Romance

Memorial de Aires

1908

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.

De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).

A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".

O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.

A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.

Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"

Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

janeiro de 2011

26 de março

Or bene, marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia; é a 15 de maio. Já estava disposto entre eles, secretamente, para que os papéis corressem em Lisboa a tempo. Os de cá vão correr já.

Foi a própria D. Carmo que me deu a notícia hoje, antes que me venha por carta, como se tratasse de pessoas minhas, noivo e noiva, tão frequentes somos os três e os quatro, mas logo reduziu tudo a si mesma.

- Realiza-se um grande sonho meu, conselheiro - disse ela -. Tê-los-ei finalmente comigo. Espero arranjar-lhes casa aqui mesmo no Flamengo. Ela disse-me uma vez que seria minha filha...

- Foi por ocasião das suas bodas de prata, não foi?

- Ouviu?

- Não ouvi; mas vi-lhe um gesto que vinha a dar na mesma. Lembre-se que eu estava a seu lado, e ela, ao pé de seu marido; a distância era curta, e eu não esqueço nada.

- Justamente. Senti-me feliz, mas não contei que a felicidade viesse a ser maior.

Eu, para levar a conversa a outro ponto, insisti que não esqueço nada, e referi várias anedotas de lembrança viva, todas verdadeiras, mas da minha mocidade. Agora muita cousa me passa, muitas se confundem, algumas trocam-se. Mas, enfim, mudara o caminho da conversação, que é o que eu queria para não atalhar a felicidade da boa Aguiar com pergunta indiscreta acerca de política. Não contei que ela própria falasse disso, como fez. Tristão já lhe não toca em política, e as cartas escasseiam ou tratam de matéria aborrecida, que ele não comunica a ninguém, guardando-as ou lendo-as por alto e de passagem. A mãe escreveu-lhe ultimamente.

- A comadre mandou-me dizer que eu lhe quero roubar o filho, e ameaçou-me de o vir buscar com uma esquadra; respondi-lhe gracejando também.

D. Cesária, que entrava então na sala, recebeu a notícia do dia do casamento; ouvira falar disso, e vinha saber se era verdade. O alvoroço e doçura com que falou à outra compensou em grande parte o mal que me dissera dela, e por outra maneira confirmou o que lá pensei uma vez (e não sei se escrevi) sobre a propriedade deste mundo. Deus vencia aqui o Diabo, com um sorriso tão manso e terno que faria esquecer a existência do imundo consócio. O marido daquela dama não seria capaz de tamanho contraste, creio eu; falta-lhe disposição, e principalmente maneiras. É sujeito capaz de pagar com um pontapé a notícia que lhe trouxerem da sorte grande. Não sabe ser feliz, posto não lhe custe nada; não sei se me explico bem, mas basta que o sinta comigo. Isto e outras cousas que fui pensando vieram comendo o tempo, e às onze horas estava em casa.

Antes de me meter na cama, refleti que efetivamente Tristão já me não fala em política, nem me cita as cartas que recebe, e pode ser que elas escasseiem deveras. Soubesse eu fazer versos e acabaria com um cântico ao deus do amor; não sabendo, vá mesmo em prosa: "Amor, partido grande entre os partidos, tu és o mais forte partido da terra..." Lerei esta outra página aos dous moços, depois de casados.

4 de abril

Não esperava por esta. Tristão veio pedir-me que lhe sirva de padrinho ao casamento. Não podia negar-lho, e aceitei o convite, ainda que sem grande gosto. Aí tinha ele o Aguiar, ou o Campos, mas enfim, quero ajudar a felicidade de todos. Deu-me outros pormenores: casamento à capucha, entre onze horas e meio-dia, almoço no Flamengo, em família, e os dous serão levados à Prainha modestamente, embarcarão ali para Petrópolis. Minúcias escusadas, mas tudo se deve escutar com interesse a um coração que ama.

8 de abril

- Sabe o que D. Fidélia me escreveu agora? - perguntou-me Aguiar -. Que o Banco tome a si vender Santa-Pia.

- Creio que já ouvi falar nisso...

- Sim, há tempos, mas era ideia que podia passar; vejo agora que não passou.

- Os libertos têm continuado no trabalho?

- Têm, mas dizem que é por ela.

Não me lembra se fiz alguma reflexão acerca da liberdade e da escravidão, mas é possível, não me interessando em nada que Santa-Pia seja ou não vendida. O que me interessa particularmente é a fazendeira - esta fazendeira da cidade, que vai casar na cidade. Já se fala no casamento com alguma insistência, bastante admiração, e provavelmente inveja. Não falta quem pergunte pelo Noronha. Onde está o Noronha? Mas que fim levou o Noronha?

Não são muitos que perguntam, mas as mulheres são mais numerosas - ou porque as afligiam as lágrimas de Fidélia - ou porque achem Tristão interessante - ou porque não neguem beleza à viúva. Também pode ser que as três razões concorram juntas para tanta curiosidade; mas, enfim, a pergunta faz-se, e a resposta é um gesto parecido com esta ou outra resposta equivalente: - Ah! Minha amiga (ou meu amigo), se eu fosse a indagar onde param os mortos, andaria o infinito e acabaria a eternidade.

É engenhoso, mas não é bom, principalmente não é certo. Os mortos param no cemitério, e lá vai ter a afeição dos vivos, com as suas flores e recordações. Tal sucederá à própria Fidélia, quando para lá for; tal sucede ao Noronha, que lá está. A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada.

Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta cousa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!

15 de abril

Já se não vende Santa-Pia, não por falta de compradores, ao contrário; em cinco dias apareceram logo dous, que conhecem a fazenda, e só o primeiro recusou o preço. Não se vende; é o que me disseram hoje de manhã. Concluí que o casal Tristão iria lá passar o resto dos seus dias. Podia ser, mas é ainda mais inesperado.

O que ouvi depois é que Tristão, sabendo da resolução da viúva, formulou um plano e foi comunicar-lho. Não o fez nos próprios termos claros e diretos, mas por insinuação. Uma vez que os libertos conservam a enxada por amor da sinhá-moça, que impedia que ela pegasse da fazenda e a desse aos seus cativos antigos? Eles que a trabalhem para si. Não foi bem assim que lhe falou; pôs-lhe uma nota voluntariamente seca, em maneira que lhe apagasse a cor generosa da lembrança. Assim o interpretou a própria Fidélia, que o referiu a D. Carmo, que mo contou, acrescentando:

- Tristão é capaz da intenção e do disfarce, mas eu também acho possível que o principal motivo fosse arredar qualquer suspeita de interesse no casamento. Seja o que for, parece que assim se fará.

- E andam críticos a contender sobre romantismos e naturalismos!

Parece que D. Carmo não me achou graça à exclamação, e eu mesmo não lhe acho graça nem sentido. Aplaudi a mudança do plano, e aliás o novo me parece bem. Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante.

19 de abril

Tristão, a quem falei da doação de Santa-Pia, não me confiou os seus motivos secretos; disse-me só que Fidélia vai assinar o documento amanhã ou depois. Estávamos no Carceller tomando café. Ouvi-lhe também dizer que recebeu cartas de Lisboa, duas políticas; instam por ele. Quis saber se acudiria ao chamado, mas o gesto com que ele via subir o fumo do charuto parecia mirar tão somente a noiva, o altar e a felicidade; não ousei passar adiante.

Saindo do Carceller, ouvi-lhe que ia fazer uma encomenda; talvez algum presente para a noiva, mas não me disse o que era, nem o destino. Falou-me, sim, da madrinha e da amizade que ela lhe tem; ao que redargui, confirmando:

- Posso dizer-lhe que é grande.

- É grande e antiga.

Contou-me então o que eu já sei, anedotas da infância e da adolescência, e nisto me entreteve andando alguns minutos largos; parece-me realmente bom e amigo. A idade em que foi daqui e o tempo que tem vivido lá fora dão a este moço uma pronúncia mesclada do Rio e de Lisboa que lhe não fica mal, ao contrário. Despedimo-nos à porta de um ourives; há de ser alguma joia.

28 de abril

Lá se foi Santa-Pia para os libertos, que a receberão provavelmente com danças e com lágrimas; mas também pode ser que esta responsabilidade nova ou primeira...

6 de maio

A gente Aguiar parece estar sobressaltada. Tristão recebeu novas cartas e alguns jornais de Lisboa, e longamente os leu para si, agora alegre, logo carrancudo. O que leu nos jornais foram trechos marcados a lápis azul e a tinta preta, e nada referiu aos dous velhos. Ao contrário, levou os jornais para o quarto, onde nenhum deles lhos foi pedir nem ver. Também não lhe perguntaram nada, ele ficou a pensar consigo, e assim correu o resto da tarde. Depois de jantar foram para Botafogo.

Lá se desfizeram as sombras, porque o encontro de Tristão e Fidélia era sempre uma aurora para ambos; a preocupação dos Aguiares passou, e a noite acabou com a mesma família de bem-aventurados.

Não estive lá; soube isto por mana Rita, que conversou com D. Carmo, e veio confiar-me tudo "como a um cofre", disse ela. Eu aceitei a confidência e agradeci a definição, e aqui as deixo com esta linha última. Em verdade, Tristão é feito de modo que a política o pode levar sem esforço, e Fidélia, retê-lo sem dificuldade.

8 de maio

Tristão quer ser casado pelo padre Bessa e pediu-lho. O padre mal pôde ouvir o pedido, consentiu e agradeceu deslumbrado. Há uma ideia de simetria na bênção do casamento dada pelo mesmo sacerdote que o batizou, que entrará por alguma cousa na resolução do noivo, mas também pode ser que a principal intenção fosse fazê-lo feliz. Aquele sacerdote obscuro e escondido na praia Formosa virá subir a escadaria da matriz da Glória (o casamento é na matriz da Glória) para abençoar o casamento de duas pessoas lustrosas e vistosas. Aguiar disse-me que o padre está que parecia ser ele próprio o noivo.

- Note bem, conselheiro - concluiu ele, dando-me aquela notícia que é já de alguns dias -, note que quando Tristão lhe fez presente de uma batina nova, o padre Bessa recebeu-a vexado, porque então a velhice da sua lhe entrou melhor pelos olhos. Agora a alegria é grande e franca, não imagina. Creio que é do papel espiritual e sacramental que lhe oferecem; ele já não casa ninguém há muitos anos.

15 de maio

Enfim, casados. Venho agora da Prainha, aonde os fui embarcar para Petrópolis. O casamento foi ao meio-dia em ponto, na matriz da Glória, poucas pessoas, muita comoção. Fidélia vestia escuro e afogado, as mangas presas nos pulsos por botões de granada, e o gesto grave. D. Carmo, austeramente posta, é verdade, ia cheia de riso, e o marido também. Tristão estava radiante. Ao subir a escadaria, troquei um olhar com a mana Rita, e creio que sorrimos; não sei se nela, mas em mim era a lembrança daquele dia do cemitério, e do que lhe ouvi sobre a viúva Noronha. Aí vínhamos nós com ela a outras núpcias. Tal era a vontade do Destino. Chamo-lhe assim, para dar um nome a que a leitura antiga me acostumou, e francamente gosto dele. Tem um ar fixo e definitivo. Ao cabo, rima com divino, e poupa-me a cogitações filosóficas.

Na igreja havia curiosos do bairro, damas principalmente. Cada uma destas era pouca para apanhar com os olhos as figuras dos noivos, desde a porta até o altar-mor. Movimento, sussurro, cabeças inclinadas, tudo isso encheria este pedaço de papel sem proveito. Mais interessante seria o que alguma boca disse do primeiro casamento e suas alegrias, e da viúva e suas tristezas, e os demais quartos dessa perpétua lua da criação.

Quando acabou a cerimônia e o padre Bessa deixou o altar, a efusão da madrinha foi grande. Vi o abraço que deu aos dous, um depois de outro, e afinal juntos; Tristão beijou-lhe a mão, Fidélia também, ambos comovidos, e ela, ainda mais comovida que eles, selou tudo com dous beijos de mãe. À uma hora da tarde estávamos de volta ao Flamengo, e pouco depois almoçávamos. Venho cansado demais para dizer tudo o que ali se passou antes, durante e depois da comida, até à hora em que fomos levar os recém-casados à Prainha. Passou-se o costume, salvo a nota particular que os quatro me deram e foi profunda. Não citei entre os assistentes o Campos, que não era dos menos satisfeitos, embora Tristão lhe leve a sobrinha, meia esposa e meia filha pela ordem que lhe punha em casa desde que foi viver com ele. Também não falei do filho dele, primo dela. O resto, pessoas íntimas e poucas.

Um incidente, tão ajustado que pareceu de encomenda. Em meio do almoço chegou um telegrama de Lisboa para Tristão com duas palavras, dous nomes e a data: "Deus abençoe". Os pais sabiam pelo correio que o casamento era hoje, e quiseram mandar-lhes a bênção pelo cabo. Tristão leu as palavras para si e depois para todos, e o papel correu a mesa. Naturalmente os recém-casados apertaram as mãos, e D. Carmo adotou o texto da verdadeira mãe com o seu olhar de mãe postiça. Eu deixei-me ir atrás daquela ternura, não que a compartisse, mas fazia-me bem. Já não sou deste mundo, mas não é mau afastar-se a gente da praia com os olhos na gente que fica.

Daí a brindar pelos noivos não me custou nada; fi-lo discretamente, e estendi o brinde à gente Aguiar, que me ficou reconhecida. Rita disse-me, ao voltar da Prainha, que as minhas palavras foram deliciosas. Confessei-lhe que seriam mais adequadas se eu as resumisse em emendar Bernardim Ribeiro: "Viúva e noiva me levaram da casa de meus pais para longes terras..." Mas, além de lembrar o primeiro marido, podia estender as longas terras além de Petrópolis, e viria afligir a festa tão bonita.

- Foi melhor ficar nas palavras deliciosas que eu disse - concluí modestamente.

26 de maio

Nestes últimos dias só tenho visitado o casal Aguiar, que parece meter-me cada vez mais no coração. Vivem felizes, recebem e mandam notícias aos dous filhos de empréstimo. Estes descerão na semana próxima para subir no mesmo dia; o único fim é abraçar os velhos.

Em Petrópolis tem chovido, mas também há dias bonitos, e deles e das chuvas Fidélia manda impressões interessantes; talvez a principal causa destas seja o próprio estado conjugal. A alma da gente dá vida às cousas externas, amarga ou doce, conforme ela for ou estiver, e o texto de Fidélia é dulcíssimo. D. Carmo mostrou-me ontem a última carta da moça, escrita nas quatro páginas, letra miúda e cerrada, e linhas estreitas. A ternura não embarga a discrição nem esta diminui aquela. No fim da carta, Fidélia insinua a ideia de irem todos quatro à Europa, ou os três, se Aguiar não puder deixar o Banco. A velha vai dizer que não pode ser por ora.

- Nem por ora, nem jamais - concluiu dobrando a carta -; estou cansada e fraca, conselheiro, e meia doente. Não dou para folias de viagens.

- Viagens dão saúde e força, opinei.

- Pode ser, mas em outra idade; na minha é já impossível.

Seguiu-se uma pausa, durante a qual Aguiar olhou de soslaio para a mulher, ela, para si, e eu, para ambos alternadamente. Entrou um vizinho, e falamos de outras cousas.

Quinta-feira

Tristão e Fidélia desceram hoje e Aguiar os foi buscar à Prainha. Dali vieram almoçar ao Flamengo, onde D. Carmo esperava os recém-casados e os abraçou cheia de coração. O velho ficou de ir do Banco à Prainha, quando a barca houvesse de sair à tarde para Petrópolis.

Tudo isso ouvi de noite aos dous velhos, e ouvi mais que a velha e os moços passaram um dia deleitosíssimo. Não foi este o próprio vocábulo empregado por ela; já lá disse algures que D. Carmo não possui o estilo enfático. Mas o total do que me disse vem a dar nele.

Conversaram os três de várias cousas, de Petrópolis, de música e de pintura; os dous tocaram piano, logo depois saíram à praia, com a velha. Justamente na praia, Fidélia pegou da ideia que propusera em carta de fazerem uma viagem à Europa, à qual D. Carmo se recusou por débil e cansada. Então Fidélia explicou o que seria a viagem; em primeiro lugar curta, a Lisboa, para ver a mãe de Tristão, depois a Paris, e se houvesse tempo, à Itália; partiriam em agosto ou setembro, e em dezembro estariam de volta.

- Não é o tempo, filha - replicou D. Carmo -; pouco ou muito, desde que lá estivesse iria ao fim, mas é este corpo já cansado, e depois, não indo Aguiar, quem há de cuidar dele?

- Pois ele que vá também - acudiu Tristão.

- Este ano não pode.

A conversação foi andando com eles, ao longo da praia, onde o mar, indo e vindo, era como se os convidasse a meterem-se nele até desembarcar "no porto da ínclita Ulisseia", como diz o poeta. D. Carmo ainda se lembrou de lhes perguntar por que não transferiam a viagem para o ano; Aguiar poderia ir também. Não responderam.

- Recusaria o acordo eu - disse Aguiar à noite, ao me contarem isto -. Assim repliquei aos dous na Prainha, quando ali os fui meter na barca. Também eu não deixaria Carmo.

11 de junho

Hoje apareceram-me os recém-casados pela primeira vez, encontro casual, na rua do Ouvidor, às duas horas da tarde; iam a compras. Gostei de os ouvir, e ainda mais de a ver. A graça com que ela dava o braço ao marido e deslizava na rua era mais completa que a anterior ao casamento; obra do casamento e da felicidade. Iam ouvindo, iam falando, iam parando aos mostradores.

Descem definitivamente no dia 20 deste mês, e partem nos primeiros dias de agosto para Lisboa; irão logo a outras partes.

- Por que não vem daí, conselheiro? - perguntou-me Tristão.

- Depois de tanta viagem? Sou agora pouco para reconciliar-me com a nossa terra.

Sublinho este nossa, porque disse a palavra meio sublinhada; mas ele creio que não a ouviu de nenhuma espécie. Olhava para a consorte, como avivando o programa da viagem que iam fazer, e seguiram pela rua abaixo com a mesma graça vagarosa.

25 de junho

Campos e Aguiar queriam, à sua vez, que o jovem casal viesse aposentar-se em casa deles, e alegaram a razão de ser por poucos dias, pois que tinham de embarcar. Tristão e Fidélia recusaram e foram para o Hotel dos Estrangeiros. A razão alegada por estes foi a mesma dos poucos dias, e eu creio que era verdadeira, mas principalmente seria a de não dar preferência a um nem a outro.

- Passaremos estes últimos dias nas duas casas, alternadamente - propôs Tristão.

- Não, isso não - acudiu o desembargador -; passaremos todos no Flamengo.

Era natural e cortês, sendo ele só e Aguiar, casado. Assim fazem desde o dia 20, em que os dous desceram de Petrópolis; lá os vi ontem, dia de São João.

Não escrevo o que lá se passou para me não demorar a dizer tudo, que é muito. Vi-os felizes a todos quatro. D. Carmo parecia esconder a tristeza da viagem que se aproxima, ou temperá-la com a ideia da volta, a que aludia frequentemente e a propósito de tudo, como a avivar a obrigação. Assim correram as horas depressa. Saí com eles até o hotel; dali seguiu Campos para Botafogo e vim eu para o Catete.

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