Memorial de Aires
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
1 de dezembro
Volto espantado das Paineiras. Lá fui hoje com Tristão. No fim do almoço, acima da cidade e do mar, ouvi-lhe nem mais nem menos que a confissão do amor que dedica à formosa Fidélia. Uso os seus próprios termos: dedica à formosa Fidélia. O verbo não é vivo, mas pode ser elegante e, em todo caso, exprime a unidade do destino. As teses escolares dedicam-se a pais, a parentes, a amigos; o amor é tese para uma só pessoa.
Novidade não era, a confissão é que me espantou, e provavelmente ele leu esse efeito em mim. Não lhe respondi logo, salvo por um gesto de aquiescência, preciso em tais casos, não se devendo duvidar nunca da boa escolha, ao contrário.
- Não disse isto a ninguém, conselheiro, nem à madrinha nem ao padrinho. Se lho faço aqui é que não ouso fazê-lo àqueles dous, e não tenho terceira pessoa a quem o diga. Di-lo-ia a sua irmã, se me atrevesse a tanto; mas apesar do bom trato, não lhe acho franqueza igual à sua. Parece-lhe que o meu coração escolhe bem?
- Pergunta ociosa, doutor; basta amar para escolher bem. Ao Diabo que fosse era sempre boa escolha.
- Essa é a regra, sei; mas no caso particular daquela senhora não acha que é admirável?
- Acho.
- Também assim penso; independentemente da cegueira que me daria a paixão, vejo claro que a escolha é perfeita. Já tivemos ocasião de falar nela, e combinamos no parecer. Digo-lhe até que foi esse o motivo que me levou a confessar-me hoje. Lembra-se que há algum tempo, em sua casa, almoçando...? Concordamos em achar-lhe todas as prendas morais e físicas. Compreendi que me aprovaria, e resolvi falar-lhe acerca deste sentimento e seus efeitos.
- A resposta estava dada, como diz; não há consulta nova.
- Há; ainda lhe não disse tudo.
- Pois diga o resto. Disponho-me a ouvi-lo, como se eu mesmo fosse rapaz. Gosta dela há muito tempo?
- Logo que cheguei comecei a gostar dela.
- Não reparei.
- Nem ela, nem eu também. Senti que lhe achava alguma cousa, mas a austeridade de viúva e a minha próxima volta não deixavam entender bem o que era. Poderia ser dessas preferências que se dão a mulheres, não havendo plano nem possibilidade de as receber na vida. Além dessa cousa, gostava de a ouvir falar, de lhe comunicar ideias e observações, e todas as nossas conversas eram interessantes. Os seus modos, aquele gesto de acordo manso e calado, tudo me prendia. Um dia entrei a pensar nela com tal insistência que desconfiei. Recorda-se quando resolvi ir à fazenda de Santa-Pia com ela e o tio?
- Recordo-me.
- Era já a dificuldade de ficar aqui sem ela, não sabia por quanto tempo; e depois contava que na roça, mais a sós, chegaria a fazer-lhe sentir tudo o que me pesava e dispô-la a ouvir-me. Resolução perdida; ela não foi e eu tive de acompanhar o desembargador sozinho; pouco depois voltei...
- Lembra-me.
Tristão deteve-se naquele ponto e estendeu os olhos abaixo e ao longo. Um criado veio servir-nos café, enquanto dous grandes pássaros negros cortavam o ar, um atrás do outro. Podia ser um casal, ele que a perseguia, ela que negava. Então eu, para sorrir da confidência, sugeri a ideia de que a bela Fidélia estivesse a fazer o mesmo gesto da ave fugitiva; talvez já gostasse dele. Não me retrucou sim, nem não, mas a expressão do rosto era negativa, e eu, para não perder o resto, perguntei-lhe:
- Quem lhe diz que não, doutor?
A curiosidade ia-me fazendo deslizar da discrição, e acaso da compostura; nem só a curiosidade, um pouco de temperamento também. Tem-se visto muito rapaz falar de damas amadas, e muita viúva sair da viuvez ou ficar nela. Naquele caso os dous personagens davam interesse especial à aventura. Cá me acordava a afirmação de mana Rita. Que Fidélia não casa. Que não casará nunca. A situação de ambos, a vida que chama Tristão para fora daqui, a morte que prende a viúva à terra e às suas saudades, tudo somava o interesse da aventura, não contando que a esses motivos de separação, eu próprio ia-me a outros de união possível dos dous.
Tristão não se deixou rogar muito; desfiou vários dos seus enganos e desenganos. Custou-lhe a princípio, mas, dito um caso, vieram outros, e com pouco sabia eu que aparências iludiram as suas esperanças, e que desilusões as mataram. Agora crê deveras o pior.
Não lhe dei as minhas razões contrárias; podiam não ser mais que aparências. Também não aludi às suspeitas que atribuo à madrinha e ao padrinho; eles podem enganar-se como eu. Ao demais - e é o principal - isso viria dando ao meu papel aspeto menos grave do que convinha. Basta que já aquela conversação lhe fosse deitando as manguinhas de fora - e a mim também; no fim dos charutos, estávamos quase como dous estudantes do primeiro ano e do primeiro namoro, ainda que com outro estilo.
Creio que, ao descer, vinha arrependido ou vexado da confissão; trocou de assunto, conversamos de cousas alheias, do trem e da estrada, do mato e do morro, e cá embaixo um pouco da política de ambos os países.
2 de dezembro
Uma observação. Como é que Tristão foi tão franco ontem nas Paineiras, e tão cauteloso naquele dia do largo de São Francisco, onde dei com ele embebido a ver entrar a moça no carro? "Grande talento!" exclamou então, o talento de pianista, que ela não levava nas saias. E já então gostava dela, pelo que lhe ouvi ontem, visto que começou a querer-lhe pouco depois de chegado. A razão é que só agora a paixão subiu tão alto; isso, e a confiança que lhe inspiro. Não se pôde conter, é o que foi.
3 de dezembro
Aires amigo, confessa que, ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes; não podes. Logo depois entraste em ti mesmo, e viste que nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos, se ambos a quiserem ter juntos. A questão é querê-lo, e ela parece que o não quer.
5 de dezembro
A marinha está quase pronta. Mana Rita veio encantada da tela, da autora e da dona, porque Fidélia destina a obra a D. Carmo. Esteve só com as duas amigas; não achou lá Tristão nem Aguiar, e conversaram as três longamente, até que a viúva se despediu e tornou para Botafogo, apesar de instada para jantar no Flamengo; não podia e partiu antes de cair a tarde.
Rita ficou e ainda bem que ficou, porque ouviu a D. Carmo a notícia do amor de Tristão, com um acréscimo que aqui vai para ligar ao que escrevi nestes últimos dias. Esse acréscimo é nada menos que o desejo de D. Carmo é de os ver casados.
- Digo isto só à senhora e peço-lhe que não conte a ninguém - acabou D. Carmo -, eu gostaria de os ver casados, não só porque se merecem, como pela amizade que lhes tenho e que eles me pagam do mesmo modo.
Rita achou que D. Carmo dizia verdade, e achou mais que, casando-os, teria assim um meio de prender o filho aqui. A mana é dessas pessoas que não podem reter o que pensam, e confiou logo o achado à amiga. D. Carmo sorriu com expressão de acordo; e foi o que pensou e me disse a própria Rita. Também assim me pareceu, mas eu quis deitar a minha gota de fel do costume, e disse:
- Talvez a terceira razão seja a principal, se não foi única.
Rita acudiu que não. Única não era, não podia ser. Eu, por maldade e riso, teimei que sim, mas dentro de mim acabei concordando com ela. As três razões podiam combinar-se bem naquela senhora. A última, quando muito, daria maior alma às duas primeiras: era natural. Não tardaria a perder o filho postiço, que se vai embora, e a filha de empréstimo pode vir a amar outro e casar, e ainda que não saia daqui, seguirá outra família. Unidos os dous aqui, amados aqui, tê-los-ia ela abraçados ao próprio peito, e eles a ajudariam a morrer. Resumo assim o que pensei e agora confirmo, acrescentando que o confiei também à mana.
- O que eu disse há pouco foi por gracejo; acho que você tem razão. E parece-lhe que ela alcance o que deseja?
- Não afirmo nem nego, mas já me parece difícil; aqui está por quê. Tristão e Aguiar chegaram pouco antes da hora de jantar, e jantamos. Aguiar indagou da pintura, D. Carmo respondeu-lhe, ele ouviu com interesse, e creio que ele e ela olharam alguma vez para o afilhado; Tristão não dizia nada; parecia até não atender ao que eles diziam.
- Talvez fingisse.
- No fim do jantar, antes do café, Tristão declarou aos padrinhos que talvez parta antes do fim do ano...
- Antes?
- Antes.
- E eles não sabiam?
- Parece que não, porque ficaram desconsolados, e o jantar acabou triste.
- Mas como é que ele não dissera isso ao padrinho, vindo com ele de fora?
- Não vieram juntos; Tristão chegou depois do Aguiar. Pensávamos até que jantasse fora de casa. Foi assim; no fim deu notícia da partida. Contou que uma carta atrasada... mas não mostrou a carta; terá mostrado depois que saí de lá.
Pensei comigo, e expliquei:
- Mana, pode ser até que não haja carta nenhuma; ele foge-lhe, não tem esperanças, quer ir quanto antes. Já isso de chegar tarde a casa prova que não quer encontrar a viúva; é o que é. Os dous velhos não procuraram dissuadi-lo da resolução?
- A princípio não disseram nada; ficaram acabrunhados. Depois o Aguiar entrou a dizer alguma cousa, que D. Carmo ouviu e apoiou apenas com os olhos; estava triste, e para me não deixar só, falava comigo; eu respondia apertando-lhe os dedos com piedade sincera. Olhe, mano, até eu cuidei de pedir ao rapaz que se demorasse mais tempo. Ele agradeceu a minha intervenção com um sorriso também triste, mas declarou que não podia; pedem-lhe muito que volte.
- Bem - disse eu rindo -, você mostrou aí que se compadeceu da amiga D. Carmo, mas você esquece agora neste mês de dezembro a aposta que fez comigo no princípio de janeiro. Não se lembra do que me disse no cemitério? Não apostou que a viúva Noronha não tornaria a casar? Como é que pediu hoje ao Tristão que ficasse - com o pensamento íntimo de o ver casar com ela?
Concluí pegando-lhe no queixo e levantando-lhe o rosto para mim, que estava de pé. A mana confessou a contradição e explicou-a. Antes de tudo, o seu pensamento era poupar a tristeza da amiga; seriam alguns dias ou semanas mais que passariam juntos, eles e o afilhado. Mas bem podia ser também que Fidélia, aconselhada por eles, acabasse desposando Tristão; as circunstâncias seriam outras.
- Logo, eu tinha razão naquele dia?
- Inteiramente não; mas tudo pode acontecer neste mundo.
- Neste mundo e no outro.
Quis acabar a conversação notando-lhe que, a despeito do pedido de D. Carmo, quando lhe confiou a intenção recôndita e lhe recomendou segredo, ela acabava de me revelar tudo; mas o coração tolheu-me o remoque, por mais fraternal e inocente que me saísse. Podia ressentir-se, e ela não o merece; ela é boa.
Em resumo, pode ser que Rita tivesse razão no cemitério. Se a viúva Noronha, como lá escrevi há dias, foge a si mesma, é que tem medo de cair e prefere a viuvez ao outro estado.
10 de dezembro
Fidélia sabe já que Tristão resolveu partir no dia 24. Foi ele mesmo que lho disse em casa dela.
15 de dezembro
Se eu estivesse certo de poder casar os dous, casava-os, por mais que me custe confessá-lo a mim mesmo, e, a rigor, não custa muito. Estou só, entre quatro paredes, e os meus sessenta e três anos não rejeitam a ideia do ofício eclesiástico. Ego conjugo vos...
A razão de tal sentimento é a tristeza que vejo nos padrinhos, à medida que se aproxima o dia 24. D. Carmo perguntou a Tristão implorativamente por que é que não adiava para 9 de janeiro a viagem; eram mais quinze dias que lhe dava. Ele respondeu que não pode. Eu, algo incrédulo, perguntei-lhe se já comprara bilhete; disse-nos que vai comprá-lo amanhã. A minha ideia é que ele espera achar todas as passagens tomadas, e adiar a viagem por força maior. Não lho disse, mas tudo se deve esperar dos homens, e particularmente dos namorados.
Foi ontem que falamos disso os três; Aguiar estava presente e não opinou. Pouco depois chegou o desembargador com a sobrinha; tinham saído em visita ao presidente do tribunal, mas, apenas na rua, Fidélia propôs ao tio virem passar a noite no Flamengo, e vieram; eram nove horas.
Tudo o que se passou até às dez e meia teria aqui três ou quatro páginas, se eu não sentisse algum cansaço nos dedos. Páginas de conjeturas, porque os dous apenas se falaram, mas conjeturas firmadas na comoção visível de um e de outro, nos silêncios da Fidélia, embora orlados da atenção que dava à amiga. Os quatro homens pouco a pouco nos ligamos. Campos chegou a propor cartas, nenhum de nós três aceitou a ideia. Aguiar ia aceitando, ainda que a meia voz, mas Tristão alegou dor de cabeça ou dor nas costas, e era verdade; tinha passado toda a manhã curvado, a arranjar cousas velhas. O mesmo cansaço dos dedos agora é resto da fadiga de ontem; ficamos a conversar, até que as duas visitas saíram, e eu com elas.
20 de dezembro
Sucedeu como eu cuidava. Tristão achou todas as passagens de 24 vendidas. Vai no dia 9. O pior é que, sendo natural comprar bilhete desde logo, para lhe não acontecer o mesmo, não comprou cousa nenhuma. Sei disto por ele, a quem perguntei se se não aparelhava já; respondeu que não, que há tempo. Agora imagino que, se houver tempo e achar bilhete, ele pode converter a necessidade de amar a moça no desejo de ceder aos velhos, e ficará mais duas ou três semanas. Os velhos não serão a causa verdadeira, mas não há só filhos de empréstimo, há também causas de empréstimo.
22 de dezembro
A verdadeira causa - ou uma delas - estava hoje no Flamengo, acabando a marinha. Tristão lá estava também, e ambos faziam a estética um do outro. Ele admirava menos a tela que a pintora, ela, menos o espetáculo que o admirador, e eu via-os com estes olhos que a terra fria há de comer.
D. Carmo dava-me a parte de atenção a que a cortesia a obrigava, mas tão-somente essa. Olhava para os dous a miúdo, a espreitá-los, e, se fosse preciso, a animá-los. Mas já não era preciso. Um e outro esqueciam-se de nós e deixavam-se ir ao som daquela música interior, que não é nova para ela.
Observando a moça e os seus gestos, pensei no que me disseram há uma semana, a ideia que ela teve de ir passar o verão em Santa-Pia, que ainda não vendeu. Não lhe importaria lá ficar com os seus libertos; faltou-lhe pessoa que a acompanhasse. Ultimamente pensou em ir para Petrópolis, mas aí é provável que fosse também Tristão, e a intenção dela era fugir-lhe, creio eu. Creio também que ela foi sincera em ambos os projetos. Fidélia ouviu à porta do coração aquele outro coração que lhe bate, e sentiu tais ou quais veleidades de trancar o seu. Digo veleidades, que não obrigam nem arrastam a pessoa. A pessoa quer cousa diversa e oposta, e o sentimento, se não é já dominante, para lá caminha.
Uma impressão que trago do Flamengo é que D. Carmo despediu-se de mim, quando me levantei, com o mesmo prazer que lhe dei há dias, para ficar a sós com eles. Não lhes terá dito nada com palavras, mas, até onde pode ir a alma sem elas, foi decerto. Só a compostura da boa senhora terá impedido que os abrace e lhes diga: Amem-se, meus filhos!
28 de dezembro
Estive hoje com Tristão, e não lhe ouvi nada a não ser que recebeu cartas de Lisboa, cartas políticas; também as recebeu do pai e da mãe. A mãe, se ele se demorar muito, diz que virá ver a sua terra. Deu-me notícias dos seus outros pais de cá, mas não falou da moça.
2 de janeiro
Enfim, amam-se. A viúva fugiu-lhe e fugiu a si mesma, enquanto pôde, mas já não pode. Agora parece dele, ri com ele, e no dia nove chorará por ele, naturalmente, se ele lhe não estancar a fonte das lágrimas com um gesto. As visitas são agora diárias, os jantares, frequentes; D. Carmo acompanha algumas vezes o afilhado a Botafogo, e Aguiar vai buscá-los.
Se já estão formalmente declarados é o que não sei; terá faltado ocasião ou ânimo a ele para confiar à outra o que ela sabe pelos olhos, mas não tardará muito. O que aí digo é o que sei por observações e conjeturas, e principalmente pela felicidade que há no rosto do casal Aguiar. A mana não tem saído de casa; no dia de ano-bom fui jantar com ela, mas não falamos disso.
7 de janeiro
Tristão já não vai a nove, por uma razão que me não deu, nem lha pedi. Só me disse que não vai; escreveu para Lisboa e ia levar as cartas ao correio.
9 de janeiro
Segundo aniversário da minha volta definitiva ao Rio. Não ouvi hoje os pregões do ano passado e do outro. Desta vez lembrou-me a data sem nenhum som exterior; veio de si mesma. Esperei ver a mana entrar-me em casa e convidar-me a ir com ela ao cemitério. Não veio (são quatro horas da tarde) ou porque se não lembrou, ou por lhe não parecer necessário todos os anos.
Quem sabe se não iríamos dar com a viúva Noronha ao pé da sepultura do marido, as mãos cruzadas, rezando, como há um ano? Se eu tivesse ainda agora a impressão que me levou a apostar com Rita o casamento da moça, poderia crer que tal presença e tal atitude me dariam gosto. Acharia nelas o sinal de que não ama a Tristão, e, não podendo eu desposá-la, preferia que amasse o defunto. Mas não, não é isso; é o que vou dizer.
Se eu a visse no mesmo lugar e postura, não duvidaria ainda assim do amor que Tristão lhe inspira. Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa. Era o acordo ou o contraste do indivíduo e da espécie. A recordação do finado vive nela, sem embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias antigas, com o segredo das estreias de um coração que aprendeu na escola do morto. Mas o gênio da espécie faz reviver o extinto em outra forma, e aqui lho dá, aqui lho entrega e recomenda. Enquanto pôde fugir, fugiu-lhe, como escrevi há dias, e agora o repito, para me não esquecer nunca.
12 de janeiro
Amanhã (13) faz anos a bela Fidélia. Tal a razão que levou Tristão a transferir a viagem de nove para outro dia que ainda não fixou. Assim o disse aos padrinhos, que o aprovaram naturalmente e alegremente; esta mesma razão me foi confessada por ele hoje, quando o encontrei a buscar uma lembrança para deixar à viúva. Tais foram as suas palavras, mas não traziam alma de convicção. A razão da ficada é outra.
13 de janeiro
Antes de me despir quero escrever o que ouvi agora há pouco (meia-noite) à picante Cesária. Vim com ela e o marido da casa do desembargador, onde fomos tomar chá com a graciosa viúva. Os amigos desta lá estiveram, menos Rita, que mandou cartão de cumprimentos; parece que está adoentada.
Não escrevo porque seja verdade o que D. Cesária me disse, mas por ser maligno. Esta senhora se não tivesse fel talvez não prestasse; eu nunca a vejo sem ele, e é uma delícia. Ou já sabia da afeição da viúva ao Tristão, ou reparou nela esta noite. Fosse como fosse, disse-me que Tristão não voltará tão cedo a Lisboa.
- Sim - concordei -, parece que lhe custa muito deixar os padrinhos.
- Os padrinhos? - redarguiu Cesária rindo -. Ora, conselheiro! Certamente chama assim aos dous olhos da viúva, que são bem ruins padrinhos. Mas lá tem consigo a água benta para o batizado.
Não entendendo, perguntei-lhe que água benta era, e que batizado. O marido, com a sua rabugem do costume, respondeu que a água benta era o dinheiro, e esfregou o polegar e o índice; ela riu apoiando, e eu compreendi que atribuíam ao moço uma afeição de interesse.
Quis ponderar à dama que isto que me dizia agora estava em contradição com o que uma vez lhe ouvi. Ouvi-lhe então (e creio que o escrevi neste Memorial) que Tristão preferia a política à viúva, e por isso a deixava. Não lho lembrei por duas razões, a primeira é que seria inútil, e até prejudicial às nossas relações; a segunda é que ofenderia a própria natureza. D. Cesária pensa realmente o mal que diz. A contradição é aparente; está toda no ódio que ela tem a Fidélia, e este sentimento é a causa íntima e única das duas opiniões opostas. Preterida pela política ou preferida pelo dinheiro, tudo é diminuir a outra dama. A essas duas razões para ouvi-la calado acresceu a forma. Tudo lhe sai com palavras relativamente doces e honestas, ficando o veneno ou a intenção no fundo. Há ocasiões em que a graça de D. Cesária é tanta que a gente tem pena de que não seja verdade o que ela diz, e facilmente lho perdoa.
Tudo isto considerado, e mais a hora, a viagem curta, e a presença do marido, que diabo ganhava eu em desfazer o que ela dizia? Comigo, sim, logo que eles me deixaram, vim pensando no Tristão, que é também rico, que ama deveras a viúva, é amado por ela, e acabará casando. Vim recordando a noite e os seus episódios, que não escrevo por ser tarde, mas foram interessantes. O desembargador parece que já descobriu a inclinação da sobrinha, e não a desaprova. O casal Aguiar estava feliz; ainda lá ficou para vir com o afilhado.
23 de janeiro
Agora me lembra que amanhã faz um ano das bodas de prata do casal Aguiar. Lá estive naquela festa íntima, que me deu prazer grande. Também lá esteve Fidélia, e fez o seu brinde de filha à boa Carmo, tudo correu na melhor harmonia. Ainda cá não chegara Tristão, nem era esperado. Oxalá me não esqueça de lhes mandar cedo o meu bilhete de felicitações, e pode ser que lá vá de noite. Vou, vou.
... Rita escreveu-me agora (seis da tarde) pedindo que a espere amanhã, à noite, para irmos juntos ao Flamengo. Vou; há seis dias que lá não piso.