Romance

Memorial de Aires

1908

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.

De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).

A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".

O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.

A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.

Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"

Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

janeiro de 2011

11 de novembro

Não fui ontem, fui hoje ver a marinha. Achei Fidélia no jardim, junto da casa, com o pincel e a palheta nas mãos, os olhos no mar e na tela, em pé. Ao lado, sentada, estava D. Carmo, com o seu riso bom e maternal. Viu-me à porta do jardim, e fez um gesto convidando-me a entrar; entrei.

- Venha - disse ela -, ande ver a minha artista.

Fidélia pareceu vexada com estas palavras, e estendeu-me a mão, já livre do pincel, dizendo:

- Não olhe, não olhe que não presta.

Olhei, prestava. Está ainda em começo, e não será obra-prima; a polidez obrigava-me a achá-la excelente, e disse-lho, com um gesto de admiração; mas, em verdade, presta. O fundo, serra e céu, faz bom efeito; a água creio que terá movimento e boa cor. Faltava Tristão; não vi nem sombra do "filho pintado pela filha". Posto não estranhasse a ausência, lembrou-me insinuá-la. Disse-lhe que podia pôr na praia a figura da boa amiga, que ali estava a acompanhá-la com os seus dous olhos amigos. Esta ia a dizer alguma cousa, mas Fidélia replicou:

- Não me atrevi, por não conhecer bem a arte de figura; no colégio pintava flores e paisagens, algum pedaço de mar ou de céu. Se não fosse isso, tirava o retrato de D. Carmo.

D. Carmo confirmou:

- Eu pedi-lhe que pintasse Tristão neste quadro e ela respondeu-me a mesma cousa.

Aceitei a razão, aceitei uma cadeira vaga que ali estava, e pedi à viúva que continuasse a obra. Queria vê-la pintar. Na Europa tinha assistido ao trabalho de alguns artistas homens; era a primeira vez que uma senhora pintava diante de mim. Fidélia dispôs-se e continuou. Após alguns minutos os três falávamos de várias cousas. A viúva estava em toda a graça do costume, sem nenhum ar petulante que porventura pudesse tirar do exercício; pintava modestamente. Alguma vez interrompia o trabalho, ou para ouvir melhor, ou para dizer mais longo - e logo tornava ao pincel e à tela.

Ao cabo de alguns minutos cuidava eu de sair, quando vi aparecer à porta da casa nada menos que Tristão. A porta é larga, dá para um saguão, donde se comunica para cima por dous pequenos lanços de degraus, teto baixo. Tristão vinha de concluir a correspondência que vai mandar para o correio, segundo soube logo depois, e tornava ao lugar em que estivera, ao pé das duas. Mandou vir cadeira; a que eu ocupava era a que ele ocupava antes, e não havia outra. Talvez estes pormenores não tenham valor, mas cabem aqui para o fim de acentuar bem que Tristão estava com elas antes da minha chegada, e para lembrar que antes de vir a cadeira me consultou acerca da pintura; respondi o que cumpria.

- Não é? - disse ele contente do meu apoio.

E acrescentou algumas palavras de louvor, cálidas, sinceras decerto, que a viúva apreciou consigo naturalmente; não as contestou, também não sorriu como sucede quando a gente aprova interiormente uma cousa que lhe vai bem com a alma. Ouviu pintando, recuando ou chegando, e deitando os olhos para longe. Quando os encaminhou para ele (já então sentado) não esperou que Tristão afastasse os seus; encontrou-os e deixou-os ficar onde estavam, indo continuar a marinha com tanta atenção que era como se nós outros não falássemos de nada, e nós falávamos de muita cousa, ele acaso menos, para ver melhor a pintura.

Aquele silêncio de Fidélia, em contraste com a palestra de pouco antes, pareceu-me indicar que ela considerava a obra em atraso. Também podia ser que o amor da arte a retivesse agora mais que a princípio, e a convidasse a pintar exclusivamente. A causa secreta de um ato escapa muita vez a olhos agudos, e muito mais aos meus, que perderam com a idade a natural agudeza; mas creio que seria uma daquelas, e não há razão para descrer que fossem ambas sucessivamente.

Quem parecia contente de tudo, palavras e silêncios, era a dona da casa. Posto me desse a principal atenção, não o fazia em maneira que esquecesse a tela e os filhos. Mirava a tela e falava aos filhos com a ternura velha que já estou cansado de notar, e talvez a ternura fosse agora maior que de outras vezes; pelo menos, trazia certo alvoroço como de alma que soletra uma felicidade nova ou inesperada; não digo tudo para me não arriscar a engano.

A verdade é que eu, que pensara em sair, fui ficando, ficando, até que a viúva Noronha suspendeu o trabalho; tinha passado quase uma hora. Confessou que estava cansada, e cuidou de recolher os pincéis e cobrir a pintura, ajudada nisso pelo moço Tristão, que o fazia com a mesma graça que ela, e um desejo de bem servir, que é a alma da polidez. Eu, além de velho, não podia deixar a boa Carmo, que só os ajudou com os olhos, e ajudou-os bem; iam de um para outro, não só alegres, mais ainda interrogativos. Eles acabaram tudo e vieram sentar-se diante de nós, um cheio de riso, outra não cheia, mas tocada apenas do seu, que era igualmente agradecido e bom.

A minha presença era já longa e, apesar das relações que há entre nós, começaria a parecer indiscreta. Era tempo de sair; quis sair e ficar a um tempo, cousa impossível; vivi assim alguns instantes de impulsos contrários. Tristão podia resolver esta minha luta interior cantando alguma cousa que me obrigasse a ouvi-lo, mas estava então ocupado em dizer finezas à artista, à viúva, à irmã, a todas aquelas três pessoas consubstanciadas na mesma dama encantadora. Fidélia sorria com recato e atenção, e respondia também. Despedi-me, e achei (se não foi engano) que D. Carmo estimou a minha saída para se dar inteiramente aos dous filhos. Certo é, porém, que os três me falaram com apreço e cortesia. Vim por aí fora pensando neles.

12 de novembro

Fiz mal em não pôr aqui ontem o que trouxe de lá comigo. Creio que Tristão anda namorado de Fidélia. No meu tempo de rapaz dizia-se mordido; era mais enérgico, mas menos gracioso, e não tinha a espiritualidade da outra expressão, que é clássica. Namoro é banal, dá ideia de uma ocupação de vadios ou sensuais, mas namorado é bonito. "Ala de namorados" era a daqueles cavaleiros antigos que se bateram por amor das damas...

A minha impressão é que ele anda ou começa a andar namorado da viúva. Outra impressão que também não escrevi é que a madrinha parece perceber o mesmo, e tira daí certo alvoroço. Quando lá for agora hei de abrir todas as velas à minha sagacidade, a ver se confirmo ou desminto estas duas impressões. Pode ser engano, mas pode ser verdade.

Hoje, que não saio, vou glosar este mote. Acudo assim à necessidade de falar comigo, já que o não posso fazer com outros; é o meu mal. A índole e a vida me deram o gosto e o costume de conversar. A diplomacia me ensinou a aturar com paciência uma infinidade de sujeitos intoleráveis que este mundo nutre para os seus propósitos secretos. A aposentação me restituiu a mim mesmo; mas lá vem dia em que, não saindo de casa e cansado de ler, sou obrigado a falar, e, não podendo falar só, escrevo.

13 de novembro

Aguiar veio a mim, e disse:

- Já sei que gostou da marinha.

- Gostei muito. Está adiantada?

- Está.

- A artista não tem parado?

- Não; vai lá todos os dias e pinta com amor.

- Com amor? Essa é a corda principal dela. Não sei se já lhe disse que o que me encanta na afeição que ela tem aos senhores, e particularmente a D. Carmo, é o toque de subordinação graciosa, que lhe dá totalmente um ar de filha. É isso, é a obediência discreta e pontual com que ela acode aos desejos dos seus pais de coração.

- Diz bem, conselheiro.

Estávamos no Tesouro, aonde fomos por negócios, e saímos dali a pé, caminho do Rossio, a pegar um bonde, mas não pegamos nada. A conversação foi o melhor veículo; é desses que têm as rodas surdas e rápidas, e fazem andar sem solavancos. Viemos descendo, a continuar o assunto, e a dizer cousas interessantes; eu, pelo menos, porque ele vivia mais nos olhos e nos ouvidos que na boca. Ouvia com atenção, e alguma vez com desatenção; no segundo caso, era todo olhos, mas tão alongados, que esqueciam a rua e o companheiro.

Uma das confidências que me fez merece ser posta aqui. Para me dar razão no que lhe disse da subordinação graciosa da viúva, referiu-me que as duas costumavam ir à missa, ao domingo, na matriz da Glória; a viúva vinha sempre acompanhar D. Carmo ao Flamengo, donde tornava logo para Botafogo, se não almoçava com eles.

- Carmo, para a não obrigar a vir tão longe, ia algum domingo ouvir a missa a Botafogo, mas Fidélia vinha quase sempre à Glória.

- E agora já não vem?

- Agora Carmo é que não vai a uma nem a outra parte, ou só raro. A minha pobre mulher anda cansada; lá tem o seu livro, com as suas rezas marcadas. Ao domingo, à mesma hora, antes de catar notícias nas gazetas, pega em si e no livro, e acompanha a missa toda. Eu, que já sei a hora, não a perturbo nunca; se me acontece por acaso entrar no gabinete onde ela tem o seu altarzinho e o seu Cristo, recuo a tempo, mas não lhe arranco os olhos da página; é como se não entrasse ninguém. Acaba, beija a imagem e torna ao mundo. Não sai de casa sem a beijar primeiro, como um pedido de proteção, nem volta sem fazer o mesmo, ainda vestida e de chapéu, como a dar graças. O mesmo ao deitar e ao levantar.

Como esses, referiu Aguiar outros hábitos caseiros da consorte, que ouvi com agrado. Não seriam grandemente interessantes, mas eu tenho a alma feita em maneira que dou apreço ao mínimo, uma vez que seja sincero. Não diria isto a ninguém cara a cara, mas a ti, papel, a ti que me recebes com paciência, e alguma vez com satisfação, a ti, amigo velho, a ti digo e direi, ainda que me custe, e não me custa nada. Creio que outras damas leiam também a missa em casa, ou por fadiga, ou por doença, ou por estar chovendo, e há sempre que louvar em pessoa que respeita os seus elos espirituais. Só me aborrece a que os enfia ao modo de colar para dar melhor vista ao pescoço. Tal não é aquela boa senhora do Flamengo. A piedade dessa estende-se à memória da mãe e do pai, à saudade das amigas, e (ainda que me canse repeti-lo) à amizade dos seus dous filhos de empréstimo.

20 de novembro

Já lá voltei três vezes. Achei sempre D. Carmo, Fidélia e Tristão. Da terceira vez Aguiar chegou mais cedo, e assistiu às últimas pinceladas.

Creio que sim; creio que o moço admira menos a tela que a pintora, ou mais a pintora que a tela, à escolha. Uma ou outra hipótese, é já certo que está namorado. Chegou ao ponto de esquecer-nos e ficar preso dela, embebido nela, levado por ela. Eu, com a arte que o Diabo me deu, divido a atenção entre a mãe e os dous filhos para concertar a cortesia e a curiosidade, e ambas saem satisfeitas do meu gesto.

Quando escrevi há dias (duas ou três vezes) que "a moça Fidélia foge a alguma cousa, se não foge a si mesma", tinha em mira o afastamento em que ela vinha estando da casa da amiga. Ei-la que continua a lá ir, e a se deixar ver do irmão que a amiga lhe deu. Ou não lhe quer fugir - ou (cousa mais grave) não quer fugir a si mesma. Mas ainda não vi nada claro; parece antes perdoar.

30 de novembro

Tristão convidou-me a subir às Paineiras, amanhã; aceitei e vou.

Há dez dias não escrevo nada. Não é doença ou achaque de qualquer espécie, nem preguiça. Também não é falta de matéria, ao contrário. Nestes dez dias soube que novas cartas chamam Tristão à Europa, agora formalmente, ainda que sem instância; há eleições próximas. Tristão resolveu não ir já, antes do princípio do ano, mas não pode deixar de ir. Tais foram as novidades que me deram no Flamengo e fora dali. Fora ouvi-as da boca da graciosa Cesária, que me disse com melancolia:

- Ele gosta da Fidélia, mas é claro que lhe prefere a política.

Era a melancolia do prazer recôndito, ou como se deva dizer para explicar um achado gostoso que a gente precisa disfarçar em tristeza. Havia naquela palavra tal ou qual condenação do moço, mas só aparente; o sentido verdadeiro era o gosto de ver a dama preterida. Para encobri-lo bem, D. Cesária disse todo o mal que pensa do rapaz, e não é pouco. A graça foi a mesma de seu uso, as lembranças, agudas, as maneiras, elegantes. Ri-me naturalmente, negando ou calando. Dentro de mim achei que a opinião era injusta, mas talvez este meu conceito seja filho da afeição que vou tendo ao moço. Ela cresce-me, com a vista e a prática dos seus dotes, e naturalmente com a afeição e a confiança que me tem, ou parece ter. Seja o que for, a verdade é que não o defendi de todo, mas só em parte, e a graciosa dama apelou para o meu gosto, o equilíbrio do meu espírito, o longo conhecimento que tenho dos homens... Todas as grandes qualidades deste mundo.

1 de dezembro

Volto espantado das Paineiras. Lá fui hoje com Tristão. No fim do almoço, acima da cidade e do mar, ouvi-lhe nem mais nem menos que a confissão do amor que dedica à formosa Fidélia. Uso os seus próprios termos: dedica à formosa Fidélia. O verbo não é vivo, mas pode ser elegante e, em todo caso, exprime a unidade do destino. As teses escolares dedicam-se a pais, a parentes, a amigos; o amor é tese para uma só pessoa.

Novidade não era, a confissão é que me espantou, e provavelmente ele leu esse efeito em mim. Não lhe respondi logo, salvo por um gesto de aquiescência, preciso em tais casos, não se devendo duvidar nunca da boa escolha, ao contrário.

- Não disse isto a ninguém, conselheiro, nem à madrinha nem ao padrinho. Se lho faço aqui é que não ouso fazê-lo àqueles dous, e não tenho terceira pessoa a quem o diga. Di-lo-ia a sua irmã, se me atrevesse a tanto; mas apesar do bom trato, não lhe acho franqueza igual à sua. Parece-lhe que o meu coração escolhe bem?

- Pergunta ociosa, doutor; basta amar para escolher bem. Ao Diabo que fosse era sempre boa escolha.

- Essa é a regra, sei; mas no caso particular daquela senhora não acha que é admirável?

- Acho.

- Também assim penso; independentemente da cegueira que me daria a paixão, vejo claro que a escolha é perfeita. Já tivemos ocasião de falar nela, e combinamos no parecer. Digo-lhe até que foi esse o motivo que me levou a confessar-me hoje. Lembra-se que há algum tempo, em sua casa, almoçando...? Concordamos em achar-lhe todas as prendas morais e físicas. Compreendi que me aprovaria, e resolvi falar-lhe acerca deste sentimento e seus efeitos.

- A resposta estava dada, como diz; não há consulta nova.

- Há; ainda lhe não disse tudo.

- Pois diga o resto. Disponho-me a ouvi-lo, como se eu mesmo fosse rapaz. Gosta dela há muito tempo?

- Logo que cheguei comecei a gostar dela.

- Não reparei.

- Nem ela, nem eu também. Senti que lhe achava alguma cousa, mas a austeridade de viúva e a minha próxima volta não deixavam entender bem o que era. Poderia ser dessas preferências que se dão a mulheres, não havendo plano nem possibilidade de as receber na vida. Além dessa cousa, gostava de a ouvir falar, de lhe comunicar ideias e observações, e todas as nossas conversas eram interessantes. Os seus modos, aquele gesto de acordo manso e calado, tudo me prendia. Um dia entrei a pensar nela com tal insistência que desconfiei. Recorda-se quando resolvi ir à fazenda de Santa-Pia com ela e o tio?

- Recordo-me.

- Era já a dificuldade de ficar aqui sem ela, não sabia por quanto tempo; e depois contava que na roça, mais a sós, chegaria a fazer-lhe sentir tudo o que me pesava e dispô-la a ouvir-me. Resolução perdida; ela não foi e eu tive de acompanhar o desembargador sozinho; pouco depois voltei...

- Lembra-me.

Tristão deteve-se naquele ponto e estendeu os olhos abaixo e ao longo. Um criado veio servir-nos café, enquanto dous grandes pássaros negros cortavam o ar, um atrás do outro. Podia ser um casal, ele que a perseguia, ela que negava. Então eu, para sorrir da confidência, sugeri a ideia de que a bela Fidélia estivesse a fazer o mesmo gesto da ave fugitiva; talvez já gostasse dele. Não me retrucou sim, nem não, mas a expressão do rosto era negativa, e eu, para não perder o resto, perguntei-lhe:

- Quem lhe diz que não, doutor?

A curiosidade ia-me fazendo deslizar da discrição, e acaso da compostura; nem só a curiosidade, um pouco de temperamento também. Tem-se visto muito rapaz falar de damas amadas, e muita viúva sair da viuvez ou ficar nela. Naquele caso os dous personagens davam interesse especial à aventura. Cá me acordava a afirmação de mana Rita. Que Fidélia não casa. Que não casará nunca. A situação de ambos, a vida que chama Tristão para fora daqui, a morte que prende a viúva à terra e às suas saudades, tudo somava o interesse da aventura, não contando que a esses motivos de separação, eu próprio ia-me a outros de união possível dos dous.

Tristão não se deixou rogar muito; desfiou vários dos seus enganos e desenganos. Custou-lhe a princípio, mas, dito um caso, vieram outros, e com pouco sabia eu que aparências iludiram as suas esperanças, e que desilusões as mataram. Agora crê deveras o pior.

Não lhe dei as minhas razões contrárias; podiam não ser mais que aparências. Também não aludi às suspeitas que atribuo à madrinha e ao padrinho; eles podem enganar-se como eu. Ao demais - e é o principal - isso viria dando ao meu papel aspeto menos grave do que convinha. Basta que já aquela conversação lhe fosse deitando as manguinhas de fora - e a mim também; no fim dos charutos, estávamos quase como dous estudantes do primeiro ano e do primeiro namoro, ainda que com outro estilo.

Creio que, ao descer, vinha arrependido ou vexado da confissão; trocou de assunto, conversamos de cousas alheias, do trem e da estrada, do mato e do morro, e cá embaixo um pouco da política de ambos os países.

2 de dezembro

Uma observação. Como é que Tristão foi tão franco ontem nas Paineiras, e tão cauteloso naquele dia do largo de São Francisco, onde dei com ele embebido a ver entrar a moça no carro? "Grande talento!" exclamou então, o talento de pianista, que ela não levava nas saias. E já então gostava dela, pelo que lhe ouvi ontem, visto que começou a querer-lhe pouco depois de chegado. A razão é que só agora a paixão subiu tão alto; isso, e a confiança que lhe inspiro. Não se pôde conter, é o que foi.

3 de dezembro

Aires amigo, confessa que, ouvindo ao moço Tristão a dor de não ser amado, sentiste tal ou qual prazer, que aliás não foi longo nem se repetiu. Tu não a queres para ti, mas terias algum desgosto em a saber apaixonada dele; explica-te se podes; não podes. Logo depois entraste em ti mesmo, e viste que nenhuma lei divina impede a felicidade de ambos, se ambos a quiserem ter juntos. A questão é querê-lo, e ela parece que o não quer.

5 de dezembro

A marinha está quase pronta. Mana Rita veio encantada da tela, da autora e da dona, porque Fidélia destina a obra a D. Carmo. Esteve só com as duas amigas; não achou lá Tristão nem Aguiar, e conversaram as três longamente, até que a viúva se despediu e tornou para Botafogo, apesar de instada para jantar no Flamengo; não podia e partiu antes de cair a tarde.

Rita ficou e ainda bem que ficou, porque ouviu a D. Carmo a notícia do amor de Tristão, com um acréscimo que aqui vai para ligar ao que escrevi nestes últimos dias. Esse acréscimo é nada menos que o desejo de D. Carmo é de os ver casados.

- Digo isto só à senhora e peço-lhe que não conte a ninguém - acabou D. Carmo -, eu gostaria de os ver casados, não só porque se merecem, como pela amizade que lhes tenho e que eles me pagam do mesmo modo.

Rita achou que D. Carmo dizia verdade, e achou mais que, casando-os, teria assim um meio de prender o filho aqui. A mana é dessas pessoas que não podem reter o que pensam, e confiou logo o achado à amiga. D. Carmo sorriu com expressão de acordo; e foi o que pensou e me disse a própria Rita. Também assim me pareceu, mas eu quis deitar a minha gota de fel do costume, e disse:

- Talvez a terceira razão seja a principal, se não foi única.

Rita acudiu que não. Única não era, não podia ser. Eu, por maldade e riso, teimei que sim, mas dentro de mim acabei concordando com ela. As três razões podiam combinar-se bem naquela senhora. A última, quando muito, daria maior alma às duas primeiras: era natural. Não tardaria a perder o filho postiço, que se vai embora, e a filha de empréstimo pode vir a amar outro e casar, e ainda que não saia daqui, seguirá outra família. Unidos os dous aqui, amados aqui, tê-los-ia ela abraçados ao próprio peito, e eles a ajudariam a morrer. Resumo assim o que pensei e agora confirmo, acrescentando que o confiei também à mana.

- O que eu disse há pouco foi por gracejo; acho que você tem razão. E parece-lhe que ela alcance o que deseja?

- Não afirmo nem nego, mas já me parece difícil; aqui está por quê. Tristão e Aguiar chegaram pouco antes da hora de jantar, e jantamos. Aguiar indagou da pintura, D. Carmo respondeu-lhe, ele ouviu com interesse, e creio que ele e ela olharam alguma vez para o afilhado; Tristão não dizia nada; parecia até não atender ao que eles diziam.

- Talvez fingisse.

- No fim do jantar, antes do café, Tristão declarou aos padrinhos que talvez parta antes do fim do ano...

- Antes?

- Antes.

- E eles não sabiam?

- Parece que não, porque ficaram desconsolados, e o jantar acabou triste.

- Mas como é que ele não dissera isso ao padrinho, vindo com ele de fora?

- Não vieram juntos; Tristão chegou depois do Aguiar. Pensávamos até que jantasse fora de casa. Foi assim; no fim deu notícia da partida. Contou que uma carta atrasada... mas não mostrou a carta; terá mostrado depois que saí de lá.

Pensei comigo, e expliquei:

- Mana, pode ser até que não haja carta nenhuma; ele foge-lhe, não tem esperanças, quer ir quanto antes. Já isso de chegar tarde a casa prova que não quer encontrar a viúva; é o que é. Os dous velhos não procuraram dissuadi-lo da resolução?

- A princípio não disseram nada; ficaram acabrunhados. Depois o Aguiar entrou a dizer alguma cousa, que D. Carmo ouviu e apoiou apenas com os olhos; estava triste, e para me não deixar só, falava comigo; eu respondia apertando-lhe os dedos com piedade sincera. Olhe, mano, até eu cuidei de pedir ao rapaz que se demorasse mais tempo. Ele agradeceu a minha intervenção com um sorriso também triste, mas declarou que não podia; pedem-lhe muito que volte.

- Bem - disse eu rindo -, você mostrou aí que se compadeceu da amiga D. Carmo, mas você esquece agora neste mês de dezembro a aposta que fez comigo no princípio de janeiro. Não se lembra do que me disse no cemitério? Não apostou que a viúva Noronha não tornaria a casar? Como é que pediu hoje ao Tristão que ficasse - com o pensamento íntimo de o ver casar com ela?

Concluí pegando-lhe no queixo e levantando-lhe o rosto para mim, que estava de pé. A mana confessou a contradição e explicou-a. Antes de tudo, o seu pensamento era poupar a tristeza da amiga; seriam alguns dias ou semanas mais que passariam juntos, eles e o afilhado. Mas bem podia ser também que Fidélia, aconselhada por eles, acabasse desposando Tristão; as circunstâncias seriam outras.

- Logo, eu tinha razão naquele dia?

- Inteiramente não; mas tudo pode acontecer neste mundo.

- Neste mundo e no outro.

Quis acabar a conversação notando-lhe que, a despeito do pedido de D. Carmo, quando lhe confiou a intenção recôndita e lhe recomendou segredo, ela acabava de me revelar tudo; mas o coração tolheu-me o remoque, por mais fraternal e inocente que me saísse. Podia ressentir-se, e ela não o merece; ela é boa.

Em resumo, pode ser que Rita tivesse razão no cemitério. Se a viúva Noronha, como lá escrevi há dias, foge a si mesma, é que tem medo de cair e prefere a viuvez ao outro estado.

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