia nas cartas de Tristão e de Fidélia e na que a comadre escrevera a D. Carmo; fui vê-las ao Flamengo. A da comadre era cheia de louvores à nora, que achava mais bela que no retrato, e mais terna que ninguém; foram as próprias palavras dela, e para uma sogra não me destoaram muito. Assim o disse a D. Carmo, que sorria complacente, com uma espécie de ternura mórbida. Éramos sós os três, e a saudade, grande.

Pouco depois chegou Campos. Vinha aturdido, e ao dar comigo pareceu querer falar-me em particular. Em particular, a um canto, disse-me que Tristão lhe escrevera dizendo achar-se eleito deputado quando desembarcou em Lisboa, e pedindo-lhe que desse a notícia à gente Aguiar como entendesse melhor; não lhes escrevia a eles sobre isso para evitar o sobressalto. Que me parecia?

- Sempre se lhes há de dizer tudo - respondi -; o melhor é que seja logo, e aqui estamos para dizer as cousas cautelosamente.

- Também me parece.

- Eu engenharei uma fábula...

Engenhei o que pude. Falei do golpe que o moço recebeu quando desembarcou deputado, e viu misturadas as alegrias dos pais com as dos amigos políticos; devia dizer também que a primeira ideia de Tristão foi rejeitar o diploma e vir para Santa-Pia; mas que o partido, os chefes, os pais... Não fui tão longe; seria mentir demais. Ao cabo, não teria tempo. Os dous velhos ficaram fulminados, a mulher verteu algumas lágrimas silenciosas, e o marido cuidou de lhas enxugar.

Assim correram as cousas, a mentira e os efeitos. Os dous procuramos levantar-lhes o ânimo. Eu empreguei algumas reflexões e metáforas, afirmando que eles viriam este ano mesmo ou no princípio do outro; bastava saberem a dor que causava aqui a notícia.

D. Carmo não parecia ouvir-me, nem ele; olhavam para lá, para longe, para onde se perde a vida presente, e tudo se esvai depressa. Aguiar ainda pegou na carta que o desembargador lhe mostrava; leu para si as palavras de Tristão, que eram aborrecidas em si mesmas, além da nota que o autor intencionalmente lhes pôs. D. Carmo pediu-lha com o gesto, ele meteu-a na carteira. A boa velha não insistiu. Campos e eu saímos pouco depois.

30 de agosto

Praia fora (esqueceu-me notar isto ontem), praia fora viemos falando daquela orfandade às avessas em que os dous velhos ficavam, e eu acrescentei, lembrando-me do marido defunto:

- Desembargador, se os mortos vão depressa, os velhos ainda vão mais depressa que os mortos... Viva a mocidade!

Campos não me entendeu, nem logo, nem completamente. Tive então de lhe dizer que aludia ao marido defunto, e aos dous velhos deixados pelos dous moços, e concluí que a mocidade tem o direito de viver e amar, e separar-se alegremente do extinto e do caduco. Não concordou - o que mostra que ainda então não me entendeu completamente.

Sem data

Há seis ou sete dias que eu não ia ao Flamengo. Agora à tarde lembrou-me lá passar antes de vir para casa. Fui a pé; achei aberta a porta do jardim, entrei e parei logo.

- Lá estão eles - disse comigo.

Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dous velhos sentados, olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. D. Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos.

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A-