Memorial de Aires
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
16 de junho
Deixou, deixou saudades e grandes. Achei-os sós e conversamos da amiga. Propriamente não estavam tristes da ausência dela, mas da tristeza que ela levou consigo. Quero dizer que lhes doía a mágoa da outra; foi o que me pareceu. A ausência, contam que não seja longa, e será temperada por visitas à capital; em todo caso, a separação não é tamanha que eles não possam dar um pulo à fazenda. Tais foram os sentimentos e as esperanças que lhes adivinhei. Falaram-me do golpe recebido pela moça. D. Carmo disse-me que eu não podia imaginar como a foi achar abatida.
- Ofereci-me para acompanhá-la à fazenda; recusou agradecida, e pela primeira vez me deu um nome que o céu não quis que eu tivesse na terra: "Obrigada, mãezinha", e beijou-me com grande ternura.
A minha ternura não é grande, nem acaso pequena, mas compreendi o sentimento da boa senhora, e gostei de saber que, em tão grave instante, Fidélia lhe tivesse dado aquela palavra cordial. Parecia contentá-la muito e ao marido. Este, aliás, acompanhou a narração da mulher em silêncio, com os olhos no teto; naturalmente não queria incorrer na pecha de fraco, mas a fraqueza, se o era, começou nos gestos; ele ergueu-se, ele sentou-se, ele acendeu um charuto, ele retificou a posição de um vaso... Eu, para espanar a melancolia da sala, perguntei se os negócios do barão iam bem, e se os libertos... Aguiar volveu a ser gerente de banco e expôs-me algumas cousas sobre o plantio do café e os títulos de renda.
Nessa ocasião entrou um íntimo da casa e conversou também do fazendeiro. Disse que os negócios dele, apesar do desfalque, não iam mal; deve ter uns trezentos contos. Aguiar não sabe exatamente, mas aceitou o cálculo.
- Tem só aquela filha - concluiu a visita -, e é provável que ela case outra vez.
Eu, para ser agradável aos donos da casa, quis dizer que me parecia que não, mas este bom costume de calar me fez engolir a emenda, e agora me confesso arrependido. Ao cabo eu já me vou conformando com a viuvez perpétua da bela dama, se não é ciúme ou inveja de a ver casada com outro. Já me parece que realmente Fidélia acaba sem casar. Não é só a piedade conjugal que lhe perdura, é a tendência a cousas de ordem intelectual e artística, e pouco mais ou mais nada. Fique isto confiado a ti somente, papel amigo, a quem digo tudo o que penso e tudo o que não penso.
17 de junho
O Barão de Santa-Pia está mal, muito mal.
18 de junho
Viva a Fortuna, que sabe às vezes consolar o mal agudo com algum bálsamo inesperado. A gente Aguiar recebeu carta de Tristão, que lhes anuncia a vinda ao Brasil, talvez no paquete próximo. Logo que entrei... Era dia de recepção deles, e soube depois que tinham pensado em transferi-la por causa da tristeza de Fidélia, mas consideraram que era modesta e resumida, que se não dançava, raro se cantava, e apenas se conversava e tomava chá; podia ser mantida sem escândalo.
Logo que entrei deu-me Aguiar a notícia. Quando fui cumprimentar D. Carmo, e a felicitei pela vinda do moço, ouviu-me com grande prazer. Meia hora depois, tornamos a falar do assunto, ela e eu, e então foi ela que iniciou a conversação, dizendo-me que estava em casa, longe de esperar tal cousa, e de repente viu entrar no jardim um homem do banco com um bilhete do Aguiar, dando-lhe a boa nova, e acompanhado da carta que Tristão mandava aos dous. Contando-me estas particularidades, acaso dispensáveis, D. Carmo queria naturalmente comunicar-me o próprio alvoroço. Conheço estas intenções recônditas e manifestas a um tempo; é velho sestro de felizes.
A gente pouca e as relações estreitas deram azo a que no fim da noite falássemos todos do hóspede vindouro. Aí vem o afilhado que eles tiveram por esquecido, quase ingrato, esse outro meio filho que ajudaram a criar e a amar. Aguiar e a mulher deram explicações pedidas, contaram episódios de infância, histórias de graça, de esperteza, algumas de manha, mas a manha das crianças só enfada em ação; recordada, deleita, como outras cousas idas. Uma das senhoras presentes quis lembrar alguns atos de carinho e dedicação de D. Carmo acerca do pequeno, mas a boa velha esquivou-se depressa, e apenas ouvimos um ou dous. Noite de família; saí cedo, vim para casa tomar leite, escrever isto e dormir. Até outro dia, papel.
20 de junho
Telegrama da Paraíba do Sul: "O Barão de Santa-Pia faleceu hoje de manhã". Vou mandar a notícia a mana Rita, e enviar cartões de pêsames. É caso de dar também os pêsames à gente Aguiar? Pêsames não, mas uma visita discreta e afetuosa, amanhã ou depois...
21 de junho
Aguiar vai à fazenda de Santa-Pia, em visita de pêsames a Fidélia; parte amanhã. D. Carmo fica. Foi o que ele me disse na rua do Ouvidor.
- Já lhe mandei os meus - disse-lhe -. Receba-os também, se a afeição que os liga a D. Fidélia pode justificar esta participação de desgosto...
- Ambos nós sentimos a dor que aflige a nossa boa amiga. Carmo queria ir comigo; eu é que lhe disse que não, que não vá; pode cansá-la muito a viagem assim rápida.
Lá vai o Aguiar enfraquecer da alegria do filho com a mágoa da filha; cá virá convalescer da tristeza da moça com a alegria do rapaz. Tudo se atenua assim neste mundo, e ainda bem. O pior é não serem filhos de verdade, mas só de afeição; é certo que, em falta de outros, consolam-se com estes, e muita vez os de verdade são menos verdadeiros.
*****
21 de junho, à noite
Cá esteve hoje a minha boa mana; ia visitar a gente Aguiar, eu disse-lhe que vá comigo amanhã, e aceitou.
23 de junho
A mana e eu estivemos ontem em casa da boa velha Aguiar. Saí de lá mais cedo do que quisera; se pudesse, ficaria muito mais tempo.
Achamo-la entre alegre e triste, se esta expressão pode definir um estado que se não descreve; eu, ao menos, não posso. Recebeu-nos como sempre; ela sabe dar ao gesto e à palavra um afago sem intenção, verdadeiramente delicioso. Quando lhe falamos de Fidélia, disse da tristeza da amiga com outra tristeza correspondente, e referiu a partida do marido na manhã de ontem, sem aludir às obrigações que ele teve de interromper. Não tardou, porém, que lhe perguntássemos pelo afilhado e respondeu com satisfação grande. O resto da visita dividiu-se entre ambos, mas ao rapaz coube a maior parte da conversação, naturalmente por ser mais longa a ausência, maior, a distância e inesperada, a volta.
D. Carmo continuou a narração da outra noite, agora mais íntima, éramos três pessoas apenas. Não diria toda a primeira vida do pequeno, o tempo seria pouco, ela mesma o confessou, mas muita cousa principal disse. Era frágil, magrinho, quase nada, criaturinha de escasso fôlego. Não disse que se fez mãe; esta senhora não conhece a língua do próprio louvor, mas eu já sabia, e percebia-se do carinho da narração que devia ser assim mesmo. Rita arriscou esta reflexão rindo:
- As crianças não sabem o cuidado que dão, e esquecem depressa o que sabem.
- É preciso desculpar a Tristão o que é próprio de rapaz - acudiu D. Carmo -. Ele não é mau; esqueceu-se um pouco de nós, mas a idade e a novidade dos espetáculos explicam tudo. A prova é que aí vem ele ver-nos, e se lesse as cartas dele... Aguiar não lhe mostrou a última?
- Não, minha senhora - respondi -; disse-me só o que continha.
- Talvez não dissesse tudo.
Cuido que quisesse mostrar-me as cartas do rapaz, uma só que fosse, ou um trecho, uma linha, mas o temor de enfadar fez calar o desejo. Foi o que me pareceu e deixo aqui escrito. Tornamos à viúva, depois voltamos a Tristão, e ela só passou a terceiro assunto porque a cortesia o mandou; eu, porém, para ir com a alma dela, guiei a conversa novamente aos filhos postiços. Era o meu modo de ser cortês com a boa senhora. Custa-me dizer que saí de lá encantado, mas saí, e mana Rita também. Rita disse-me na rua:
- Há poucas criaturas como aquela.
- Creio, creio, é excelente... sem desfazer em você.
- Eu não - replicou Rita prontamente -. Não me acho má, porém estou longe de ser o que ela é. Você repare que tudo naquela senhora é bom, até a opinião, que nem sempre é justa, porque ela perdoa e desculpa a todos. Eu não sou assim; acho muita gente má, e se for preciso dizê-lo, digo. D. Carmo não é capaz de criticar ninguém. Algum reparo que aceite é sempre explicando; quando menos, calando.
24 de junho
Ontem conversei com a senhora do Aguiar acerca das antigas noites de São João, Santo Antônio e São Pedro, e mais as suas sortes e fogueiras. D. Carmo pegou do assunto para tratar ainda do filho postiço. Leve o diabo tal filho. A filha postiça é que há de estar a esta hora mui triste no casarão da fazenda, onde certamente passou as antigas noites de São João de donzela esperançada e crédula. A deste ano sem pai deve ser aborrecida, não tendo mãe que o continue, nem marido que os supra. Um tio não basta para tanta cousa.
Também eu tirei sortes outrora. Com pouco se fingia de Destino - um livro, um rimador de quadras e um par de dados. "Se há de desposar a pessoa a quem ama", dizia o título da página, por exemplo; deitavam-se os dados, os números eram cinco e dous, sete: ia-se à quadra sétima, e lia-se. Suponhamos que se lia... Vá, risco a quadra que cheguei a escrever aqui. Geralmente era engraçada, pelo menos, mas também troçava com a pessoa que consultava o Destino. Todos riam; alguns criam deveras; em todo caso passavam-se as horas até chegar o sono. E ali vinha este velho camareiro da humanidade, que os pagãos chamaram Morfeu, e que a pagãos e cristãos, e até a incréus fecha os olhos com os seus eternos dedos de chumbo. Agora, meu sono amigo, só tu virás daqui a uma ou duas horas, sem livros de sortes nem dados. Quando muito trarás sonhos, e já não serão os mesmos de outro tempo.
27 de junho
Missa do barão de Santa-Pia em São Francisco de Paula. O filho do desembargador representava a família; este e a sobrinha ouviram missa na fazenda. Há de ter sido outra recordação antiga para a viúva. A fazenda tem capela, onde um padre dizia missa aos domingos e confessava pela Quaresma. Também eu conheci esse costume em pequeno, e ainda me lembra que, na Quaresma, eu e outros rapazes íamos esconder-nos do confessor embaixo das camas ou nos desvãos da casa. Já então confundíamos as práticas religiosas com as canseiras da vida, e fugíamos delas. Entretanto, o padre que me confessou pela primeira vez era meigo, atento, guiava-me a confissão indicando os pecados que devia dizer, e até que ponto, e punha a absolvição na língua antes que os pecados lhe entrassem pelo ouvido; assim me pareceu. Perdoe-me a sua memória, se não é verdade. Tudo isso vai longe. A segunda confissão foi por ocasião de casar. Daí em diante não fui mais que virtudes.
Bastante gente em São Francisco de Paula. Na sacristia havia folhas de papel onde se inscreveram as pessoas que lá foram, e uma ou outra que não foi mas encomendou o cuidado a um terceiro. Vi magistrados, advogados, pessoas do comércio e do funcionalismo, senhoras, algumas senhoras. Destas eram moças umas, amigas de Fidélia, outras eram velhas do tempo da mãe. Uma destas era a que não faltaria, ainda que lá não fosse ninguém, e só amiga da viúva, a boa Aguiar, naturalmente. Lá estava também Rita, que veio almoçar comigo.
Se as missas pudessem ser ditas, segundo a ocasião, eu acharia que o padre ajustou a sua à pouca presença do sangue do morto, tão breve foi, mas não é assim; cada padre diz a missa à sua maneira de sempre, apressada ou vagarosa, conforme usa ler ou falar.
30 de junho
Ora bem, a viúva Noronha mandou uma carta a D. Carmo, documento psicológico, verdadeira página da alma. Como eles tiveram a bondade de mostrar-ma, dispus-me a achá-la interessante, antes mesmo de a ler, mas a leitura dispensou a intenção; achei-a interessante deveras, disse-o, reli alguns trechos. Não tem frases feitas, nem frases rebuscadas; é simplesmente simples, se tal advérbio vai com tal adjetivo; creio que vai, ao menos para mim.
Quatro páginas apenas, não deste papel de cartas que empregamos, mas do antigo papel chamado de peso, marca Bath, que havia na fazenda, a uso do pai. Trata longamente dele e das saudades que ela foi achar lá, das lembranças que lhe acordaram as paredes dos quartos e das salas, as colunas da varanda, as pedras da cisterna, as janelas antigas, a capela rústica. Mucamas e moleques deixados pequenos e encontrados crescidos, livres com a mesma afeição de escravos, têm algumas linhas naquelas memórias de passagem. Entre os fantasmas do passado, o perfil da mãe, ao pé o do pai, e ao longe como ao perto, nas salas como no fundo do coração, o perfil do marido, tão fixo que cheguei a vê-lo e me pareceu eterno.
Vou reconhecendo que esta moça vale ainda mais do que me parecia a princípio. Não é a questão de amar ou não o defunto marido; creio que o ame, sem que essa fidelidade lhe aumente a pureza dos sentimentos. Pode ser obra dele, ou dela, ou de ambos a um tempo. O maior valor dela está, além da sensação viva e pura que lhe dão as cousas, na concepção e na análise que sabe achar nelas. Pode ser que haja nisto, da minha parte, um aumento de realidade, mas creio que não. Se fosse nos primeiros dias deste ano, eu poderia dizer que era o pendor de um velho namorado gasto que se comprazia em derreter os olhos através do papel e da solidão, mas não é isso; lá vão as últimas gabolices do temperamento. Agora, quando muito, só me ficaram as tendências estéticas, e, deste ponto de vista, é certo que a viúva ainda me leva os olhos, mas só diante deles. Realmente, é um belo pedaço de gente, com uma dose rara de expressão. A carta, porém, dá a tudo grande nota espiritual.
Acredito que D. Carmo sinta essa dama como eu a entendo, mas desta vez o que lhe penetrou mais fundo foi o cumprimento final da carta, as três últimas palavras, anteriores à derradeira de todas, que é o nome: "da sua filhinha Fidélia". Percebi isto, vendo que ela desceu os olhos ao fim do papel três ou quatro vezes, sem querer acabar de o dobrar e guardar.
1 de julho
Também há ventanias de felicidade, que levam tudo adiante de si. A gente Aguiar recebeu ontem a carta de Fidélia, e hoje outra de Tristão, em que este lhe anuncia que embarca no paquete inglês para cá; deve chegar a 23 ou 24. A alegria com que eles leram esta notícia foi naturalmente grande; porquanto Fidélia cá está e diz-se filha da boa velha; Tristão aí vem e anuncia que esta carta é a última; a seguinte é ele próprio. Tudo isso a um tempo.
Preparam-lhe alojamento em casa. Aguiar anda tão satisfeito que, contra os seus hábitos de discrição, já me disse ter em vista a mobília do quarto que lhe destinam; é simples e elegante. Provavelmente a mulher começará já a obra dos seus ornamentos de lã e de linho para as cadeiras e a mesa. Isto não foi ele que me disse nem ninguém; eu é que o adivinho e escrevo aqui para mostrar a mim mesmo o que é fácil de ver. Para a boa Carmo, bordar, coser, trabalhar, enfim, é um modo de amar que ela tem. Tece com o coração.
É regra velha, creio eu, ou fica sendo nova, que só se faz bem o que se faz com amor. Tem ar de velha, tão justa e vulgar parece. Daí a perfeição daquelas suas obras domésticas. Será como dormir ou transpirar. Não lhe tiro com isto o mérito; por maior que seja a necessidade, não é menor a virtude. Também eu fiz a minha diplomacia com amor, e ouvi a ministros que bem, mas no meu caso (distingamo-nos da velha Aguiar) não bastou amor nem necessidade; se não fosse carreira é provável que eu acabasse juiz, banqueiro ou outra cousa.
2 de julho
O que ouvi dizer ontem a Aguiar foi no Banco do Sul, aonde tinha ido depositar umas apólices. Esqueceu-me escrever que, à saída, perto da igreja da Candelária, encontrei o desembargador Campos; tinha chegado de Santa-Pia anteontem, à noite, e ia ao Banco levar recados da sobrinha para o Aguiar e para a mulher. Perguntei-lhe se Fidélia ficava lá de vez; respondeu-me que não.
- Ficar de vez, não fica; demora-se algumas semanas, depois virá e provavelmente transfere a fazenda; acho que não faz mal. Ficaria, segundo me disse, se fosse útil, mas parece-lhe que a lavoura decai, e não se sente com forças para sustê-la. Daí a ideia de vender tudo, e vir morar comigo. Se ficasse tinha jeito. Ela mesma tomou contas a todos, e ordenou o serviço. Tem ação, tem vontade, tem espírito de ordem. Os libertos estão bem no trabalho.
Conversamos um pouco dos efeitos da Abolição, e despedimo-nos.
5 de julho
Obrigado pela palavra a ir passar a noite com o corretor Miranda, lá fui hoje. Veio mais gordo da Europa, onde só esteve alguns meses; é o mesmo impetuoso de sempre, mas bom sujeito e excelente marido. Nada novo, a não ser um jogo, parece que inventado nos Estados Unidos e que ele aprendeu a bordo. No meu tempo não se conhecia. Chama-se poker; eu trouxe o whist, que ainda jogo, e peguei no meu velho voltarete. Parece que o poker vai derrubar tudo. Na casa do Miranda até a senhora deste jogou.
As filhas não jogaram, nem a cunhada, D. Cesária, que não acha recreação nas cartas; confessou (rindo) que é muito melhor dizer mal da vida alheia, e não o faz sem graça. Justamente o que falta ao marido, a quem sobra o resto. Cuidei que os dous estivessem brigados com o corretor, não formalmente, porque D. Cesária não briga nunca, arrufa-se apenas; cuidei que estivessem arrufados com o corretor, quando este e a família embarcaram. Estivessem ou não, a volta os reconciliou. É uma das prendas desta senhora. Talvez tivesse dito mal da própria irmã ou do cunhado, mas tão habilmente se arranjou que os achei unidíssimos. Não sei o que ela dirá de mim, eu acho-lhe interesse, e preferi-lhe a língua ao poker; com a língua não se perde dinheiro.
Como se falasse da morte do barão de Santa-Pia e da situação da filha, D. Cesária perguntou se ela realmente não casava. Parece que duvida da viuvez de Fidélia. Eu não lhe disse que já pensara o mesmo, nem lhe disse nada; não quis trazer a outra à conversação e fiz bem. D. Cesária aceitou daí a pouco a hipótese da viuvez perpétua, por não achar graça à viúva, nem vida, nem maneiras, nada, cousa nenhuma; parece-lhe uma defunta. Eu sorri como devia, e fui ouvir a explicação que me davam de um bluff. No poker, bluff é uma espécie de conto-do-vigário.
13 de julho
Sete dias sem uma nota, um fato, uma reflexão; posso dizer oito dias, porque também hoje não tenho que apontar aqui. Escrevo isto só para não perder longamente o costume. Não é mau este costume de escrever o que se pensa e o que se vê, e dizer isso mesmo quando se não vê nem pensa nada.