Memorial de Aires
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
22 de setembro
... encantadora Fidélia! Não escrevo isto porque a deseje, mas porque é assim mesmo: encantadora! Pois não é que esta criatura de Deus, encontrando-se comigo de manhã, veio agradecer-me a companhia que fiz aos seus amigos do Flamengo, na noite de 18?
- Não tive merecimento nisso; fui lá, achei-os sós, passei a noite.
- Isso mesmo. D. Carmo disse-me que, se não foi uma noite cheia, foi só por lhe faltarmos o Dr. Tristão e eu, mas que, ainda assim, o senhor teve o dom de nos fazer esquecer.
Sorri incredulamente, depois expliquei o caso, dizendo que, se os fiz esquecer, foi por serem eles o próprio assunto da conversação...
- Isso é que ela não me disse - interrompeu Fidélia espantada.
- Nem dirá; nem lho pergunte. O melhor é crer que eu, com os meus cabelos brancos, ajudei a encher o tempo. A senhora não sabe o que podem dizer três velhos juntos, se alguma vez sentiram e pensaram alguma cousa.
- Sei, sei, já tenho visto e ouvido os três.
- Mas nessas ocasiões a senhora dá outra nota recente e viva à conversação.
Era verdade e era cumprimento; Fidélia sorriu agradecida e despediu-se. Eu - aqui o digo ante Deus e o Diabo, se também este senhor me vê a encher o meu caderno de lembranças -, eu deixei-me ir atrás dela. Não era curiosidade, menos ainda outra cousa, era puro gosto estético. Tinha graça andando; era o que lá disse acima: encantadora. Não fazia crer que o sabia, mas devia sabê-lo. Ainda não encontrei encantadora que o não soubesse. A simples suposição de o ser tenta persuadir que o é.
No largo de São Francisco estava um carro dela, perto da igreja. Íamos da rua do Ouvidor, a dez passos de distância ou pouco mais. Parei na esquina, vi-a caminhar, parar, falar ao cocheiro, entrar no carro, que partiu logo pela travessa, naturalmente para os lados de Botafogo. Quando ia a voltar dei com o moço Tristão, que ainda olhava para o carro, no meio do largo, como se a tivesse visto entrar. Ele vinha agora para a rua do Ouvidor, e também me viu; detive-me à espera. Tristão trazia os olhos deslumbrados, e esta palavra na boca:
- Grande talento!
Percebi que se referia ao talento musical, e nem por isso fiquei menos espantado; quase me esqueceu concordar com ele. Concordei de gesto e de palavra, sem entender nada. Também eu gosto de música, e sinto não tocar alguma cousa para me aliviar da solidão; entretanto, se fosse ele, e apesar de todos os Schumanns e seus êmulos, ao vê-la parar no largo de São Francisco e entrar no carro, não soltaria a mesma exclamação, antes outra, igualmente estética, é verdade, mas de uma estética visual, não auditiva. Não entendi logo.
Depois, quando nos separamos na esquina da rua da Quitanda, entrei a cogitar se ele, ao dar comigo, compôs aquela palavra para o fim de mostrar que, mais que tudo, admira nela a arte musical. Pode ser isto; há nele muita compostura e alguma dissimulação. Não quis parecer admirador de pés bonitos; referiu-se aos dedos hábeis. Tudo vinha a dar na mesma pessoa.
30 de setembro
Se eu estivesse a escrever uma novela, riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste mês. Uma novela não permitiria aquela paridade de sucessos. Em ambos esses dias - que então chamaria capítulos - encontrei na rua a viúva Noronha, trocamos algumas palavras, vi-a entrar no bonde ou no carro, e partir; logo dei com dous sujeitos que pareciam admirá-la. Riscaria os dous capítulos, ou os faria muito diversos um de outro; em todo caso diminuiria a verdade exata, que aqui me parece mais útil que na obra de imaginação.
Já lá vão muitas páginas falei das simetrias que há na vida, citando os casos de Osório e de Fidélia, ambos com os pais doentes fora daqui, e daqui saindo para eles, cada um por sua parte. Tudo isso repugna às composições imaginadas, que pedem variedade e até contradição nos termos. A vida, entretanto, é assim mesmo, uma repetição de atos e meneios, como nas recepções, comidas, visitas e outros folgares; nos trabalhos é a mesma cousa. Os sucessos, por mais que o acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais no tempo e nas circunstâncias; assim a história, assim o resto.
Dou estas satisfações a mim mesmo, a fim de mencionar o meu joelho doente, tal qual o de D. Carmo. Outra paridade de situações... Há duas diferenças. A primeira é que nela o mal é puro e confessado reumatismo. Em mim também, mas o meu criado José chama-lhe nevralgia, ou por mais elegante ou por menos doloroso; é um dos seus modos de amar o patrão. A segunda diferença...
A segunda diferença - ai, Deus! A segunda diferença é que, ainda que lhe doa muito o joelho, D. Carmo lá tem o marido e os dous filhos postiços. Eu tenho a mulher embaixo do chão de Viena e nenhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar alguma cousa - mas fala tardo, pouco e fúnebre. Eu mesmo, relendo estas últimas linhas, pareço-me um coveiro.
Mana Rita não me veio visitar, porque não sabe nada, e provavelmente não tem saído; sei que está boa. O meu mal começou há sete dias. Durmo bem às noites, mas não me faz bem andar, dói-me. Amanhã, se não acordar pior, saio.
2 de outubro
Estou melhor, mas choveu e não saí.
3 de outubro
- Foi um duelo entre mim e a velhice, que me disparou esta bala no joelho; uma dor reumática. Já sei que vem jantar comigo?
O desembargador respondeu que não; disseram-lhe que eu estava doente e vinha saber o que era. D. Carmo também está melhor do joelho, disse-me. Já sai, mas pouco, pela praia do Flamengo, até à do Russel.
- Sempre com a amiguinha, não?
- Nem sempre; lá tem o seu Tristão que a acompanha de manhã. Fidélia manda-lhe visitas, e pode ser que Aguiar venha cá hoje; souberam ontem, à noite, como eu.
Logo depois contou-me Campos que a sobrinha queria ir passar algum tempo à fazenda.
- Os libertos, apesar da amizade que lhe têm ou dizem ter, começaram a deixar o trabalho, e ela quer ver como está aquilo antes de concluir a venda de tudo.
Não entendi bem, mas não me cabia pedir explicação. Campos incumbiu-se de me dizer que também ele não entendia bem a ideia da sobrinha, e acrescentou que, por gosto, ela partiria já. A doença de D. Carmo é que a fez aceitar o que lhe propôs o tio, a saber, que adiassem a viagem para as férias.
- Iremos pelas férias - concluiu ele -; provavelmente já o trabalho estará parado de todo; o administrador, que não tem tido força para deter a saída dos libertos até hoje, não a terá até então. Fidélia cuida que a presença dela bastará para suspender o abandono.
- Logo, se for mais depressa... - aventurei eu, querendo sorrir.
- Foi o argumento dela; eu creio que não será tanto assim, e, como tenho de a acompanhar, prefiro dezembro a outubro. Quer-me parecer que ela teme menos a fuga dos libertos que outra cousa...
Não acabou; levantou-se para concertar um laço da cortina, e voltou coçando o queixo e olhando para o teto. Sentou-se e cruzou as pernas. Eu, para me não deixar ir a perguntas, peguei do gesto do desembargador, dizendo-lhe que ele acabava de fazer com as pernas o que ainda me custaria um pouco; mas foi como se falasse à cortina, ao laço ou à palhinha do chão. Campos não me respondeu nem provavelmente me ouviu. Ergueu-se, disse que estimava as minhas melhoras e despediu-se até breve. Teimei que jantasse.
- Não posso; tenho gente de fora; o Tristão janta comigo.
Para lhe mostrar que convalescia, fui ao patamar pisando rijo. Agradeci-lhe o obséquio da visita, e tornei à sala, com a viúva diante dos olhos, caminho da fazenda. Mas que terá que a faça ir meter-se na fazenda, com meia dúzia de libertos, se ainda achar alguns? Pouco depois, outra visita, o Aguiar, que me trazia lembranças da mulher. Estimou ver-me de pé, no meio da sala.
- Não valia a pena - disse-lhe -; foi uma cousa de nada, estou quase bom, e hoje mesmo, se a chuva parar, como está querendo, lá vou levá-lo à casa, depois do jantar. Janta comigo?
- Não posso; tenho gente de fora. Uma das pessoas não me impediria, é a Fidélia, que lá janta conosco, e é quase da família. Mas vai também um colega do banco.
- Pois irei tomar chá.
- Vá, se quer, mas não faça isso, é o meu conselho. Ainda que não chova, sempre haverá umidade, e para reumatismo...
- Mas D. Carmo tem saído, creio.
- Tem, e pode-se dizer que está boa. Apesar disso, já hoje não saiu, por causa do tempo. Vá, se quer; eu no seu caso não saía.
Aguiar não disse mais nada, e despediu-se. Pareceu-me (ou foi ilusão) que ele queria acrescentar alguma cousa e não acabou de querer. Não sei que seria. Não sentisse eu mesmo algum medo da umidade e iria vê-los à noite, mas a umidade é certa, e creio que a chuva também. Fico em casa. Se aparecer algum enxadrista, jogarei xadrez; se apenas jogar cartas, cartas. Se não vier ninguém, atiro-me a compor um poema de cabeça.
6 de outubro
Mana Rita, mana Rita
Foi a última visita,
e o resto do poema em prosa, que a minha musa não dá para mais. Foi assim que o compus, não na outra noite, a de 3, mas na de hoje, 6, depois de levar a mana a Andaraí. Apareceu-me aqui de manhã. Já outros, amigos e até indiferentes, me tinham visitado, como aquele Dr. Faria, que me deixou lembranças da mulher, e o corretor Miranda, que também mas trouxe da sua. Tristão esteve cá anteontem, e eu saí à tarde e ontem de manhã. Estou bom, nem por isso deixei de lhe chamar ingrata. Rita confessou-me que há mais de três semanas não sai de casa para ver se tinha um irmão que se lembrasse dela.
- Tinha e tem - retorqui-lhe -, mas um irmão que só agora convalesceu de todo.
Contei-lhe a dor e a reclusão. Rita, que a princípio não queria crer e ria, acabou convencida e contristada. Censurou-me naturalmente; eu disse-lhe que continuava a guardá-la para a doença mortal e última. Assim trocamos muitas palavras amigas e doces, algumas alegres. Como lhe perguntasse se estivera com a gente Aguiar ou com a família Campos, respondeu-me que não. Se fosse a uma daquelas casas teria sabido do meu incômodo, e não receberia a notícia aqui, acrescentou.
- Então você não sabe nada do projeto de ir à fazenda? - perguntei-lhe.
- Projeto de quem?
- Da viúva Noronha.
- Ir à fazenda?
- Sim, ir a Santa-Pia, para ver como andam lá as cousas; parece que os libertos estão abandonando a roça. Foi o que me disse o tio da viúva.
- Não ouvi dizer nada. Há perto de um mês que não saio de casa. Mas o tio por que não vai?
- O tio vai, mas é com ela; a sobrinha quer a companhia dele, mas só a companhia, parece, não quererá também a colaboração. Vão pelas férias. Eu não compreendo esta necessidade de ir ela mesma, quando era melhor um homem.
Rita quis ir saber da própria Fidélia. Ponderei-lhe que era indiscreto, e faria crer da nossa parte alguma curiosidade. Saiu a voltas, e tornou. Confesso uma cousa; depois que a vi sair imaginei se teria ido saber da viúva ou dos amigos a verdadeira causa da viagem, e disse-lho ao jantar. Ela ficou séria e abanou a cabeça. Se me tem jurado que não, é provável que me enterrasse o espinho da dúvida, mas falou com simplicidade, e nomeou as visitas que fez. Uma delas foi a D. Carmo.
- Carmo está sã como um pero - disse-me -; recebeu-me rindo como só ela sabe rir, um rir de dentro, tão simples, tão franco... Falamos de Fidélia, falamos de Tristão, ela com a ternura e amizade que você já lhe tem visto.
- Ainda não sabe da viagem à fazenda?
- Sabe, e parece que nem esperam as férias; é daqui a dias. Sabe da viagem e do motivo, e aprova; diz que a viúva tem muito prestígio entre os libertos. Se pudesse iria também, mas Aguiar não ficaria só, e ele não pode deixar agora o banco.
- Mas ele não ficaria só; o Tristão aí está.
- Não, por duas razões; a primeira é que Tristão nem ninguém supre a boa Carmo. A viagem que ela fez este ano a Nova Friburgo custou muito ao marido. Não foi ela que me disse isto; eu é que soube, e percebe-se, todos sabem; Aguiar sem Carmo é nada. A segunda razão é que o próprio Tristão está com vontade de acompanhar o desembargador e Fidélia; nunca viu uma fazenda, e tem vontade, antes de voltar para Lisboa...
- E a nossa amiga, diante desse eclipse dos dous, não está aborrecida?
- Foi o que lhe perguntei; disse-me que é por poucos dias, e espera; em todo caso, se houver demora dos outros, Tristão virá embora. Quer passar com ela e o marido o mais tempo que puder.
Mana Rita (percebe-se) está com vontade de achar algum defeito grande no afilhado do Aguiar, mas não acha nenhum, grande ou pequeno, e pesa-lho. O bem que diz dele é repetição confessada do que ouviu. Eu não penso mal, antes bem, creio que já o escrevi em algumas destas páginas; mas não disse se bem nem mal. Deixei-me ficar a condenar o meu pobre jantar, que foi ruim, só o frango prestou e a fruta, menos as peras...
Ao café, mana Rita contou-me algumas anedotas de Andaraí, aonde a fui levar, seriam dez horas, e donde voltei para escrever isto, acabar e repetir como principiei:
Mana Rita, mana Rita
Foi a última visita,
10 de outubro
Entendam lá mulheres! Tanta necessidade de ir à fazenda e já. Campos alcança uma licença de alguns dias, Tristão apronta a mala, e, tudo feito, cessa a necessidade de partir. Foram só o Campos e o Tristão. Tal a notícia que me deram as duas (Carmo e Fidélia) hoje, à tarde, quando eu ia a entrar no jardim da casa do Flamengo. As duas vinham chegando ao portão.
- Não fui - confirmou Fidélia as primeiras palavras de D. Carmo -. Um homem basta e sobra, e acaba depressa todas as dúvidas. Também as notícias agora são melhores.
- Lucram os seus amigos - retorqui.
D. Carmo disse o mesmo que eu, mas sem palavras, com os olhos apenas. Como iam a passeio, dispus-me a acompanhá-las, depois de algumas notícias que trocamos, D. Carmo e eu, sobre os nossos reumatismos; estamos bons. As duas iam de braço, eu ao lado, entre elas e o mar, que não batia com força. A conversação não foi constante, porque a viúva levava os olhos no chão. A amiga falava-me, mas olhava de quando em quando para ela, e eu também. Fidélia falava pouco, e só então olhava para a outra.
O passeio foi curto; tornei com elas ao jardim, aonde pouco depois chegou Aguiar trazendo cartas de Lisboa para Tristão, três ou quatro. Conhecia a letra de uma, era do pai, e provavelmente havia dentro outra da mãe, tão volumosa era. A ideia de as mandar para Santa-Pia passara-lhe pela cabeça, mas recuou por não saber se o rapaz voltará amanhã ou depois, ou se ficará mais tempo. Se voltar já, espera; se ficar, manda-lhas. Queria consultar a mulher.
D. Carmo achou mais prático escrever-lhe um bilhete perguntando quando conta vir, para lhe mandar ou não a correspondência. Fidélia não sabia nada da volta do tio. Acha provável que fique alguns dias mais para dar as últimas providências e coligir as notas necessárias à venda da casa e das terras; ia vendê-las, por intermédio do Banco do Sul, mas nem ela nem Aguiar sabiam nada positivamente.
Eu, convidado a opinar, disse que o rapaz, sabendo de correspondência numerosa e presumindo alguma dela política, pediria logo a remessa, se não viesse abri-la em pessoa. A segunda hipótese não foi mal acolhida pela madrinha; pareceu-lhe certa. Ao cabo, que faria ele lá depois de ver a fazenda? A fazenda naturalmente via-se depressa, não tendo ele nenhuma cousa de recordação pessoal, ou costume velho que reviver. Assim disse eu, ou por outras palavras, e os dous concordaram comigo. Como perguntasse a Fidélia se não sentiria saudades da casa em que nasceu e se criou, respondeu-me que sim, mas já não terá gosto em lá viver.
- Aquilo agora é para mãos de homem - concluiu.
Estas palavras foram ouvidas por D. Carmo, com vivo prazer. Aguiar provavelmente teria a mesma sensação, mas saíra à calçada para falar a um vizinho, e não as ouviu. Quando voltou, achou que me despedia das duas senhoras, e nem por isso deixou de me pedir que ficasse e jantasse. Recusei, e saí. Andando, ouvi que ele dizia à mulher e à amiga:
- Quem sabe o que trarão estas cartas?
Em caminho, arrependi-me de não ter ficado para jantar. Ouviria o grande talento que arrancou a voz exclamativa ao Tristão. Não seria novo para mim, mas seria mais uma vez, conquanto pareça que ela anda a recusar-se agora ao piano. É verdade que talvez os dous a vão levar à noite a Botafogo. Também pode ser que ela durma ali hoje, em casa dos pais postiços.
12 de outubro
Aguiar e D. Carmo foram ontem levar a amiga a Botafogo, e voltaram cedo. Assim o soube hoje por ele, à porta do Banco, onde me achava a conversar com o corretor Miranda. Nenhuma notícia de Tristão, mas o bilhete do padrinho já está no correio, e segue hoje mesmo para Santa-Pia.
Que as asas postais o levem, digo eu aqui neste cantinho de papel, sem advertir no rebuscado da imagem. Advirto agora, e não a risco nem substituo; asas postais servem, uma vez que vão ter à fazenda e não percam o bilhete em caminho. Quer-me parecer que também eu estou curioso de saber o que trazem as tais cartas de Lisboa, curioso apenas, e aliás não admira que desta vez são numerosas e bastas; escrevem-se geralmente pouco. Seja o que for, os dous velhos estão ansiosos de saber se o mandam voltar de cá. Não o dizem, mas vê-se.
Miranda continuou a dizer das saudades que a mulher, a cunhada Cesária, o cunhado Faria, toda a casa dele tem de mim; - cousas que ouvi agradecido, prometendo ir devolvê-las em pessoa um dia destes. Em suma, o corretor não é mau homem, e já me serviu uma vez em negócio do seu ofício. Usa a nota alegre, sem juvenilidade, e acha grande interesse em cousas que nenhum têm.
13 de outubro
Campos escreveu à sobrinha, referindo-lhe o estado da fazenda, e contando os passeios que deu por ela com o moço Tristão. Este é curioso e discreto no exame das cousas que vê e nas notícias que pede. Lá está o capelão, e mais o juiz municipal. A carta é anterior ao bilhete do Aguiar, não fala nele, mas diz que Tristão não se demorará muito; conta vir daqui a dias.
D. Carmo espera que os dias serão abreviados logo que ele receba o bilhete do marido. Não mo disse a mim, quando lá estive ontem, à noite, nem o ouvi a ninguém; eu é que pensei haver-lho lido no rosto. A carta do desembargador foi-lhe levada pela própria Fidélia, que lá estava ontem, e desta vez tocou piano, não sei se tão bem como Tristão, mas bem; os dous podiam tocar juntos. Éramos apenas cinco; o estudante primo de Fidélia viera trazê-la e tornou com ela para Botafogo, às dez horas.
17 de outubro
Chegou Tristão. Ignoro o que terá lido nas cartas de Lisboa, não falei a nenhuma das pessoas que poderiam sabê-lo. Irei ao Flamengo um dia destes, amanhã.
Hoje conto não sair de casa, que faço anos. Chego aos meus sessenta e... Não escrevas todo o algarismo, querido velho; basta que o saiba teu coração e vá sendo contado pelo Tempo no livro de lucros e perdas. Não escrevas tudo, querido amigo.
Não saio de casa. Se a mana Rita vier jantar, como fez o ano passado, irei levá-la à noite a Andaraí. Se não vier, deixo-me ficar sozinho.
Vou ocupar o tempo em reler uns papéis velhos que o meu criado José achou dentro de uma velha mala e me trouxe agora. A cara dele tinha a expressão de prazer que dá o serviço inesperado; aquele gosto de descobrir papéis que podem ser importantes fazia-o risonho, olhos escancarados, quase comovido.
- V. Ex.a talvez os procure há muito tempo.
Eram cartas, apontamentos, minutas, contas, um inferno de lembranças que era melhor não se terem achado. Que perdia eu sem elas? Já não curava delas; provavelmente não me fariam falta. Agora estou entre estes dous extremos, ou lê-las primeiro, ou queimá-las já. Inclino-me ao segundo. Ante mim continuava o meu José com a mesma expressão de gosto que lhe deu o achado. Naturalmente agradecia à sua boa Fortuna que lho deparou; contará que é mais um elo que nos prenda. Talvez a ideia que o levou à mala fosse a esperança de algum valor extraviado, uma joia, por exemplo, ou ainda menos, uma camisa, um colete, um lenço, e sendo assim o silêncio era muito possível. Achou papéis velhos, veio fielmente entregar-mos.
Não lhe quero mal por isso. Não lho quis no dia em que descobri que ele me levava dos coletes, ao escová-los, dous ou três tostões por dia. Foi há dous meses, e possivelmente já o faria antes, desde que entrou cá em casa. Não me zanguei com ele; tratei de acautelar os níqueis, isso sim; mas, para que não se creia descoberto, lá deixo alguns, uma vez ou outra, que ele pontualmente diminui; não me vendo zangar é provável que me chame nomes feios, descuidado, tonto, papalvo que seja... Não lhe quero mal do furto nem dos nomes. Ele serve bem e gosta de mim; podia levar mais e chamar-me pior.
Resolvo mandar queimar os papéis, ainda que dê grande mágoa ao José, que imaginou haver achado recordações grandes e saudades. Poderia dizer-lhe que a gente traz na cabeça outros papéis velhos que não ardem nunca nem se perdem por malas antigas; não me entenderia.
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