Romance

Memorial de Aires

1908

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.

De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).

A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".

O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.

A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.

Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"

Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").

Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").

Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).

Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.

A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Victor Heringer, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

janeiro de 2011

28 de julho

Não duvido que o Tristão visse com prazer o Rio de Janeiro. Quaisquer que sejam os costumes novos e ligações de família, e por maior que tenha sido a ausência, o lugar onde alguém passou os primeiros anos há de dizer à memória e ao coração uma linguagem particular. Creio que ele esteja realmente encantado, como me disse ontem. Demais, lá fora ouvia a mesma língua daqui; a mãe é a mesma paulista que o gerou e levou consigo, e está agora em Lisboa, com o pai, ambos velhos.

Eu nunca esqueci cousas que só vi em menino. Ainda agora vejo dous sujeitos barbados que jogavam o Entrudo, teria eu cinco anos; era com bacias de madeira ou de metal, ficaram inteiramente molhados e foram pingando para as suas casas. Só não me acode onde elas eram. Outra cousa que igualmente me lembra, apesar de tantos anos passados, é o namoro de uma vizinha e de um rapaz. Ela morava defronte, era magrinha e chamava-se Flor. Ele também era magro e não tinha nome conhecido; só lhe sabia a cara e a figura. Vinha às tardes e passava três, quatro, cinco e mais vezes de uma ponta à outra da rua. Uma noite ouvimos gritos. Na manhã seguinte ouvi dizer que o pai da moça mandara dar por escravos uma sova de pau no namorado. Dias depois foi este recrutado para o exército, dizem que por empenho do pai da moça; alguns creram que a sova fora um simples desforço eleitoral. Tudo é um; amor ou eleições, não falta matéria às discórdias humanas.

Que valem tais ocorrências agora, neste ano de 1888? Que pode valer a loja de um barbeiro que eu via por esse tempo, com sanguessugas à porta, dentro de um grosso frasco de vidro com água e não sei que massa? Há muito que se não deitam bichas a doentes; elas, porém, cá estão no meu cérebro, abaixo e acima, como nos vidros. Era negócio dos barbeiros e dos farmacêuticos, creio; a sangria é que era só dos barbeiros. Também já se não sangra pessoa nenhuma. Costumes e instituições, tudo perece.

31 de julho

Tem agradado muito o Tristão, e para crer que o merece basta dizer que a mim não me desagrada, ao contrário. É ameno, conversado, atento, sem afetação nem presunção; fala ponderado e modesto, e explica-se bem. Ainda lhe não ouvi grandes cousas, nem estas são precisas a quem chega de fora e vive em família; as que lhe ouvi são interessantes.

No vestido e nas maneiras usa o tom da conversa; a mesma correção e simplicidade. O encanto que outro dia me disse achar na cidade continua a achar nela e na gente; reconhece ruas, casas, costumes e pessoas; pergunta por muitas destas e interessa-se em ouvir as notícias que lhe dão. Algumas reconhece logo, outras, com pouca explicação. Enfim, não é mau rapaz.

Para a gente Aguiar é mais que excelente. Essa está tanto ou mais encantada que ele; nestes poucos dias já o levou a diferentes partes. O desembargador Campos, que lá jantou ontem, disse-me que D. Carmo estava que era uma criança; quase que não tirava os olhos de cima do afilhado. Tristão conhece música, e à noite, a pedido dela, executou ao piano um pedaço de Wagner, que ele achou muito bem. Além do Campos, jantou lá um padre Bessa, o que batizou Tristão.

Não era habituado do Flamengo, este padre; foi o próprio Tristão que o descobriu, de maneira que merece notar. Perguntou por ele, e, ao cabo de dous dias, sabendo que residia na praia Formosa, dispôs-se a lá ir, depois de recusar ao padrinho a companhia que este lhe ofereceu.

- Quero ir eu só - replicou -, para lhe mostrar que não desaprendi a minha cidade.

E lá foi, e lá andou, e lá descobriu o padre, dentro de uma casinha - baixa. Bessa, que fora comensal dos pais dele, não o conheceu logo, mas às primeiras notícias recompôs o passado e adivinhou o menino a quem dera batismo. Aguiar fê-lo convidar e vir à casa dele, a ver o moço e visitá-lo, sempre que quisesse. É uma boa figura de velho e de sacerdote, disse-me o desembargador, calvo bastante, cara magra, e expressão plácida, apesar das misérias que terá curtido; chega a ser alegre.

1 de agosto

O desembargador deu-me também notícia da sobrinha. Está boa e virá brevemente da fazenda. Contou-lhe em carta um sonho que teve ultimamente, a aparição do pai e do sogro, ao fundo de uma enseada parecida com a do Rio de Janeiro. Vieram as duas figuras sobre a água, de mãos dadas, até que pararam diante dela, na praia. A morte os reconciliara para nunca mais se desunirem; reconheciam agora que toda a hostilidade deste mundo não vale nada, nem a política nem outra qualquer.

Quis replicar ao desembargador que talvez a sobrinha tivesse ouvido mal. A reconciliação eterna, entre dous adversários eleitorais, devia ser exatamente um castigo infinito. Não conheço igual na Divina Comédia. Deus, quando quer ser Dante, é maior que Dante. Recuei a tempo e calei a facécia; era rir da tristeza da moça. Pedi mais notícias dela, e ele deu-mas; a principal é que está cada vez mais firme na ideia de vender Santa-Pia.

2 de agosto

Aguiar mostrou-me uma carta de Fidélia a D. Carmo. Letra rasgada e firme, estilo correntio, linguagem terna; promete-lhes vir para a Corte logo que possa, e será breve. Estou cansado de ouvir que ela vem, mas ainda me não cansei de o escrever nestas páginas de vadiação. Chamo-lhes assim para divergir de mim mesmo. Já chamei a este Memorial um bom costume. Ao cabo, ambas as opiniões se podem defender, e, bem pensado, dão a mesma cousa. Vadiação é bom costume.

A carta de Fidélia começa por estas três palavras: "Minha querida mãezinha", que deixaram D. Carmo morta de ternura e de saudades; foi a própria expressão do marido. Nem tudo se perde nos bancos; o mesmo dinheiro, quando alguma vez se perde, muda apenas de dono.

3 de agosto

Hoje fazia anos o ministério Ferraz, e quem já pensa nele nem nos homens que o compunham e lá vão, uns na morte, outros na velhice ou na inação? Foi ele que me promoveu a secretário de legação, sem que eu lho pedisse e até com espanto meu.

Dizendo isto ao Aguiar, ouvi-lhe anedotas políticas daquele tempo (1859-1861), contadas com animação, mas saudade. Aguiar não tem costela de homem público; todo ele é família, todo esposo, e agora também filhos, os dous filhos postiços - Tristão mais que Fidélia, pela razão que penso haver já dito. Confirmou-me as boas impressões do desembargador, e concluiu:

- Conselheiro, já falou ao nosso Tristão, já o ouviu, e creio apreciá-lo, mas eu desejo que o conheça mais para apreciá-lo melhor. Ele fala da sua pessoa com grande respeito e admiração. Diz que um dia o viu em Bruxelas, e estava longe de crer que viria achá-lo e falar-lhe aqui.

- Já me disse isso mesmo. Acho que é um moço muito distinto.

- Não é? Também nós achamos, e outras pessoas também. Não lhe pedi que me contasse a vida dele lá, mas conversei de maneira que ele me foi dizendo muita cousa, os estudos, as viagens, as relações; pode ser que invente ou exagere, mas creio que não; tudo o que nos disse é verossímil e combina com o que vimos dele aqui, e também do compadre e da comadre. Se pudéssemos ficar com ele de uma vez, ficávamos. Não podemos; Tristão veio apenas por quatro meses; a nosso pedido vai ficar mais dous. Mas eu ainda verei se posso retê-lo oito ou dez.

- Veio só para visitá-los?

- Diz que só. Talvez o pai aproveitasse a vinda para encarregá-lo de algum negócio; apesar de liquidado, ainda tem interesses aqui; não lhe perguntei por isso.

- Pois veja se o faz ficar mais tempo; ele acabará ficando de vez.

4 de agosto

Indo a entrar na barca de Niterói, quem é que encontrei encostado à amurada? Tristão, ninguém menos, Tristão, que olhava para o lado da barra, como se estivesse com desejo de abrir por ela fora e sair para a Europa. Foi o que eu lhe disse, gracejando, mas ele acudiu que não.

- Estou a admirar estas nossas belezas - explicou.

- Deste outro lado são maiores.

- São iguais - emendou -. Já as mirei todas, e do pouco que vi lá fora é ainda o que acho mais magnífico no mundo.

O assunto era velho e bom para atar conversa; aproveitamo-lo e chegamos ao desembarque, depois de trocadas muitas ideias e impressões. Confesso que as minhas não eram mais novas que o assunto inicial, e eram curtas; as dele tinham sobre elas a vantagem de evocações e narrativas. Não estou para escrever tudo o que lhe ouvi acerca dos anos de infância e adolescência, nem dos de mocidade passados na Europa. Foi interessante, decerto, e parece que sincero e exato, mas foi longo, por mais curta que fosse a viagem da barca. Enfim, chegamos à Praia Grande. Quando eu lhe disse que preferia este nome popular ao nome oficial, administrativo e político de Niterói, dissentiu de mim. Repliquei que a razão do dissentimento vinha de ser eu velho e ele, moço.

- Criei-me com a Praia Grande; quando o senhor nasceu a crisma de Niterói110 pegara.

Não havia nisto agudeza alguma; ele, porém, sorriu como achando fina a resposta, e disse-me:

- Não há velhice para um espírito como o seu.

- Acha? - perguntei incredulamente.

- Já meus padrinhos mo haviam dito, e eu reconheço que diziam a verdade.

Agradeci de cabeça, e, estendendo-lhe a mão:

- Vou ao palácio da presidência. Até à volta, se nos encontrarmos.

Uma hora depois, quando eu chegava à ponte, lá o achei. Imaginei que esperasse por mim, mas nem me cabia perguntar-lho, nem talvez a ele, dizê-lo. A barca vinha perto, chegou, atracou, entramos. Na viagem de regresso tive uma notícia que não sabia; Tristão, alcunhado brasileiro em Lisboa, como outros da própria terra, que voltam daqui, é português naturalizado.

- Aguiar sabe?

- Sabe. O que ele ainda não sabe, mas vai saber, é que nas vésperas de partir aceitei a proposta de entrar na política, e vou ser eleito deputado às cortes no ano que vem. Não fosse isso, e eu cá ficava com ele; iria buscar meu pai e minha mãe. Sei que ele me há de querer dissuadir do plano; meu padrinho não gosta de política, menos ainda de política militante, mas eu estou obrigado pelo gosto que lhe tenho e pelo acordo a que cheguei com os chefes do partido. Escrevi algum tempo num jornal de Lisboa, e dizem que não inteiramente mal. Também falei em comícios.

- Eles querem-lhe muito.

- Sei, muito, como a um filho.

- Têm também uma filha de afeição.

- Também sei, uma viúva, filha de um fazendeiro que morreu há pouco. Já me falaram dela. Vi-lhe o retrato encaixilhado pelas mãos da madrinha. Se conhece bem a madrinha, há de saber o coração terno que tem. Toda ela é maternidade. Aos próprios animais estende a simpatia. Nunca lhe falaram de um terceiro filho que tiveram, e ela amava muito?

- Creio que não; não me lembra.

- Um cão, um pequeno cão de nada. Foi ainda no meu tempo. Um amigo do padrinho levou-lho um dia, com poucos meses de existência, e ambos entraram a gostar dele. Não lhe conto o que a madrinha fazia por ele, desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã, e o resto; ainda que me sobrasse tempo, não acharia crédito em seus ouvidos. Não é que fosse extravagante nem excessivo; era natural, mas tão igual sempre, tão verdadeiro e cuidadoso que era como se o bicho fosse gente. O bicho viveu os seus dez ou onze anos da raça; a doença achou enfermeira, e a morte teve lágrimas. Quando entrar no jardim, à esquerda, ao pé do muro, olhe, foi aí que o enterraram; e já me não lembrava, a madrinha é que mo apontou ontem.

Não me soube grandemente essa aliança de gerente de banco e pai de cachorro. É verdade que o próprio Tristão dá a maior parte à madrinha, que é mulher. Com a prática dos dias anteriores e estas duas viagens de barca, sinto-me meio habilitado a possuir bem aquele moço. Só lhe ouvi meia dúzia de palavras algo parecidas com louvor próprio, e ainda assim moderado. "Dizem que não escrevo inteiramente mal" encobrirá a convicção de que escreve bem, mas não o disse, e pode ser verdade.

7 de agosto

D. Carmo foi a Nova Friburgo34 com o afilhado para lhe mostrar novamente a cidade em que nasceu, creio que também a rua, e parece que a própria casa. Tudo está velho e quieto, dizem-me. Isto vai com os hábitos dela, que sabe e gosta de guardar os velhos retalhos e lembranças antigas, como que lhe dando um ar perpétuo de mocidade. Tristão, não tendo aliás o mesmo interesse, mostrou prazer em a acompanhar. Toda a gente continua a gostar dele, Campos mais que outros, pois o conheceu menino. Mana Rita é que apenas o viu; tem estado adoentada, levantou-se anteontem; só ontem soube disso, e fui visitá-la. Contei-lhe o que havia daquela casa e da casa do desembargador; dei-lhe vontade de vir também à gente Aguiar, quando os dous voltarem de Nova Friburgo.34

10 de agosto

Meu velho Aires, trapalhão da minha alma, como é que tu comemoraste no dia 3 o ministério Ferraz, que é de 10? Hoje é que ele faria anos, meu velho Aires. Vês que é bom ir apontando o que se passa; sem isso não te lembraria nada ou trocarias tudo.

Fidélia chega da Paraíba do Sul no dia 15 ou 16. Parece que os libertos vão ficar tristes; sabendo que ela transfere a fazenda, pediram-lhe que não, que a não vendesse, ou que os trouxesse a todos consigo. Eis aí o que é ser formosa e ter o dom de cativar. Desse outro cativeiro não há cartas nem leis que libertem; são vínculos perpétuos e divinos. Tinha graça vê-la chegar à Corte com os libertos atrás de si, e para quê, e como sustentá-los? Custou-lhe muito fazer entender aos pobres sujeitos que eles precisam trabalhar, e aqui não teria onde os empregar logo. Prometeu-lhes, sim, não os esquecer, e, caso não torne à roça, recomendá-los ao novo dono da propriedade.

11 de agosto

Recebi hoje um bilhete de Tristão, escrito de Nova Friburgo, no qual me diz que está muito satisfeito com o que vê e o que ouve; reconheceu a cidade, que é encantadora com a sua gente. A companheira de viagem ainda o é mais que a gente e a cidade. Copio estas palavras do bilhete:

A madrinha ou mãezinha - não sei bem qual dos nomes lhe dê, ambos são exatos - é aqui muito querida e festejada, não só por duas amigas velhas que lhe restam dos tempos de criança, mas ainda por outras que conheceu depois de casada, parentas daquelas ou somente amigas também. Gosto do lugar e do clima; a temperatura é excelente; ficaremos uns três dias mais.

Não há nessa carta nada que não pudesse ser dito na volta, uma vez que ele desce daqui a três dias. Creio que ele cedeu ao desejo de ser lido por mim e de me ler também. Questão de simpatia, questão de arrastamento. Vou responder-lhe com duas linhas...

... Lá vai a carta; respondi-lhe com trinta e tantas linhas, dizendo-lhe cousas que busquei fazer alegres, e com certeza saíram quase amigas. Concordei que Nova Friburgo era delicioso, e concluí por estas palavras: "Quando descer venha almoçar comigo; falaremos de lá e de cá".

17 de agosto

Fidélia chegou, Tristão e a madrinha chegaram, tudo chegou; eu mesmo cheguei a mim mesmo - por outras palavras, estou reconciliado com as minhas cãs. Os olhos que pus na viúva Noronha foram de admiração pura, sem a mínima intenção de outra espécie, como nos primeiros dias deste ano. Verdade é que já então citava eu o verso de Shelley, mas uma cousa é citar versos, outra é crer neles. Eu li há pouco um soneto verdadeiramente pio de um rapaz sem religião, mas necessitado de agradar a um tio religioso e abastado. Pois ainda que eu não desse então toda a fé ao poeta inglês, dou-lhe agora, e aqui a dou de novo para mim. A admiração basta.

19 de agosto

Tristão veio almoçar comigo. A primeira parte do almoço foi a glosa da carta que ele me escreveu. Contou-me que já em criança tinha ido com a madrinha a Nova Friburgo algumas vezes, parece-lhe que três; reconheceu a cidade agora e gostou muito dela. De D. Carmo, fala entusiasmado; diz que a afeição, o carinho, a bondade, tudo faz dela uma criatura particular e rara, por ser tudo de espécie também rara e particular. Referiu-me anedotas antigas, dedicações grandes. Depois confessou que as impressões da nossa terra fazem reviver os seus primeiros tempos, a infância e a adolescência. O fim do almoço foi com o naturalizado e o político. A política parece ser grande necessidade para este moço. Estendeu-se bastante sobre a marcha das cousas públicas em Portugal e na Espanha; confiou-me as suas ideias e ambições de homem de Estado. Não disse formalmente estas três palavras últimas, mas todas as que empregou vinham a dar nelas. Enfim, ainda que pareça algo excessivo, não perde o interesse e fala com graça.

Antes de sair, tornou a dizer do Rio de Janeiro, e também falou do Recife e da Bahia; mas o Rio foi o principal assunto.

- A gente não esquece nunca a terra em que nasceu - concluiu ele com um suspiro.

Talvez o intuito fosse compensar a naturalização que adotou - um modo de se dizer ainda brasileiro. Eu fui ao diante dele, afirmando que a adoção de uma nacionalidade é ato político, e muita vez pode ser dever humano, que não faz perder o sentimento de origem, nem a memória do berço. Usei tais palavras que o encantaram, se não foi talvez o tom que lhes dei, e um sorriso meu particular. Ou foi tudo. A verdade é que o vi aprovar de cabeça repetidas vezes, e o aperto de mão, à despedida, foi longo e fortíssimo.

Até aqui um pouco de fel. Agora um pouco de justiça.

A idade, a companhia dos pais, que lá vivem, a prática dos rapazes do curso médico, a mesma língua, os mesmos costumes, tudo explica bem a adoção da nova pátria. Acrescento-lhe a carreira política, a visão do poder, o clamor da fama, as primeiras provas de uma página da história, lidas já de longe por ele, e acho natural e fácil que Tristão trocasse uma terra por outra. Ponho-lhe, enfim, um coração bom, e compreendo as saudades que a terra de cá lhe desperta, sem quebra dos novos vínculos travados.

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