Memorial de Aires
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
29 de janeiro
Tínhamos razão na noite de 24. Os namorados estão declarados. A mão da viúva foi pedida naquele mesmo dia, justamente por ser o 26º aniversário do casamento dos padrinhos de Tristão; foi pedida em Botafogo, na casa do tio, e em presença deste, concedida pela dona, com assentimento do desembargador, que aliás nada tinha que opor a dous corações que se amam. Mas tudo neste negócio devia sair assim, de acordo uns com outros, e todos consigo.
D. Carmo e Aguiar, que haviam abraçado a Tristão com grande ternura antes e depois do pedido, estavam naquela noite em plena aurora de bem-aventurança. Valha-me Deus, pareciam ainda mais felizes que os dous. A viúva punha certa moderação na ventura, necessária à contiguidade dos dous estados, mas esquecia-se algumas vezes, e totalmente no fim. Nada se sabia então da novidade, e agora mesmo creio que só eu a sei (assim mo disse hoje o noivo); alguns poderiam supô-la, como a mana Rita, que já sabia metade dela; os menos sagazes terão dito consigo, ao vê-los, que é bom que Fidélia vá aliviando o luto do coração.
Referindo-me o que se passou há cinco dias, Tristão explicou esta comunicação nova: sentia-se obrigado a contar-me o final de um idílio, cujo princípio me confiara em forma elegíaca. Usou dessas mesmas expressões, e quase me citou Teócrito. Eu apertei-lhe a mão com sincero gosto, e prometi calar.
Em verdade, estimo vê-los unidos. Já escrevi que era um modo de acudir à tristeza do casal Aguiar. Agora acrescento (se já o não disse também) que eles se merecem, são moços, belos, amam-se, têm o direito natural e legítimo de se possuírem.
- Não publicamos oficialmente o nosso casamento próximo - concluiu Tristão - porque eu escrevi a meus pais, e só nos casaremos depois que me chegar a resposta. A resposta é sabida, e se pudesse ser contrária, nem por isso deixaríamos de casar-nos; todavia, não quero publicar já o acordo, é uma forma de respeito aos velhos.
Em seguida começou a desfiar as excelentes qualidades da moça. Já lhe ouvira algumas e conhecia-as todas, mas quando se trata com esta espécie de gente é preciso ter a maior indulgência do mundo. Tristão falava com tal sinceridade e gosto que seria duro não lhe dar ouvidos complacentes e palavras de aprovação; dei-lhos; ele acabou pedindo-me o primeiro abraço de pessoa estranha; dei-lho apertado.
2 de fevereiro
O abraço que lá contei atrás fez-me bem; foi sincero. Podia ser afetado ou apenas de cortesia, mas não foi; gostei de ver feliz aquele rapaz, e com ele a dama, e com eles os dous velhos de cá e os de lá.
Talvez seja engano meu, mas acho a viúva agora mais bonita. A causa disto pode ser a mudança próxima do estado. A melancolia de antes era verdadeira, mas estranha ou hóspede, não sei como diga para significar uma espécie de visita de pêsames, poucos minutos e poucas palavras. Já lá escrevi, há três semanas, a 9 do mês passado, alguma cousa que de certo modo explica e ata os dous estados.
6 de fevereiro
Não há como um grande segredo para ser divulgado depressa. Além de mim, que sei, e de Rita, que desconfia, há já quem afirme que os dous se casam; ou porque o sabem ou porque desconfiam somente, mas afirmam. Osório, que ouviu falar disso, recebeu a notícia como um grande golpe novo e inesperado. Nem faltarão outros que gostem dela ou morram por ela, e façam figas ao Tristão.
Verdade é que Osório estava já desenganado, mas foi isto mesmo que lhe reabriu a ferida. O desengano da parte dela era a fidelidade ao morto; desde que ela vai para outro, podia ir para ele, e é isto que o irrita, como sucede ao parceiro do gamão que dá com o copo no tabuleiro se lhe sai o pior número de dados.
10 de fevereiro
A felicidade é palreira. D. Carmo ainda me não disse que os dous estão para casar, mas já hoje me confiou que escreveu à comadre, mãe de Tristão, a quem não escreve há muito. Justamente pelo mesmo paquete que levou a carta do afilhado. Naturalmente reforçou o pedido e analisou as graças físicas e morais de Fidélia, e se lhe não pediu que os deixe cá, e venha ela também, acabará por aí. Nessa ocasião me dirá o resto, ou antes.
12 de fevereiro
Estava com desejo de ir passar um mês em Petrópolis, mas o gosto de acompanhar aqueles dous namorados me fez hesitar um pouco, e acabará por me prender aqui. Rita tem o mesmo gosto, e já agora os frequenta mais. Ontem disse-me que o casamento é certo.
- Mas quem disse a você que eles se casam?
- Ninguém me disse; eu é que adivinhei. D. Carmo, a quem falei nisto, ficou um pouco embaraçada; não queria confessar e tinha vergonha de negar, é o que é; mas eu desconversei e falei de outra cousa. Só se eles não lhe disseram ainda nada...
Não sei que escrúpulo me deteve a língua; não lhe contei o que sabia da parte do próprio Tristão, mas não me custou nada; apenas retruquei disfarçando:
- Bem, a viúva não casa comigo, casa com outro, segundo lhe parece: mas então você confessa que perdeu a aposta.
- Não digo que não. Tudo está nas mãos de Deus.
- Lembra-se daquele dia no cemitério?
- Lembra-me; há um ano.
Repito, não me custou ser discreto; é virtude em que não tenho merecimento. Algum dia, quando sentir que vou morrer, hei de ler esta página a mana Rita; e se eu morrer de repente, ela que me leia e me desculpe; não foi por duvidar dela que lhe não contei o que já escrevi atrás.
Leia, e leia também esta outra confissão que faço das suas qualidades de senhora e de parenta. Talvez eu, se vivêssemos juntos, lhe descobrisse algum pequenino defeito, ou ela em mim, mas assim separados é um gosto particular ver-nos. Quando eu lia clássicos lembra-me que achei em João de Barros certa resposta de um rei africano aos navegadores portugueses que o convidaram a dar-lhes ali um pedaço de terra para um pouso de amigos. Respondeu-lhes o rei que era melhor ficarem amigos de longe; amigos ao pé seriam como aquele penedo contíguo ao mar, que batia nele com violência. A imagem era viva e, se não foi a própria ouvida ao rei de África, era contudo verdadeira.
*****
12 de fevereiro, onze horas da noite
Antes de me deitar, reli o que escrevi hoje ao meio-dia, e achei o final demasiado céptico. A mana que me perdoe.
Chego do Flamengo, onde achei Aguiar meio adoentado, na sala, numa cadeira de extensão, as portas fechadas, grande silêncio, os dous sós. Tristão saíra para Botafogo, não que não quisesse ficar, mas padrinho e madrinha disseram-lhe que fosse, que Fidélia podia ficar assustada se ele não aparecesse, que lhe desse lembranças. Tristão cedeu e foi. Eu cederia também, sem teimar muito, como provavelmente este não teimou nada.
Não me disseram as cousas naqueles termos instantes, mas os que empregaram vinham a dar neles. Continuam a calar o negócio do casamento.
A doença do Aguiar parece que é um resfriado, e desaparecerá com um suadouro; nem por isso ele me despediu mais cedo. D. Carmo teimava em fazê-lo recolher, e eu, em sair, mas o homem temia que eu viesse meter-me em casa sozinho e aborrecido; foi o que ele mesmo me disse, e reteve-me enquanto pôde. Não saí muito tarde, mas tive tempo de ver a dona da casa ir de um para outro cabo do espírito, entre os cuidados de um e as alegrias de outro. Interrogativa e inquieta, apalpava a testa e o pulso ao marido; logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão, e a noite passou assim alternada, entre o bater do mar e do relógio.
13 de fevereiro
Mandei saber do Aguiar; amanheceu bom; não sai para se não arriscar, mas está bom. Escreveu-me que vá jantar com eles. Respondi-lhe que a doença foi um pretexto para passar o dia de hoje ao pé da esposa, e por isso mesmo não me é possível ir contemplar de perto esse quadro de Teócrito.
Realmente, não posso, tenho de ir jantar com o encarregado de negócios da Bélgica. Confesso que preferia os Aguiares, não que o diplomata seja aborrecido, ao contrário; mas os dous velhos vão com a minha velhice, e acho neles um pouco da perdida mocidade. O belga é moço, mas é belga. Quero dizer que, cansado de ouvir e de falar a língua francesa, achei vida nova e original na minha língua, e já agora quero morrer com ela na boca e nas orelhas. Todos os meus dias vão contados, não há recobrar sombra do que se perder.
"Quadro de Teócrito", escreveu-me Aguiar em resposta à minha recusa, "quer dizer alguma cousa mais particular do que parece. Venha explicar-mo amanhã, entre a sopa e o café, e contar-me-á então os planos secretos da Bélgica. Tristão diz-me que jantará também, se V. Exa vier. Veja a que ponto chegou este ingrato, que só janta conosco, se houver visitas; se não, some-se. Virá, conselheiro?"
Respondi que sim, e vou. A frase final do bilhete traz uma afetação de mágoa, algo parecido com prazer que se encobre; por outras palavras, sabe-lhes aquela ausência do rapaz, uma vez que tudo é amarem-se duas criaturas que os amam, e a quem eles amam também. Hei de ver que, acabado o jantar, os primeiros que o remetem para Botafogo são eles mesmos.
15 de fevereiro
Não, não remeteram Tristão para Botafogo. Creio que o desejassem e o fizessem, mas não tiveram tempo. Tão depressa acabamos de jantar, apareceram Fidélia e o tio. Concluí que os dous namorados houvessem concertado isto mesmo.
Noite boa para todos. Eu próprio achei prazer em observar os dous. Não é que eles não buscassem disfarçar, ela principalmente, mas não há disfarce que baste em tais lances. A agitação interior transtornava os cálculos, e os olhos contavam os segredos. Quando falavam pouco ou nada, o silêncio dizia mais que palavras, e eles davam por si pendentes um do outro, e ambos, do céu. Foi o que me pareceu. Não me pareceu menos que o céu os animava e que eles nos mandavam a todos os diabos, a mim e aos três velhos, e aos pais de Tristão, aos paquetes, às malas, às cartas que esperavam, a tudo que não fosse um padre e latim - latim breve e padre brevíssimo, que os aliviasse do celibato e da viuvez. E desta maneira diziam tudo o que sabiam de si.
Sabiam tudo. Parece incrível como duas pessoas que se não viram nunca, ou só alguma vez de passagem e sem maior interesse, parece incrível como agora se conhecem textualmente e de cor. Conheciam-se integralmente. Se alguma célula ou desvão lhes faltava descobrir, eles iam logo e pronto, e penetravam um no outro, com uma luz viva que ninguém acendeu. Isto que digo pode ser obscuro, mas não é fantasia; foi o que vi com estes olhos. E tive-lhes inveja. Não emendo esta frase, tive inveja aos dous, porque naquela transfusão desapareciam os sexos diferentes para só ficar um estado único.
16 de fevereiro
Esqueceu-me notar ontem uma cousa que se passou anteontem, no começo do jantar do Flamengo. Aqui vai ela; talvez me seja precisa amanhã ou depois.
As primeiras colheres de sopa foram tanto ou quanto caladas e atadas. Tinham chegado cartas da Europa (duas) e Tristão as leu à janela, rapidamente, parecendo não haver gostado do assunto. Comeu sem atenção nem prazer, a princípio. Naturalmente os padrinhos desconfiaram alguma cousa, mas não se atreveram a perguntar-lhe nada. Olharam para ele, à socapa; eu, para lhes não perturbar o espírito, não trazia assunto estranho, e comia comigo. Depressa acabou o constrangimento, e o resto do jantar foi alegre. Já lá deixei notado o que foi o resto da noite.
Se eu quisesse saber o que diziam as cartas bastaria ser indiscreto ou descortês; era perguntar-lho em particular. Tristão me confiaria, creio, visto que entro cada vez mais no coração daquele moço. Ouve-me, fala-me, busca-me, quer os meus conselhos e opiniões. Mas a impressão má foi tão breve que provavelmente não foi grande, e ele acabaria referindo tudo aos padrinhos quando ficaram sós, e mais certamente à noiva, ontem. Devem estar já no período dos segredos comuns.
18 de fevereiro
Telegrama dos pais de Tristão, dizendo-lhe que sim, que aprovam, que os abençoam. O estilo telegráfico é mais conciso, mas foi assim que Tristão mo traduziu de cor; contentamento traz derramamento. Apertei-lhe a mão com prazer; ele quis um abraço. Foi aqui em casa, quando eu ia a sair, duas horas da tarde. Saímos juntos, e tive de ouvir três panegíricos, um dos pais, outro dos padrinhos, e o terceiro (aliás vigésimo) da própria dama dos seus pensamentos.
- D. Fidélia ficou contentíssima; diz que nunca duvidou da resposta, mas a declaração telegráfica mostra que os velhos não se puderam guardar para o correio, e responderam logo. Agora esperamos cartas, mas a publicação do casamento faz-se já.
Ao sair do bonde ouvi um quarto panegírico, o dos seus chefes políticos, que estão ansiosos por vê-lo na Câmara dos Deputados e escreveram-lhe. Um deles chegou a confessar-lhe que abandonaria a política, se ele a deixasse também.
- É exagero - concluiu Tristão sorrindo -, mas isto prova que me querem. Também pode ter sido um meio de me chamar depressa; o outro limitou-se a dizer que a minha eleição é certa, e a candidatura vai ser apresentada.
- Sim? Felicito-o.
- Não já, nem publicamente. Não disse nada disto aos padrinhos; a D. Fidélia, sim, contei-lho em particular, e agora a V. Ex.a, pedindo-lhe a maior reserva.
Provavelmente eram as duas cartas do outro dia. Mas, de fato, partirá ele, ou ainda está incerto se cederá ou não à esposa, caso ela pense em ficar? A reserva que me pediu explicará uma e outra solução...
22 de fevereiro
Está publicado o casamento de Tristão e de Fidélia, não nos jornais, e antes fosse neles também; está só publicado entre as relações das duas famílias...
Eu gosto de ver impressas as notícias particulares, é bom uso, faz da vida de cada um ocupação de todos. Já as tenho visto assim, e não só impressas, mas até gravadas. Tempo há de vir em que a fotografia entrará no quarto dos moribundos para lhes fixar os últimos instantes; e se ocorrer maior intimidade entrará também.
25 de fevereiro
Quando mana Rita veio trazer-me a notícia oficial do casamento mostrei-lhe a minha carta de participação, e fiz um gesto de triunfo, perguntando-lhe quem tinha razão no cemitério, há um ano. Ainda uma vez concordou que era eu, mas emendou em parte, dizendo que a nossa aposta é que ela casaria comigo, e citou a aposta entre Deus e o Diabo a propósito de Fausto, que eu lhe li aqui em casa no texto de Goethe.
- Não, trapalhona, você é que me incitou a tentá-lo, e desculpou a minha idade, com palavras bonitas, lembra-se?
Lembrava-se, sorrimos, e entramos a falar dos noivos. Eu disse bem de ambos, ela não disse mal de nenhum, mas falou sem calor. Talvez não gostasse de ver casar a viúva, como se fosse cousa condenável ou nova. Não tendo casado outra vez, pareceu-lhe que ninguém deve passar a segundas núpcias. Ou então (releve-me a doce mana, se algum dia ler este papel), ou então padeceu agora tais ou quais remorsos de não havê-lo feito também... Mas, não, seria suspeitar demais de pessoa tão excelente.
Aí fica, mal resumida, a nossa conversação. Não falamos da data do casamento, nem da partida do casal, se partisse. Rita era pouca para referir anedotas, repetir ditos e boatos, nenhum malévolo nem feio, todos interessantes, ouvidos à gente Aguiar.
*****
Seis horas da tarde
Vim agora da rua, onde me confirmaram que o corretor Miranda teve hoje de manhã uma congestão cerebral. Rita só me falou disso ao sair daqui, e esqueceu-me escrevê-lo. Estávamos no patamar da escada quando ela me contou que ouvira a notícia, no bonde, a dous desconhecidos.
- Só agora é que você me dá esta novidade? - disse-lhe eu -. Tem razão; a vida tem os seus direitos imprescritíveis; primeiro os vivos e os seus consórcios; os mortos e os seus enterros que esperem.
Também eu fiz o mesmo; só agora falo do homem.
26 de fevereiro
Miranda morreu ontem às dez horas; enterra-se hoje às quatro. Creio que deixa a família bem. Dávamo-nos sem ser grandes amigos. Eu, se fosse a somar os amigos que tenho perdido por esse mundo, chegaria a algumas dúzias deles. Os jornais dizem que não há convites para o enterro; irei ao enterro sem convite.
*****
Dez horas da noite
Lá fui a enterrar o Miranda. Não valeria a pena contá-lo, se não fosse o que me sucedeu no fim. Muita gente, as tristezas do costume. A própria Cesária parecia abatida; não digo se chorava ou não. Aguiar e Campos também compareceram, e outros conhecidos.
No cemitério, deitada a última pá de terra na cova, lembrou-me ir ao jazigo dos meus. Desviei-me e fui; achei-o lavado como de costume e, depois de alguns minutos, vendo que a gente não acabava de sair, caminhei para o túmulo do Noronha, marido de Fidélia. Sabia onde ficava, mas ainda lá não fora.
Agora que a viúva está prestes a enterrá-lo de novo, pareceu-me interessante mirá-lo também, se é que não levara tal ou qual sabor em atribuir ao defunto o verso de Shelley que já pusera na minha boca, a respeito da mesma bela dama: I can, etc. Túmulo grave e bonito, bem conservado, com dous vasos de flores naturais, não ali plantadas, mas colhidas e trazidas naquela mesma manhã. Esta circunstância fez-me crer que as flores seriam da própria Fidélia, e um coveiro que vinha chegando respondeu à minha pergunta: "São de uma senhora que aí as traz de vez em quando..."
A pergunta foi feita tão naturalmente que o coveiro não teve dúvida em responder, nem eu em contá-lo aqui. Também não quero calar o que vim pensando comigo. Já não havia ninguém dos que acompanharam o enterro do Miranda. Chegava outro, e entre um e outro meti-me no carro e vim para casa. Em caminho pensei que a viúva Noronha, se efetivamente ainda leva flores ao túmulo do marido, é que lhe ficou este costume, se lhe não ficou essa afeição. Escolha quem quiser; eu estudei a questão por ambos os lados, e quando ia a achar terceira solução chegara à porta da casa. Desci, dei ao cocheiro a molhadura de uso, e enfiei pelo corredor. Vinha cansado, despi-me, escrevi esta nota e vou jantar. Ao fim da noite, se puder, direi a terceira solução: se não, amanhã. A terceira solução é a que lá fica atrás, não me lembra o dia... Ah! Foi no segundo aniversário do meu regresso ao Rio de Janeiro, quando eu imaginei poder encontrá-la diante da pessoa extinta, como se fosse a pessoa futura, fazendo de ambas uma só criatura presente. Não me explico melhor, porque me entendo assim mesmo, ainda que pouco. D. Cesária, se vier a sabê-lo, é capaz de ir dizê-lo ao próprio Tristão, com uma gota amarga ou corrupta, ou ambas as cousas para variar... Já já, não; está ainda com a morte do cunhado na garganta, mas tudo passa, até os cunhados.
Sem data
Já lá vão dias que não escrevo nada. A princípio foi um pouco de reumatismo no dedo, depois visitas, falta de matéria, enfim preguiça. Sacudo a preguiça.
A noite passada estive em casa da viúva Noronha, quase que a sós com ela; havia a mais o tio, um colega da Relação e uma parenta velha. Tristão fora a Petrópolis, levado pelos padrinhos até à barca da Prainha, e por mim, que os vi passar na rua da Quitanda, e subi ao carro convidado por eles. Não lhes ouvi então o motivo da ida a Petrópolis, mas já o sabia de véspera; foi examinar uma casa para o noivado. Concluí, não sei por quê, que eles ficavam morando aqui.
Posso dizer que verdadeiramente fiquei a sós com ela. Tendo ouvido ao tio que a sobrinha andava com saudades do velho amigo - que sou eu -, imaginei que era mentira; o tio queria parceiro para cartas. Não fui e acertei; a parenta foi ao voltarete com os dous magistrados.
Eu, relativamente a Fidélia, já cheguei à liberdade de lhe perguntar se não tinha saudades do noivo. A resposta foi afirmativa, mas calada, um sorriso breve e um gesto de sobrancelhas. Tristão foi o assunto mais frequente da conversação, dizendo eu todo o bem que penso dele e francamente é muito, ao que ela retrucava sem vaidade, antes com modéstia e discrição; em si mesma devia estar feliz. Disse-me que ele recebera cartas da família, confirmando por extenso o que já lhe mandara em resumo. A da mãe era toda ternura, citou-me algumas frases da futura sogra, e foi buscar a carta dela para que eu a lesse também.
- Cartas políticas não vieram?
- Parece que vieram.
Li e louvei muito a carta da paulista, que achei efetivamente terna, ainda que derramada, mas ternura de mãe não conhece sobriedade de estilo. Era escrita à própria Fidélia.
Vendo que esta gostava da conversa, não lhe pedi música; ela é que foi de si mesma tocar piano, um trecho não sei de que autor, que se Tristão não ouviu em Petrópolis não foi por falta de expressão da pianista. A eternidade é mais longe, e ela já lá mandou outros pedaços da alma; vantagem grande da música, que fala a mortos e ausentes.