Memorial de Aires
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
19 de agosto
Tristão veio almoçar comigo. A primeira parte do almoço foi a glosa da carta que ele me escreveu. Contou-me que já em criança tinha ido com a madrinha a Nova Friburgo algumas vezes, parece-lhe que três; reconheceu a cidade agora e gostou muito dela. De D. Carmo, fala entusiasmado; diz que a afeição, o carinho, a bondade, tudo faz dela uma criatura particular e rara, por ser tudo de espécie também rara e particular. Referiu-me anedotas antigas, dedicações grandes. Depois confessou que as impressões da nossa terra fazem reviver os seus primeiros tempos, a infância e a adolescência. O fim do almoço foi com o naturalizado e o político. A política parece ser grande necessidade para este moço. Estendeu-se bastante sobre a marcha das cousas públicas em Portugal e na Espanha; confiou-me as suas ideias e ambições de homem de Estado. Não disse formalmente estas três palavras últimas, mas todas as que empregou vinham a dar nelas. Enfim, ainda que pareça algo excessivo, não perde o interesse e fala com graça.
Antes de sair, tornou a dizer do Rio de Janeiro, e também falou do Recife e da Bahia; mas o Rio foi o principal assunto.
- A gente não esquece nunca a terra em que nasceu - concluiu ele com um suspiro.
Talvez o intuito fosse compensar a naturalização que adotou - um modo de se dizer ainda brasileiro. Eu fui ao diante dele, afirmando que a adoção de uma nacionalidade é ato político, e muita vez pode ser dever humano, que não faz perder o sentimento de origem, nem a memória do berço. Usei tais palavras que o encantaram, se não foi talvez o tom que lhes dei, e um sorriso meu particular. Ou foi tudo. A verdade é que o vi aprovar de cabeça repetidas vezes, e o aperto de mão, à despedida, foi longo e fortíssimo.
Até aqui um pouco de fel. Agora um pouco de justiça.
A idade, a companhia dos pais, que lá vivem, a prática dos rapazes do curso médico, a mesma língua, os mesmos costumes, tudo explica bem a adoção da nova pátria. Acrescento-lhe a carreira política, a visão do poder, o clamor da fama, as primeiras provas de uma página da história, lidas já de longe por ele, e acho natural e fácil que Tristão trocasse uma terra por outra. Ponho-lhe, enfim, um coração bom, e compreendo as saudades que a terra de cá lhe desperta, sem quebra dos novos vínculos travados.
21 de agosto
Anteontem fui deixar um bilhete de visita a Fidélia; ontem, a convite do tio, que me encontrou na rua, fui tomar chá com ambos.
Naturalmente conversamos do defunto. Fidélia narrou tudo o que viu e sentiu nos últimos dias do pai, e foi muito. Não falou da separação trazida pelo casamento, era assunto velho e acabado. A culpa, se houve então culpa, foi de ambos, ela por amar a outro, ele por querer mal ao escolhido. Eu é que digo isso, não ela, que em sua tristeza de filha conserva a de viúva, e se houvesse de escolher outra vez entre o pai e o marido, iria para o marido. Também falou da fazenda e dos libertos, mas vendo que o assunto era já demasiado pessoal, mudou de conversa, e cuidamos da cidade e das ocorrências do dia.
Pouco depois chegaram D. Cesária e o marido, o doutor Faria, que vinham também visitá-la. A expansão com que D. Cesária falou a Fidélia e lhe deu o beijo da entrada compensou, a meu ver, o dente que lhe meteu há dias em casa do corretor Miranda. Daquela vez, apesar da graça com que falou, não gostei de a ver morder a viúva; agora tudo está pago. Repito o que lá digo atrás: esta senhora é muito mais graciosa que o marido. Nem precisa muito; ele, o mal que diz dos outros di-lo mal, ela é sempre interessante.
D. Cesária pagou tudo. Não é que as palavras que empregou ontem deem muito de si, como louvor e amizade, mas a expressão dos olhos, o ar admirativo e aprovador, um sorriso teimoso, quase constante, tudo isso valia por um capital de afeto. Papel-moeda também é dinheiro. Com ele comprei esta tinta e esta pena, o charuto que estou fumando e o almoço que começo a digerir. As duas senhoras não sofrem comparação entre si e, para conversar, D. Cesária basta e sobra. Eu conheci na vida algumas dessas pessoas capazes de dar interesse a um tédio e movimento a um defunto; enchem tudo consigo. Fidélia parece ter-lhe simpatia e ouvi-la com prazer. A noite foi boa.
Ia-me esquecendo uma cousa. Fidélia mandou encaixilhar juntas as fotografias do pai e do marido, e pô-las na sala. Não o fez nunca em vida do barão para respeitar os sentimentos deste; agora que a morte os reconciliou, quer reconciliá-los em efígie. Foi ela mesma que me deu esta explicação, quando eu olhava para eles. Não me admira a delicadeza de outrora, nem a resolução de agora; tudo responde à mesma harmonia moral da pessoa.
Quando eu disse isto cá fora ao casal Faria (saímos juntos), o marido torceu o nariz. Não lhe vi o gesto, mas ele proferiu uma palavra que implica o gesto; foi esta: "Afetação!" Quis replicar-lhe que não podia havê-la em ato tão íntimo e particular, mas a tempo encolhi a língua. D. Cesária não aprovou nem reprovou o dito; ponderou apenas que o gás estava muito escuro. Notei para mim que estava claríssimo, e que provavelmente ela não achara mais pronto desvio à conversação. Faria aproveitou o reparo da esposa para dizer o mal que pensa da companhia do gás e do governo, e chamou ladrão ao fiscal. Eram onze horas.
*****
21 de agosto, 5 horas da tarde
Não quero acabar o dia de hoje sem escrever que tenho os olhos cansados, acaso doentes, e não sei se continuarei este diário de fatos, impressões e ideias. Talvez seja melhor parar. Velhice quer descanso. Bastam já as cartas que escrevo em resposta e outras mais, e ainda há poucos dias um trabalho que me encomendaram da Secretaria de Estrangeiros - felizmente acabado.
24 de agosto
Qual! Não posso interromper o Memorial; aqui me tenho outra vez com a pena na mão. Em verdade, dá certo gosto deitar ao papel cousas que querem sair da cabeça, por via da memória ou da reflexão. Venhamos novamente à notação dos dias.
Desta vez o que me põe a pena na mão é a sombra da sombra de uma lágrima...
Creio tê-la visto anteontem (22) na pálpebra de Fidélia, referindo-me eu à dissidência do pai e do marido. Não quisera agora lembrar-me dela, nem tê-la visto ou sequer suspeitado. Não gosto de lágrimas, ainda em olhos de mulheres, sejam ou não bonitas; são confissões de fraqueza, e eu nasci com tédio aos fracos. Ao cabo, as mulheres são menos fracas que os homens - ou mais pacientes, mais capazes de sofrer a dor e a adversidade... Aí está; tinha resolvido não escrever mais, e lá vai uma página com a sombra da sombra de um assunto.
Também, se foi verdadeiramente lágrima, foi tão passageira que, quando dei por ela, já não existia. Tudo é fugaz neste mundo. Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro Eclesiastes, à moderna, posto nada deva haver moderno depois daquele livro. Já dizia ele que nada era novo debaixo do sol, e se o não era então, não o foi nem será nunca mais. Tudo é assim contraditório e vago também.
27 de agosto
A alegria do casal Aguiar é cousa manifesta. Marido e mulher andam a inventar ocasiões e maneiras de viver com os dous e com alguns amigos, entre os quais parece que me contam. Jantam, passeiam, e se não projetam bailes é porque os não amam de si mesmos, mas se Fidélia e Tristão os quisessem, estou que eles os dariam. A verdade, porém, é que os dous hóspedes não chegaram a tal ponto, mormente Fidélia, que se contenta de conversar e sorrir; não vai a teatros, nem a festas públicas.
Os passeios são recatados pela hora e pelos lugares. Ou vão as duas sós ou, se eles vão também, trocam-se às vezes, dando Aguiar o braço a Fidélia, e D. Carmo aceitando o de Tristão. Assim os encontrei há dias na rua de Ipiranga, eram cinco horas da tarde. Os dous velhos pareciam ter certo orgulho na felicidade. Ela dizia com os olhos e um riso bom que lhe fazia luzir a pontinha dos dentes toda a glória daquele filho que o não era, aquele filho morto e redivivo, e o rapaz era atenção e gosto também. Quanto ao velho não ostentava menos a sua delícia. Fidélia é que não publicava nada; sorria, é certo, mas pouco e cabisbaixa. E lá foram andando, sem darem por mim, que vinha pela calçada oposta.
31 de agosto
Como eu ainda gosto de música! A noite passada, em casa do Aguiar, éramos algumas pessoas... Treze! Só agora, ao contar de memória os presentes, vejo que éramos treze; ninguém deu então por este número, nem na sala, nem à mesa do chá de família. Conversamos de cousas várias, até que Tristão tocou um pouco de Mozart, ao piano, a pedido da madrinha.
A execução veio porque falamos também de música, assunto em que a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também. Fidélia recusou modestamente, ele insistiu, D. Carmo reforçou o pedido do afilhado, e assim o marido; Fidélia acabou cedendo, e tocou um pequeno trecho, uma reminiscência de Schumann. Todos gostamos muito. Tristão voltou ainda uma vez ao piano, e pareceram apreciar os talentos um do outro. Eu saí encantado de ambos. A música veio comigo, não querendo que eu dormisse. Cheguei cedo a casa, onze horas, e só perto de uma comecei a conciliar o sono; todo o tempo da rua, da casa e da cama foi consumido em repetir trechos e trechos que ouvira na minha vida.
A música foi sempre uma das minhas inclinações, e, se não fosse temer o poético e acaso o patético, diria que é hoje uma das saudades. Se a tivesse aprendido, tocaria agora ou comporia, quem sabe? Não me quis dar a ela, por causa do ofício diplomático, e foi um erro. A diplomacia que exerci em minha vida era antes função decorativa que outra cousa; não fiz tratados de comércio nem de limites, não celebrei alianças de guerra; podia acomodar-me às melodias de sala ou de gabinete. Agora vivo do que ouço aos outros.
Há dous ou três meses ouvi dizer a Fidélia que nunca mais tocaria, tendo desde muito suspendido o exercício da música. Repliquei-lhe então que um dia, a sós consigo, tocaria para recordar, e a recordação traria o exercício outra vez. Ontem bastaram as instâncias da gente Aguiar para mover uma vontade já disposta, ao que parece. O exemplo de Tristão ajudou-a a sair do silêncio. Repito que saí de lá encantado de ambos.
Quem sabe se a esta hora (dez e meia da manhã) não estará ela em casa, com espanto da família e da vizinhança, diante do piano aberto, a começar alguma cousa que não toca há muito?
- Não é possível!
- Nhanhã Fidélia!
- A viúva Noronha!
- Há de ser alguma amiga.
E as mãos dela irão falando, pensando, vivendo aquelas notas que a memória humana guarda impressas. Provavelmente tocará como ontem, sem música, de cor, na ponta dos dedos...
*****
Seis horas da tarde
Antes de ir para a mesa, escrevo a confirmação do que conjeturei de manhã; Fidélia efetivamente acordou os ecos da casa e da rua. Contou-mo há pouco o próprio desembargador Campos. A diferença é que não foi às dez horas e meia, mas às sete. Campos estava ainda na cama, quando ouviu os primeiros acordes de uma composição conhecida, parece que italiana. Não chegou a crer que fosse ela, mas não podia ser outra pessoa. Um criado, chamado por ele, veio dizer-lhe que sim, que era ela mesma. Tocou algum tempo. Quando ele entrou na sala, tinha acabado, mas estava ainda ao piano, ante um folheto de músicas aberto, a soletrar para si.
- Que é isto? - perguntou-lhe.
- Ouviu tocar? - disse ela fazendo rodar o banco.
- Ouvi.
- Creio que desaprendi alguma cousa; sinto os dedos um pouco tolhidos, já os senti assim ontem; a composição é que me não esqueceu.
- Mas que ressurreição é esta?
- Cousas de defunta - respondeu ela querendo sorrir.
Posto não seja grande apreciador de música, o desembargador parece satisfeito daquela ressurreição, como lhe chama. Tudo é viver com mais ou menos barulho, disse ele. Confessou-me que a tristeza da sobrinha o aflige muita vez, e a não levá-la a bailes ou teatros, contentava-se de a ver tocar em casa, e até cantar se quisesse; Fidélia também sabe cantar, tem muita arte e linda voz. Mas até agora não queria uma cousa nem outra.
Não é que não encha a casa consigo mesma, sem música; a música, porém, era uma das suas ocupações de outrora, e a abstenção data da viuvez.
Quis ponderar ao desembargador que o exercício da música podia conciliar-se muito bem com o estado, uma vez que a arte é também língua, mas tudo isso me passou rápido pela cabeça. Era acaso poético para um magistrado, sem contar que podia ser indiscreto também. Contentei-me de aceitar o convite que ele me fez de ir ouvi-la, em casa dele, hoje, amanhã, depois, quando queira.
- Uma destas noites - concordei.
Por enquanto, vou jantar. Creio que não saio mais hoje; mas que hei de fazer com estes pobres olhos? Ler é piorá-los; ah! Se eu soubesse música! Pegava do violino, trancava bem as portas para não ser ouvido pela vizinhança, e deixava-me ir atrás do arco. Talvez saia a passeio...
2 de setembro
Aniversário da batalha de Sedan. Talvez vá à casa do desembargador pedir a Fidélia que, em comemoração da vitória prussiana, nos dê um pedaço de Wagner.
3 de setembro
Nem Wagner, nem outro. Tristão estava lá e deu-nos um trecho de Tannhäuser, mas a viúva Noronha recusou o pedido. Supondo que fosse luto pela lembrança da derrota francesa, pedi-lhe um autor francês qualquer, antigo ou moderno, posto que a arte - disse-lhe com alguma afetação - naturaliza a todos na mesma pátria superior. Sorriu e não tocou; tinha um pouco de dor de cabeça. Aguiar e Carmo, que lá estavam também, não me acompanharam no pedido, como "se lhes doesse a cabeça da amiga". Outra preciosidade de estilo, esta renovada de Sévigné. Emenda essa língua, velho diplomata.
A razão verdadeira da recusa pode não ser dor de cabeça nem de outra qualquer parte. Quer-me parecer que Fidélia vai um tanto comigo, e tocaria para si, caso estivesse só. Naquela outra noite, em casa do Aguiar, deixou-se arrastar e tocar para as doze pessoas que lá estavam, levada do sobressalto, de um acordar do gosto antigo; agora abana a cabeça, não quer divertir os outros. Tocará para o tio, de manhã, e para si durante as horas de desembargo. Quando muito satisfará os dous pais postiços, alguma vez. Sinal de que não tinha dor de cabeça é que ouviu a Tristão com evidente prazer, e aplaudiu sorrindo. Não digo que a música não tenha o dom de fazer esquecer um mal físico, mas desconfio que não foi assim neste caso.
Os dous conversaram de Wagner e de outros autores, com interesse, e provavelmente com acerto. Eu falei também o meu pouco; depois atendi ao que me disse Aguiar, acerca de Tristão.
- Parece que vem liquidar também alguns negócios do pai; soube hoje por ele mesmo. Deus queira que não acabe tão cedo.
- Deus também ama a chicana, quem sabe?
- Não são negócios do foro; e se algum chegar lá, provavelmente ele deixa procurador aqui. Sabe já que ele vai entrar na Câmara?
- Sei; disse-me que aceitou de alguns chefes de Lisboa elegê-lo deputado.
- Carmo, que queria prendê-lo por um ano ou mais, ficou aborrecida e triste, e eu, com ela. Trocamos os nossos aborrecimentos, quero dizer que os somamos, e ficamos com o dobro cada um...
Gostei desta palavra de Aguiar, e decorei-a bem para me não esquecer e escrevê-la aqui. Aquele gerente de banco não perdeu o vício poético. É bom homem; creio que já o escrevi alguma vez, mas lá vai ainda agora. Não perco nada em repeti-lo.
Falávamos a um canto da sala, onde Campos e Tristão foram ter conosco, deixando as duas damas entregues uma à outra. E eu cá de longe fiquei a mirá-las, encantadoras naquela expressão de si mesmas. A harmonia dos cabelos brancos de uma e dos cabelos pretos de outra, as vozes que trocavam baixo sorrindo, com os olhos brandos e amigos, tudo isso me faria perguntar a mim mesmo, por que não eram realmente mãe e filha, esta casada com algum rapaz que a merecesse, e aquela casada ou viúva, não importa; consolar-se-ia do marido perdido com a filha eterna. Toda filha moça é eterna para as mães envelhecidas. Mas ainda uma vez notei que pareciam antes irmãs, tal a arte de D. Carmo em se fazer moça com as moças. A matéria da conversação não sei qual fosse, nem vale a pena cogitá-la; não daria mais interesse ao grupo. De uma vez, demorando-se Fidélia em concertar a posição do broche, D. Carmo substituiu-lhe os dedos pelos seus, e concertou-lha de todo.
4 de setembro
Relendo o dia de ontem fiz comigo uma reflexão que escrevo aqui para me lembrar mais tarde. Quem sabe se aquela afeição de D. Carmo, tão meticulosa e tão serviçal, não acabará fazendo dano à bela Fidélia? A carreira desta, apesar de viúva, é o casamento; está na idade de casar, e pode aparecer alguém que realmente a queira por esposa. Não falo de mim, Deus meu, que apenas tive veleidades sexagenárias; digo alguém de verdade, pessoa que possa e deva amar como a dona merece. Ela, entregue a si mesma, poderia acabar de receber o noivo, e iriam ambos para o altar; mas entregue a D. Carmo, amigas uma da outra, não dará pelo pretendente, e lá se vai embora um destino. Em vez de mãe de família, ficará viúva solitária, porque a amiga velha há de morrer, e a amiga moça acabará de morrer um dia, depois de muitos dias...
A reflexão é verdadeira, por mais que se lhe possa dizer em contrário. Não afirmo que as cousas se passem exatamente assim, e que os três - os quatro, contando o velho Aguiar -, os cinco e seis, juntando o tio e o primo - não façam com o noivo adventício uma só família de afeição e de sangue; mas a reflexão é verdadeira. A afeição, o costume, o feitiço crescente, e por fim o tempo, cúmplice de atentados, negarão a bela viúva a qualquer namorado trazido pela natureza e pela sociedade. Assim chegará ela aos trinta anos, depois aos trinta e cinco e quarenta. Quando a esposa Aguiar morrer não se contentará de a chorar, lembrar-se-á dela, e as saudades irão crescendo com o tempo. O pretendente terá desaparecido ou passado a outras alegrias.
Reli também este dia de hoje, e temo haver-lhe posto (principalmente no fim) alguma nota poética ou romanesca, mas não há disso; antes é tudo prosa, como a realidade possível. Esqueceu-me trazer um elemento para a viuvez definitiva da moça, a própria lembrança do marido. Daqui a cinco anos, ela mandará transferir os ossos do pai para a cova do marido, e os conciliará na terra uma vez que a eternidade os conciliou já. Aqui e ali toda a política se resume em viverem uns com outros, no mesmo que eram, e será para nunca mais.