Romance

Memorial de Aires

1908

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.

De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).

A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".

O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.

A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.

Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"

Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

janeiro de 2011

Seis horas da tarde

Antes de ir para a mesa, escrevo a confirmação do que conjeturei de manhã; Fidélia efetivamente acordou os ecos da casa e da rua. Contou-mo há pouco o próprio desembargador Campos. A diferença é que não foi às dez horas e meia, mas às sete. Campos estava ainda na cama, quando ouviu os primeiros acordes de uma composição conhecida, parece que italiana. Não chegou a crer que fosse ela, mas não podia ser outra pessoa. Um criado, chamado por ele, veio dizer-lhe que sim, que era ela mesma. Tocou algum tempo. Quando ele entrou na sala, tinha acabado, mas estava ainda ao piano, ante um folheto de músicas aberto, a soletrar para si.

- Que é isto? - perguntou-lhe.

- Ouviu tocar? - disse ela fazendo rodar o banco.

- Ouvi.

- Creio que desaprendi alguma cousa; sinto os dedos um pouco tolhidos, já os senti assim ontem; a composição é que me não esqueceu.

- Mas que ressurreição é esta?

- Cousas de defunta - respondeu ela querendo sorrir.

Posto não seja grande apreciador de música, o desembargador parece satisfeito daquela ressurreição, como lhe chama. Tudo é viver com mais ou menos barulho, disse ele. Confessou-me que a tristeza da sobrinha o aflige muita vez, e a não levá-la a bailes ou teatros, contentava-se de a ver tocar em casa, e até cantar se quisesse; Fidélia também sabe cantar, tem muita arte e linda voz. Mas até agora não queria uma cousa nem outra.

Não é que não encha a casa consigo mesma, sem música; a música, porém, era uma das suas ocupações de outrora, e a abstenção data da viuvez.

Quis ponderar ao desembargador que o exercício da música podia conciliar-se muito bem com o estado, uma vez que a arte é também língua, mas tudo isso me passou rápido pela cabeça. Era acaso poético para um magistrado, sem contar que podia ser indiscreto também. Contentei-me de aceitar o convite que ele me fez de ir ouvi-la, em casa dele, hoje, amanhã, depois, quando queira.

- Uma destas noites - concordei.

Por enquanto, vou jantar. Creio que não saio mais hoje; mas que hei de fazer com estes pobres olhos? Ler é piorá-los; ah! Se eu soubesse música! Pegava do violino, trancava bem as portas para não ser ouvido pela vizinhança, e deixava-me ir atrás do arco. Talvez saia a passeio...

2 de setembro

Aniversário da batalha de Sedan. Talvez vá à casa do desembargador pedir a Fidélia que, em comemoração da vitória prussiana, nos dê um pedaço de Wagner.

3 de setembro

Nem Wagner, nem outro. Tristão estava lá e deu-nos um trecho de Tannhäuser, mas a viúva Noronha recusou o pedido. Supondo que fosse luto pela lembrança da derrota francesa, pedi-lhe um autor francês qualquer, antigo ou moderno, posto que a arte - disse-lhe com alguma afetação - naturaliza a todos na mesma pátria superior. Sorriu e não tocou; tinha um pouco de dor de cabeça. Aguiar e Carmo, que lá estavam também, não me acompanharam no pedido, como "se lhes doesse a cabeça da amiga". Outra preciosidade de estilo, esta renovada de Sévigné. Emenda essa língua, velho diplomata.

A razão verdadeira da recusa pode não ser dor de cabeça nem de outra qualquer parte. Quer-me parecer que Fidélia vai um tanto comigo, e tocaria para si, caso estivesse só. Naquela outra noite, em casa do Aguiar, deixou-se arrastar e tocar para as doze pessoas que lá estavam, levada do sobressalto, de um acordar do gosto antigo; agora abana a cabeça, não quer divertir os outros. Tocará para o tio, de manhã, e para si durante as horas de desembargo. Quando muito satisfará os dous pais postiços, alguma vez. Sinal de que não tinha dor de cabeça é que ouviu a Tristão com evidente prazer, e aplaudiu sorrindo. Não digo que a música não tenha o dom de fazer esquecer um mal físico, mas desconfio que não foi assim neste caso.

Os dous conversaram de Wagner e de outros autores, com interesse, e provavelmente com acerto. Eu falei também o meu pouco; depois atendi ao que me disse Aguiar, acerca de Tristão.

- Parece que vem liquidar também alguns negócios do pai; soube hoje por ele mesmo. Deus queira que não acabe tão cedo.

- Deus também ama a chicana, quem sabe?

- Não são negócios do foro; e se algum chegar lá, provavelmente ele deixa procurador aqui. Sabe já que ele vai entrar na Câmara?

- Sei; disse-me que aceitou de alguns chefes de Lisboa elegê-lo deputado.

- Carmo, que queria prendê-lo por um ano ou mais, ficou aborrecida e triste, e eu, com ela. Trocamos os nossos aborrecimentos, quero dizer que os somamos, e ficamos com o dobro cada um...

Gostei desta palavra de Aguiar, e decorei-a bem para me não esquecer e escrevê-la aqui. Aquele gerente de banco não perdeu o vício poético. É bom homem; creio que já o escrevi alguma vez, mas lá vai ainda agora. Não perco nada em repeti-lo.

Falávamos a um canto da sala, onde Campos e Tristão foram ter conosco, deixando as duas damas entregues uma à outra. E eu cá de longe fiquei a mirá-las, encantadoras naquela expressão de si mesmas. A harmonia dos cabelos brancos de uma e dos cabelos pretos de outra, as vozes que trocavam baixo sorrindo, com os olhos brandos e amigos, tudo isso me faria perguntar a mim mesmo, por que não eram realmente mãe e filha, esta casada com algum rapaz que a merecesse, e aquela casada ou viúva, não importa; consolar-se-ia do marido perdido com a filha eterna. Toda filha moça é eterna para as mães envelhecidas. Mas ainda uma vez notei que pareciam antes irmãs, tal a arte de D. Carmo em se fazer moça com as moças. A matéria da conversação não sei qual fosse, nem vale a pena cogitá-la; não daria mais interesse ao grupo. De uma vez, demorando-se Fidélia em concertar a posição do broche, D. Carmo substituiu-lhe os dedos pelos seus, e concertou-lha de todo.

4 de setembro

Relendo o dia de ontem fiz comigo uma reflexão que escrevo aqui para me lembrar mais tarde. Quem sabe se aquela afeição de D. Carmo, tão meticulosa e tão serviçal, não acabará fazendo dano à bela Fidélia? A carreira desta, apesar de viúva, é o casamento; está na idade de casar, e pode aparecer alguém que realmente a queira por esposa. Não falo de mim, Deus meu, que apenas tive veleidades sexagenárias; digo alguém de verdade, pessoa que possa e deva amar como a dona merece. Ela, entregue a si mesma, poderia acabar de receber o noivo, e iriam ambos para o altar; mas entregue a D. Carmo, amigas uma da outra, não dará pelo pretendente, e lá se vai embora um destino. Em vez de mãe de família, ficará viúva solitária, porque a amiga velha há de morrer, e a amiga moça acabará de morrer um dia, depois de muitos dias...

A reflexão é verdadeira, por mais que se lhe possa dizer em contrário. Não afirmo que as cousas se passem exatamente assim, e que os três - os quatro, contando o velho Aguiar -, os cinco e seis, juntando o tio e o primo - não façam com o noivo adventício uma só família de afeição e de sangue; mas a reflexão é verdadeira. A afeição, o costume, o feitiço crescente, e por fim o tempo, cúmplice de atentados, negarão a bela viúva a qualquer namorado trazido pela natureza e pela sociedade. Assim chegará ela aos trinta anos, depois aos trinta e cinco e quarenta. Quando a esposa Aguiar morrer não se contentará de a chorar, lembrar-se-á dela, e as saudades irão crescendo com o tempo. O pretendente terá desaparecido ou passado a outras alegrias.

Reli também este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no fim) alguma nota poética ou romanesca, mas não há disso; antes é tudo prosa, como a realidade possível. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva da moça, a própria lembrança do marido. Daqui a cinco anos, ela mandará transferir os ossos do pai para a cova do marido, e os conciliará na terra uma vez que a eternidade os conciliou já. Aqui e ali toda a política se resume em viverem uns com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais.

8 de setembro

Os dous filhos postiços do casal Aguiar não têm ciúmes um do outro, não se sentem diminuídos pela afeição que recebem dos velhos. Ao contrário, parecem achar que a porção de cada um cresce com a que o outro recebe também. Eis aí uma boa divisão de amigos; há casos em que os filhos de verdade não se mostram tão cordatos.

Mana Rita, a quem comuniquei esta impressão, acha também que é assim. Acrescenta, porém, uma reflexão mais fina que essa, e não tenho dúvida em a escrever aqui ao pé da minha, tanto mais que lhe repliquei com outra, não menos fina que a sua. Vá este elogio a nós ambos. Sempre há de haver quem nos desgabe um pouco, e aí fica já a compensação. Nem custa muito elogiar-se a gente a si mesma. Eis o que me disse a mana:

- Esse sentimento há de custar pouco ao Tristão, estando aqui de passagem.

Ao que eu repliquei:

- Também não lhe custará muito a Fidélia, sabendo que ele se vai embora daqui a pouco.

Escritas as palavras de ambos nós, entro a duvidar da finura dela e minha. Por mais rápida que fosse a passagem do rapaz, ele gostaria de se ver exclusivamente querido, e ela também a si. Penso outra vez que a qualidade do afeto filial é que os faz assim generosos e abertos. Repito o que lá disse acima: casos há em que não vivem com tanto acordo filhos verdadeiros.

Rita deu-me outras notícias da casa Aguiar, onde não piso há mais de uma semana, creio. Todas confirmam a comunhão de boa vontade da parte de moços e velhos. Os quatro passam os dias em conversa, e ontem a viúva Noronha tocou piano, um pouquinho, é verdade, mas tocou. Parece que já uma vez jogaram cartas. Rita disse mais:

- Fidélia, que desde que saiu do colégio nunca mais fez trabalhos de agulha, começa agora a imitar a amiga, e já ontem trabalharam juntas. Quando eu lá cheguei às duas horas da tarde e dei com elas, defronte uma da outra, movendo agulhas, você não imagina a alegria com que me receberam; D. Carmo mostrava um pouco de orgulho também, ou cousa parecida. Faziam um par de sapatinhos de criança. O trabalho de Fidélia não tinha a perfeição do da outra, e não estava tão adiantado, mas também o de D. Carmo podia ir mais depressa; talvez fosse intenção dela não deixar a moça muito atrás, e por isso iria demorando os dedos. Quis rir, perguntando a qual delas destinavam tais sapatos, mas não tive tempo; Fidélia disse-me que eram para o filho de uma criada de D. Carmo que fora dar à luz em casa do marido. D. Carmo ia começar o crochet quando Fidélia lhe apareceu, e quis acompanhá-la. Consentiu para não sair trabalho de velha.

O mais que a mana me disse não vai aqui para não encher papel nem tempo, mas era interessante. Vai só isto, que jantou lá e Fidélia também, a convite de D. Carmo. O velho Aguiar e Tristão tinham saído a passeio, depois do almoço, mas voltaram cedo, às quatro horas. Não viram a parada do dia de ontem (sete), apenas viram passar um batalhão, que não deixou impressão no moço. Todos os batalhões se parecem, disse ele. O hino nacional, sim, é que acordou nele algumas saudades do tempo de criança e de rapaz; assim o confessou, e daí nasceu a conversação musical que levou Fidélia ao piano. A viúva não tocou mais de quatro ou cinco minutos, e fê-lo a pedido de Tristão, que lhe citou um autor; Rita não se lembra que autor foi, mas achou bonita a música. Também se falou em cousas da Europa, e os dous ajustaram bem os modos de ver.

Ouvi tudo isso em Andaraí, onde fui jantar hoje com Rita. Propus-lhe vir comigo e irmos ao Flamengo, a mana recusou; estava com o sono atrasado, e queria dormir. Voltei só e fui à casa Aguiar, onde os quatro e o desembargador conversaram de festas religiosas, a propósito do dia santo de hoje. Ainda uma vez os dous deram impressões europeias, e realmente ajustaram as reminiscências. As minhas, quando as pediram, ficaram naquele acordo de cabeça, que é útil, quando um assunto cansa ou aborrece, como este a mim.

Quando o tio e a sobrinha se foram, eu fiquei ainda um quarto de hora com a gente Aguiar. O resto amanhã; também eu estou com sono.

9 de setembro

O resto é a noticia de ter chegado Osório, o advogado do Banco do Sul, que foi há tempos ao Recife, onde o pai estava doente e morreu.

- Voltou triste, e o luto ainda o faz mais triste - disse Aguiar.

- Será só a morte do pai? - perguntei.

- Que mais pode ser?

- Não me disseram, ou eu adivinhei que ele andava meio apaixonado por D. Fidélia...?

- Andava, sim, e talvez mais que meio - explicou Aguiar -, mas já lá vai naturalmente.

- Em todo caso não se lhe declarou?

- Com o gesto, é possível; ela tacitamente recusou, e foi pena; ambos se merecem.

Aguiar louvou as qualidades profissionais do moço, a educação e as virtudes. Acreditei tudo, como era do meu dever, e aliás não tinha razão para duvidar de nada. D. Carmo confirmou as palavras do marido, sem afirmar que era pena não se terem casado. Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele. Pode ser que nele falasse também o gerente do banco. Tristão durante esse tempo folheava um livro de gravuras.

Digo que eram gravuras, porque me fui despedir dele, que se levantou logo, com grande cortesia; mas de longe pensei que fosse o álbum de retratos. Não era; o álbum estava ao pé, aberto justamente na página em que figuram as duas fotografias de Carmo e do marido. Tristão deixou também aberto o livro das gravuras e veio comigo à porta, acompanhando Aguiar, e ali me despedi de ambos.

*****

9 de setembro, à tarde

Parece que a gente Aguiar me vai pegando o gosto de filhos, ou a saudade deles, que é expressão mais engraçada. Vindo agora pela rua da Glória, dei com sete crianças, meninos e meninas, de vário tamanho, que iam em linha, presas pelas mãos. A idade, o riso e a viveza chamaram-me a atenção, e eu parei na calçada, a fitá-las. Eram tão graciosas todas, e pareciam tão amigas que entrei a rir de gosto. Nisto ficaria a narração, caso chegasse a escrevê-la, se não fosse o dito de uma delas, uma menina, que me viu rir parado, e disse às suas companheiras:

- Olha aquele moço que está rindo para nós.

Esta palavra me mostrou o que são olhos de crianças. A mim, com estes bigodes brancos e cabelos grisalhos, chamaram-me moço! Provavelmente dão este nome à estatura da pessoa, sem lhe pedir certidão de idade.

Deixei andar as crianças e vim fazendo comigo aquela reflexão. Elas foram saltando, parando, puxando-se à direita e à esquerda, rompendo alguma vez a linha e recosendo-a logo. Não sei onde se dispersaram; sei que daí a dez minutos não vi nenhuma delas, mas outras, sós ou em grupos de duas. Algumas destas carregavam trouxas ou cestas, que lhes pesavam à cabeça ou às costas, começando a trabalhar, ao tempo em que as outras não acabavam ainda de rir. Dar-se-á que a não ter carregado nada na meninice devo eu o aspecto de "moço" que as primeiras me acharam agora? Não, não foi isso. A idade dá o mesmo aspecto às cousas; a infância vê naturalmente verde. Também estas, se eu risse, achariam que "aquele moço ria para elas", mas eu ia sério, pensando, acaso doendo-me de as sentir cansadas; elas, não vendo que os meus cabelos brancos deviam ter-lhes o aspecto de pretos, não diziam cousa nenhuma, foram andando e eu também.

Ao chegar à porta de casa dei com o meu criado José, que disse estar ali à minha espera.

- Para quê?

- Para nada; vim esperar V.Exª cá embaixo.

Era mentira; veio distrair as pernas à rua, ou ver passar criadas vizinhas, também necessitadas de distração; mas, como ele é hábil, engenhoso, cortês, grave, amigo de seu dever - todos os talentos e virtudes -, preferiu mentir nobremente a confessar a verdade. Eu nobremente lho perdoei e fui dormir antes de jantar.

Dormi pouco, uns vinte minutos, apenas o bastante para sonhar que todas as crianças deste mundo, com carga ou sem ela, faziam um grande círculo em volta de mim, e dançavam uma dança tão alegre que quase estourei de riso. Todas falavam "deste moço que ria tanto". Acordei com fome, lavei-me, vesti-me e vim primeiro escrever isto. Agora vou jantar. Depois, irei provavelmente ao Flamengo.

*****

9 de setembro, à noite

Fui ao Flamengo. A viúva não estava lá; estava o Osório, e não o achei triste, como Aguiar havia dito, também não estava alegre; falava pouco. Tristão, que lhe fora apresentado hoje, falava mais que ele, sem falar muito. Noite sem interesse. Voltei cedo e vou dormir.

12 de setembro

Quando cheguei hoje à cidade, eram duas horas, e ia a sair do bonde, chegou-se a ele a bela Fidélia, com o seu gracioso e austero meio-luto de viúva. Vinha de compras, naturalmente. Cumprimentamo-nos, dei-lhe a mão para subir. Perguntou-me pela mana, eu, pelo tio, ambos, por nós, e ainda houve tempo de trocar esta meia dúzia de palavras. Ela:

- Ainda agora?

- A minha preguiça de aposentado não me permitiu sair mais cedo - disse eu rindo, e afastei-me.

O bonde partiu. Na esquina estava não menos que o Dr. Osório sem olhos, porque ela os levava arrastados no bonde em que ia; foi o que concluí da cegueira com que não me viu passar por ele... Ai, requinte de estilo!

Entrei nesta dúvida - se teriam estado juntos na rua ou na loja a que ela veio, ou no banco, ou no inferno, que também é lugar de namorados, é certo que de namorados viciosos, del mal perverso. Achei que não, e compreendi que ele, se acaso a cumprimentou na rua, não ousou falar-lhe, apenas a acompanhou de longe, até que a viu meter-se no bonde e partir.

Também achei outra cousa; é que a paixão antiga e recusada não estava morta nele, ou revivia com a vista nova da pessoa. Não era por ser agora a dona rica, já antes era ela herdeira única, e vivia de si mesma. Não, ele é bom, e o próprio Aguiar afirma que os dous se merecem.

Ia nessas conjeturas, em direção à Escola Politécnica, e vi-o passar por mim, cabisbaixo, não sei se triste ou alegre; não pude ver-lhe a cara. Mas parece que a tristeza é que é cabisbaixa, a alegria distribui os olhos felizes à direita e à esquerda; alguma vez ao céu também. É suposição minha, e pode não ser verdade. A verdade certa é que, às duas horas da tarde, aquele advogado andava atrás das moças, em vez de estar no foro; ou mau advogado, ou feliz namorado.

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A-