Memorial de Aires
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Memorial de Aires é o nono e último romance de Machado de Assis, publicado em 1908, mesmo ano da morte do autor. Em cartas pessoais, o próprio Machado reitera diversas vezes o caráter de "ponto final" do Memorial de Aires, expressando, além disso, alegria pela boa recepção crítica do livro. "Não quisera o declínio", como afirma em carta a Mário de Alencar.
De fato, não houve declínio. O Memorial, apesar de menos esfuziante que seus precedentes, é obra igualmente instigante e inovadora. Escrito na forma de diário, e abarcando os anos de 1888 e 1889, o romance acompanha as peripécias do pequeno círculo social do conselheiro José da Costa Marcondes Aires, diplomata aposentado e viúvo, que já havia figurado como personagem no livro anterior, Esaú e Jacó (1904).
A interligação de obras - já vista, aliás, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quincas Borba (1890) - é, em Memorial de Aires, um dispositivo que transcende a coincidência de personagens e põe em questão o próprio fazer narrativo. As anotações do conselheiro Aires, anunciadas (e por vezes transcritas) em Esaú e Jacó, tornam-se um livro, cuja autoria oscila entre o próprio Aires e o "editor" que assina a Advertência, "M. de A.".
O resultado desse peculiar jogo de espelhos é uma obra em ritmo lento e cores intimistas. Às observações acerca do passar do tempo, somam-se os relatos de pequenos lances da vida das personagens. A atenção narrativa é voltada completamente para o menor, para acontecimentos quase inexpressivos. As relações afetivas ocupam o palco central, enquanto eventos de maior vulto, como a Abolição da Escravatura, parecem figurar somente como contraponto aos dramas pessoais corriqueiros do casal Aguiar, de Fidélia e Tristão, ou às reflexões do conselheiro Aires acerca de sua própria velhice.
A naturalidade do banal, anunciada desde o título (em que "aire" pode também assumir o sentido que lhe dá o dicionário: "coisa vã, fútil, sem valor"), ajusta-se à forma de diário com que se apresenta. Os escritos do conselheiro Aires, ainda que atenuados por uma personalidade que não ama a ênfase ("1888, 4 de fevereiro"), tomam um inevitável tom confessional, e esta, dentre outras, talvez seja a razão pela qual muitos leitores encontrem no Memorial o testamento existencial de Machado de Assis.
Assim como Dom Casmurro foi lido durante décadas como um romance de adultério, depois passou a ser lido como o romance de um narrador pouco confiável, cujo relato é, portanto, passível de descrédito, e hoje é, cada vez mais, lido como um romance em que estão em jogo estratégias textuais as mais variadas e sofisticadas, a serviço da ambiguidade; assim também, o Memorial foi lido como um canto de cisne benfazejo, ainda que melancólico, e depois passou a ser lido como um romance em que um narrador pouco confiável sugere intenções sórdidas por baixo das aparentemente mais singelas ações das personagens. Melhor seria dizer, como a personagem de Shakespeare: "On both sides, more respect", e ler o Memorial de Aires como um livro de significação irrecuperavelmente ambígua, como já propunham Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, na famosa mesa-redonda de 14 de novembro de 1980, em diálogo lúcido. Diz Alfredo Bosi: "Há interesses que são ocultos, por exemplo, no caso do Memorial de Aires; fica sempre aquela ambiguidade: por que o rapaz voltou? Será que por afeto aos padrinhos? Ou por que ele tinha interesses econômicos no Brasil?" Responde Roberto Schwarz: "Justamente, não dá pra resolver!"
Tudo no Memorial talvez seja, mas pode ser que não fosse. De fato, o melhor de Machado de Assis é essa tensão entre o que é e o que poderia não ter sido. Ao mesmo tempo em que as personagens, inclusive e principalmente o narrador, são todas boas, sinceras e bem intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam más, fingidas e mal-intencionadas), todas são más, fingidas e mal-intencionadas (e, ao mesmo tempo, pode ser que sejam o contrário disto). Assim, se a Abolição da Escravatura passa quase despercebida e enseja o ato "generoso" de Fidélia, inspirada por Tristão, de doar a fazenda do pai aos escravos libertos, a leitura atenta indicará a perfeita consciência do narrador Aires (e, por trás dele, a do autor Machado) de que o ato é na verdade de uma crueldade atroz, constituindo-se como consumação de um abandono dos libertos à própria sorte. Veja-se a anotação no diário do conselheiro: "Se eles não têm de ir viver na roça, e não precisam do valor da fazenda, melhor é dá-la aos libertos. Poderão estes fazer a obra comum e corresponder à boa vontade da sinhá-moça? É outra questão, mas não se me dá de a ver ou não resolvida; há muita outra cousa neste mundo mais interessante." ("1889, 15 de abril"). O narrador se esquiva ao julgamento, mas o registro no diário põe o leitor em estado de alerta, que é, de resto, o único estado possível em que pode e deve ficar o leitor machadiano, para melhor fruição de seus textos.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1o de janeiro de 2009 ("ideia" e não "idéia"; "frequente" e não "freqüente"). No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "céptico"/"cético", "respectivo"/"respetivo"), preferiu-se aquela utilizada pelo autor, que oscila entre "conjetura" (várias ocorrências) e "conjectura" (uma ocorrência) e, no caso de "invetivar" (forma não consignada nos dicionários), parece trabalhar por analogia com "respetivo". Quanto a "aspecto"/"aspeto", o autor utiliza as duas formas neste romance, o que se respeitou. Foram utilizadas iniciais maiúsculas para instituições ("Câmara dos Deputados") e para celebrações populares e religiosas ("Entrudo", "Quaresma").
Foram respeitadas algumas especificidades da escrita de Machado de Assis, como o emprego particular de "meia" (advérbio) flexionado: "meia doente"; e o uso da regência indireta quando deveria ser direta: "Fidélia não voltou ao Flamengo, apesar da promessa que D. Carmo lhe fez fazer.". Outra curiosidade da escrita machadiana presente neste livro é a oscilação entre o emprego e o não emprego de artigo definido antes de nome próprio ("[...] logo depois aceitava a ponta da conversação que ele lhe dava, acerca da Fidélia ou do Tristão [...]"; "[...] marcou-se o dia do casamento de Tristão e Fidélia [...]"). Como em vários outros escritos seus, Machado de Assis dá preferência ao uso da preposição "até" seguida de outra preposição, "a", como era e é comum em Portugal ("[...] desde as sopinhas de leite até aos capotinhos de lã [...]"), embora às vezes suprima a segunda preposição ("Ela foi descendo até o portão [...]").
Possivelmente o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX é o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, que, de resto, era a geralmente aceita no século XIX no Brasil e em Portugal. Para citar dois exemplos: manteve-se a vírgula antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito é precisamente o mesmo da oração anterior ("Calou esse ponto, e foi mais discreta que ele"), assim como não se introduziu vírgula antes da aditiva "e" precedendo sujeito diferente ("O barão recusou a pés juntos e o desembargador dispunha-se a voltar para a Corte [...]."). Também foram respeitadas idiossincrasias como a alternância do uso e não uso de vírgula antes de oração consecutiva ("[...] a viúva acompanhou o recém-chegado com tal gosto e discrição, que ele acabou pedindo-lhe que tocasse também."; e "[...] contou-me anedotas de seu tempo de menina e moça, com tal desinteresse e calor que me deu vontade de lhe pegar na mão [...]"). Convém assinalar que, nos casos de elipse do verbo, inseriu-se vírgula para indicá-la ("Disse-me que ele é bom senhor, eles, bons escravos[...]"), o que nem sempre é o procedimento do autor. Quando se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (inseridas).
Os numerais foram grafados por extenso, que é o uso predominante na prosa do autor. Adotou-se esse procedimento pelo mesmo motivo que se mantiveram em língua estrangeira os vocábulos assim escritos na primeira edição, por acreditar-se que tudo isso contribui para aquilo que se poderia chamar de "atmosfera textual" machadiana.
A presente edição, ao incluir as notas que esclarecem as muitas citações e alusões encontradas na obra machadiana, visa tornar mais acessível o texto de Memorial de Aires. Busca também fornecer informações sobre locais e instituições familiares aos leitores contemporâneos de Machado, mas talvez já muito distantes do leitor de hoje.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
10 de janeiro
Fomos ao cemitério. Rita, apesar da alegria do motivo, não pôde reter algumas velhas lágrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu pai e minha mãe. Ela ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos. No caixão do defunto mandou guardar um molho dos seus cabelos, então pretos, enquanto os mais deles ficaram a embranquecer cá fora.
Não é feio o nosso jazigo; podia ser um pouco mais simples - a inscrição e uma cruz -, mas o que está é bem feito. Achei-o novo demais, isso sim. Rita fá-lo lavar todos os meses, e isto impede que envelheça. Ora, eu creio que um velho túmulo dá melhor impressão do ofício, se tem as negruras do tempo, que tudo consome. O contrário parece sempre da véspera.
Rita orou diante dele alguns minutos, enquanto eu circulava os olhos pelas sepulturas próximas. Em quase todas havia a mesma antiga súplica da nossa: "Orai por ele! Orai por ela!" Rita me disse depois, em caminho, que é seu costume atender ao pedido das outras, rezando uma prece por todos os que ali estão. Talvez seja a única. A mana é boa criatura, não menos que alegre.
A impressão que me dava o total do cemitério é a que me deram sempre outros; tudo ali estava parado. Os gestos das figuras, anjos e outras, eram diversos, mas imóveis. Só alguns pássaros davam sinal de vida, buscando-se entre si e pousando nas ramagens, pipilando ou gorjeando. Os arbustos viviam calados, na verdura e nas flores.
Já perto do portão, à saída, falei a mana Rita de uma senhora que eu vira ao pé de outra sepultura, ao lado esquerdo do cruzeiro, enquanto ela rezava. Era moça, vestia de preto, e parecia rezar também, com as mãos cruzadas e pendentes. A cara não me era estranha, sem atinar quem fosse. E bonita, e gentilíssima, como ouvi dizer de outras em Roma.
- Onde está?
Disse-lhe onde estava. Quis ver quem era. Rita, além de boa pessoa, é curiosa, sem todavia chegar ao superlativo romano. Respondi-lhe que esperássemos ali mesmo, ao portão.
- Não! Pode não vir tão cedo, vamos espiá-la de longe. É assim bonita?
- Pareceu-me.
Entramos e enfiamos por um caminho entre campas, naturalmente. A alguma distância, Rita deteve-se.
- Você conhece, sim. Já a viu lá em casa, há dias.
- Quem é?
- É a viúva Noronha. Vamos embora, antes que nos veja.
Já agora me lembrava, ainda que vagamente, de uma senhora que lá apareceu em Andaraí, a quem Rita me apresentou e com quem falei alguns minutos.
- Viúva de um médico, não é?
- Isso; filha de um fazendeiro da Paraíba do Sul,, o barão de Santa-Pia.
Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quisesse beijar a sepultura, o próprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquela manhã. Falavam alto, e um escarnecia do outro, em voz grossa: "Eras capaz de levar um daqueles ao morro? Só se fossem quatro como tu". Tratavam de caixão pesado, naturalmente, mas eu voltei depressa a atenção para a viúva, que se afastava e caminhava lentamente, sem mais olhar para trás. Encoberto por um mausoléu, não a pude ver mais nem melhor que a princípio. Ela foi descendo até o portão, onde passava um bonde em que entrou e partiu. Nós descemos depois e viemos no outro.
Rita contou-me então alguma cousa da vida da moça e da felicidade grande que tivera com o marido, ali sepultado há mais de dous anos. Pouco tempo viveram juntos. Eu, não sei por que inspiração maligna, arrisquei esta reflexão:
- Não quer dizer que não venha a casar outra vez.
- Aquela não casa.
- Quem lhe diz que não?
- Não casa; basta saber as circunstâncias do casamento, a vida que tiveram e a dor que ela sentiu quando enviuvou.
- Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.
- Mas eu não casei.
- Você é outra cousa, você é única.
Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura, e abanando a cabeça, como se me chamasse "peralta". Logo ficou séria, porque a lembrança do marido fazia-a realmente triste. Meti o caso à bulha; ela, depois de aceitar uma ordem de ideias mais alegre, convidou-me a ver se a viúva Noronha casava comigo; apostava que não.
- Com os meus sessenta e dous anos?
- Oh! Não os parece; tem a verdura dos trinta.
Pouco depois chegamos a casa e Rita almoçou comigo. Antes do almoço, tornamos a falar da viúva e do casamento, e ela repetiu a aposta. Eu, lembrando-me de Goethe, disse-lhe:
- Mana, você está a querer fazer comigo a aposta de Deus e de Mefistófeles; não conhece?
- Não conheço.
Fui à minha pequena estante e tirei o volume do Fausto, abri a página do prólogo no Céu, e li-lha, resumindo como pude. Rita escutou atenta o desafio de Deus e do Diabo, a propósito do velho Fausto, o servo do Senhor, e da perda infalível que faria dele o astuto. Rita não tem cultura, mas tem finura, e naquela ocasião tinha principalmente fome. Replicou rindo:
- Vamos almoçar. Não quero saber desses prólogos nem de outros; repito o que disse, e veja você se refaz o que lá vai desfeito. Vamos almoçar.
Fomos almoçar; às duas horas Rita voltou para Andaraí, eu vim escrever isto e vou dar um giro pela cidade.
12 de janeiro
Na conversa de anteontem com Rita esqueceu-me dizer a parte relativa a minha mulher, que lá está enterrada em Viena. Pela segunda vez falou-me em transportá-la para o nosso jazigo. Novamente lhe disse que estimaria muito estar perto dela, mas que, em minha opinião, os mortos ficam bem onde caem; redarguiu-me que estão muito melhor com os seus.
- Quando eu morrer, irei para onde ela estiver, no outro mundo, e ela virá ao meu encontro - disse eu.
Sorriu, e citou o exemplo da viúva Noronha, que fez transportar o marido de Lisboa, onde faleceu, para o Rio de Janeiro, onde ela conta acabar. Não disse mais sobre este assunto, mas provavelmente tornará a ele, até alcançar o que lhe parece. Já meu cunhado dizia que era seu costume dela, quando queria alguma cousa.
Outra cousa que não escrevi foi a alusão que ela fez à gente Aguiar, um casal que conheci a última vez que vim, com licença, ao Rio de Janeiro, e agora encontrei. São amigos dela e da viúva, e celebram daqui a dez ou quinze dias as suas bodas de prata. Já os visitei duas vezes e o marido, a mim. Rita falou-me deles com simpatia e aconselhou-me a ir cumprimentá-los por ocasião das festas aniversárias.
- Lá encontrará Fidélia.
- Que Fidélia?
- A viúva Noronha.
- Chama-se Fidélia?
- Chama-se.
- O nome não basta para não casar.
- Tanto melhor para você, que vencerá a pessoa e o nome, e acabará casando com a viúva. Mas eu repito que não casa.
14 de janeiro
A única particularidade da biografia de Fidélia é que o pai e o sogro eram inimigos políticos, chefes de partido na Paraíba do Sul. Inimizade de famílias não tem impedido que moços se amem, mas é preciso ir a Verona ou alhures. E ainda os de Verona, dizem comentadores que as famílias de Romeu e de Julieta eram antes amigas e do mesmo partido; também dizem que nunca existiram, salvo na tradição ou somente na cabeça de Shakespeare.
Nos nossos municípios, ao norte, ao sul e ao centro, creio que não há caso algum. Aqui a oposição dos rebentos continua a das raízes, e cada árvore brota de si mesma, sem lançar galhos a outra, e esterilizando-lhe o terreno, se pode. Eu, se fosse capaz de ódio, era assim que odiava; mas eu não odeio nada nem ninguém - perdono a tutti, como na ópera.
Agora, como foi que eles se amaram - os namorados da Paraíba do Sul - é o que Rita me não referiu, e seria curioso saber. Romeu e Julieta aqui no Rio, entre a lavoura e a advocacia - porque o pai do nosso Romeu era advogado na cidade da Paraíba - é um desses encontros que importaria conhecer para explicar. Rita não entrou nesses pormenores; eu, se me lembrar, hei de pedir-lhos. Talvez ela os recuse imaginando que começo deveras a morrer pela dama.
16 de janeiro
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Tão depressa vinha saindo do Banco do Sul encontrei Aguiar, gerente dele, que para lá ia. Cumprimentou-me muito afetuosamente, pediu-me notícias de Rita, e falamos durante alguns minutos sobre cousas gerais.
Isto foi ontem. Hoje pela manhã recebi um bilhete de Aguiar, convidando-me, em nome da mulher e dele, a ir lá jantar no dia 24. São as bodas de prata. "Jantar simples e de poucos amigos", escreveu ele. Soube depois que é festa recolhida. Rita vai também. Resolvi aceitar, e vou.
20 de janeiro
Três dias metido em casa, por um resfriamento com pontinha de febre. Hoje estou bom e, segundo o médico, posso já sair amanhã; mas poderei ir às bodas de prata dos velhos Aguiares? Profissional cauteloso, o Dr. Silva me aconselhou que não vá; mana Rita, que tratou de mim dous dias, é da mesma opinião. Eu não a tenho contrária, mas se me achar lépido e robusto, como é possível, custar-me-á não ir. Veremos; três dias passam depressa.
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Seis horas da tarde
Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente alguma cousa de Shelley e também de Thackeray. Um consolou-me de outro, este desenganou-me daquele; é assim que o engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas do espírito.
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Nove horas da noite
Rita jantou comigo; disse-lhe que estou são como um pero, e com forças para ir às bodas de prata. Ela, depois de me aconselhar prudência, concordou que, se não tiver mais nada, e for comedido ao jantar, posso ir; tanto mais que os meus olhos terão lá dieta absoluta.
- Creio que Fidélia não vai - explicou.
- Não vai?
- Estive hoje com o desembargador Campos, que me disse haver deixado a sobrinha com a nevralgia do costume. Padece de nevralgias. Quando elas lhe aparecem é por dias, e não vão sem muito remédio e muita paciência. Talvez vá visitá-la amanhã ou depois.
Rita acrescentou que para o casal Aguiar é meio desastre; contavam com ela, como um dos encantos da festa. Querem-se muito, eles a ela, e ela a eles, e todos se merecem, é o parecer de Rita e pode vir a ser o meu.
- Creio. Já agora, se me não sentir impedido, irei sempre. Também a mim parece boa gente a gente Aguiar. Nunca tiveram filhos?
- Nunca. São muito afetuosos, D. Carmo ainda mais que o marido. Você não imagina como são amigos um do outro. Eu não os frequento muito, porque vivo metida comigo, mas o pouco que os visito basta para saber o que valem, ela principalmente. O desembargador Campos, que os conhece desde muitos anos, pode dizer-lhe o que eles são.
- Haverá muita gente ao jantar?
- Não; creio que pouca. A maior parte dos amigos irá de noite. Eles são modestos, o jantar é só dos mais íntimos, e por isso o convite que fizeram a você mostra grande simpatia pessoal.
- Já senti isso, quando me apresentaram a eles, há sete anos, mas então supus que era mais por causa do ministro que do homem. Agora, quando me receberam, foi com muito gosto. Pois lá vou no dia 24, haja ou não haja Fidélia.
25 de janeiro
Lá fui ontem às bodas de prata. Vejamos se posso resumir agora as minhas impressões da noite.
Não podiam ser melhores. A primeira delas foi a união do casal. Sei que não é seguro julgar por uma festa de algumas horas a situação moral de duas pessoas. Naturalmente a ocasião aviva a memória dos tempos passados, e a afeição dos outros como que ajuda a duplicar a própria. Mas não é isso. Há neles alguma cousa superior à oportunidade e diversa da alegria alheia. Senti que os anos tinham ali reforçado e apurado a natureza, e que as duas pessoas eram, ao cabo, uma só e única. Não senti, não podia sentir isto logo que entrei, mas foi o total da noite.
Aguiar veio receber-me à porta da sala - eu diria que com uma intenção de abraço, se pudesse havê-la entre nós e em tal lugar; mas a mão fez esse ofício, apertando a minha efusivamente. É homem de sessenta anos feitos (ela tem cinquenta), corpo antes cheio que magro, ágil, ameno e risonho. Levou-me à mulher, a um lado da sala, onde ela conversava com duas amigas. Não era nova para mim a graça da boa velha, mas desta vez o motivo da visita e o teor do meu cumprimento davam-lhe à expressão do rosto algo que tolera bem a qualificação de radiante. Estendeu-me a mão, ouviu-me e inclinou a cabeça, olhando de relance para o marido.
Senti-me objeto dos cuidados de ambos. Rita chegou pouco depois de mim; vieram vindo outros homens e senhoras, todos de mim conhecidos, e vi que eram familiares da casa. Em meio da conversação, ouvi esta palavra inesperada a uma senhora, que dizia a outra:
- Não vá Fidélia ter ficado pior.
- Ela vem? - perguntou a outra.
- Mandou dizer que vinha; está melhor; mas talvez lhe faça mal.
O mais que as duas disseram, relativamente à viúva, foi bem. O que me dizia um dos convidados apenas foi ouvido por mim, sem lhe prestar atenção maior que o assunto nem perder as aparências dela. Pela hora próxima do jantar supus que Fidélia não viesse. Supus errado. Fidélia e o tio foram os últimos chegados, mas chegaram. O alvoroço com que D. Carmo a recebeu mostrava bem a alegria de a ver ali, apenas convalescida, e apesar do risco de voltar à noite. O prazer de ambas foi grande.
Fidélia não deixou inteiramente o luto; trazia às orelhas dous corais, e o medalhão com o retrato do marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e adorno, escuro. As joias e um raminho de miosótis à cinta vinham talvez em homenagem à amiga. Já de manhã lhe enviara um bilhete de cumprimentos acompanhando o pequeno vaso de porcelana, que estava em cima de um móvel com outros presentinhos aniversários.
Ao vê-la agora, não a achei menos saborosa que no cemitério, e há tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma ideia de rigidez; ao contrário, é flexível. Quero aludir somente à correção das linhas - falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal à viuvez. Foi o que vi logo à chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veio vindo pela noite adiante, até que ela se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes, em casa, como lá ficou dito atrás, e tirado de uma das suas estâncias de 1821:
I can give not what men call love.
Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: "Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!"
Esta confissão não me fez menos alegre. Assim, quando D. Carmo veio tomar-me o braço, segui como se fosse para um jantar de núpcias. Aguiar deu o braço a Fidélia, e sentou-se entre ela e a mulher. Escrevo estas indicações sem outra necessidade mais que a de dizer que os dous cônjuges, ao pé um do outro, ficaram ladeados pela amiga Fidélia e por mim. Desta maneira pudemos ouvir palpitar o coração aos dous - hipérbole permitida para dizer que em ambos nós, em mim, ao menos, repercutia a felicidade daqueles 25 anos de paz e consolação.
A dona da casa, afável, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz naquela data; não menos o marido. Talvez ele fosse ainda mais feliz que ela, mas não saberia mostrá-lo tanto. D. Carmo possui o dom de falar e viver por todas as feições, e um poder de atrair as pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras. Os seus cabelos brancos, colhidos com arte e gosto, dão à velhice um relevo particular, e fazem casar nela todas as idades. Não sei se me explico bem, nem é preciso dizer melhor para o fogo a que lançarei um dia estas folhas de solitário.
De quando em quando, ela e o marido trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que também com a fala. Uma só vez a impressão visual foi melancólica. Mais tarde ouvi a explicação a mana Rita. Um dos convivas - sempre há indiscretos -, no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo "que Deus lhos negara para que eles se amassem melhor entre si". Não falou em verso, mas a ideia suportaria o metro e a rima, que o autor talvez houvesse cultivado em rapaz; orçava agora pelos cinquenta anos, e tinha um filho. Ouvindo aquela referência, os dous fitaram-se tristes, mas logo buscaram rir, e sorriram. Mana Rita me disse depois que essa era a única ferida do casal. Creio que Fidélia percebeu também a expressão de tristeza dos dous, porque eu a vi inclinar-se para ela com um gesto do cálix e brindar a D. Carmo cheia de graça e ternura:
- À sua felicidade.
A esposa Aguiar, comovida, apenas pôde responder logo com o gesto; só instantes depois de levar o cálix à boca, acrescentou, em voz meio surda, como se lhe custasse sair do coração apertado esta palavra de agradecimento:
- Obrigada.
Tudo foi assim segredado, quase calado. O marido aceitou a sua parte do brinde, um pouco mais expansivo, e o jantar acabou sem outro rasto de melancolia.
De noite vieram mais visitas; tocou-se, três ou quatro pessoas jogaram cartas. Eu deixei-me estar na sala, a mirar aquela porção de homens alegres e de mulheres verdes e maduras, dominando a todas pelo aspecto particular da velhice de D. Carmo, e pela graça apetitosa da mocidade de Fidélia; mas a graça desta trazia ainda a nota da viuvez recente, aliás de dous anos. Shelley continuava a murmurar ao meu ouvido para que eu repetisse a mim mesmo: I can give not what men call love.
Quando transmiti esta impressão a Rita, disse ela que eram desculpas de mau pagador, isto é, que eu, temendo não vencer a resistência da moça, dava-me por incapaz de amar. E pegou daqui para novamente fazer a apologia da paixão conjugal de Fidélia.
- Todas as pessoas daqui e de fora que os viram - continuou - podem dizer a você o que foi aquele casal. Basta saber que se uniram, como já lhe disse, contra a vontade dos dous pais, e amaldiçoados por ambos. D. Carmo tem sido confidente da amiga, e não repete o que lhe ouve por discreta, resume só o que pode, com palavras de afirmação e de admiração. Tenho-as ouvido muita vez. A mim mesma Fidélia conta alguma cousa. Converse com o tio... Olhe, ele que lhe diga também da gente Aguiar...
Neste ponto interrompi:
- Pelo que ouço, enquanto eu andava lá fora, a representar o Brasil, o Brasil fazia-se o seio de Abraão. Você, o casal Aguiar, o casal Noronha, todos os casais, em suma, faziam-se modelos de felicidade perpétua.
- Pois peça ao desembargador que lhe diga tudo.
- Outra impressão que levo desta casa e desta noite é que as duas damas, a casada e a viúva, parecem amar-se como mãe e filha, não é verdade?
- Creio que sim.
- A viúva também não tem filhos?
- Também não. É um ponto de contato.
- Há um ponto de desvio; é a viuvez de Fidélia.
- Isso não; a viuvez de Fidélia está com a velhice de D. Carmo; mas se você acha que é desvio tem nas suas mãos concertá-lo, é arrancar a viúva à viuvez, se puder; mas não pode, repito.
A mana não costuma dizer pilhérias, mas quando lhe sai alguma tem pico. Foi o que eu lhe disse então, ao metê-la no carro que a levou a Andaraí, enquanto eu vim a pé para o Catete. Esqueceu-me dizer que a casa Aguiar é na praia do Flamengo, ao fundo de um pequeno jardim, casa velha, mas sólida.
Sábado
Ontem encontrei um velho conhecido do corpo diplomático e prometi ir jantar com ele amanhã em Petrópolis. Subo hoje e volto segunda-feira. O pior é que acordei de mau humor, e antes quisera ficar que subir. E daí pode ser que a mudança de ar e de espetáculo altere a disposição do meu espírito. A vida, mormente nos velhos, é um ofício cansativo.
Segunda-feira
Desci hoje de Petrópolis. Sábado, ao sair a barca da Prainha, dei com o desembargador Campos a bordo, e foi um bom encontro, porque daí a pouco o meu mau humor cedia, e cheguei a Mauá já meio curado. Na estação de Petrópolis estava restabelecido inteiramente.
Não me lembra se já escrevi neste Memorial que o Campos foi meu colega de ano em São Paulo. Com o tempo e a ausência perdemos a intimidade, e quando nos vimos outra vez, o ano passado, apesar das recordações escolásticas que surgiram entre nós, éramos estranhos. Vimo-nos algumas vezes, e passamos uma noite no Flamengo; mas a diferença da vida tinha ajudado o tempo e a ausência.
Agora na barca fomos reatando melhor os laços antigos. A viagem por mar e por terra era de sobra para avivar alguma cousa da vida escolar. Bastante foi; acabamos lavados da velhice.
Ao subir a serra as nossas impressões divergiram um tanto. Campos achava grande prazer na viagem que íamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava-lhe que tivera maior gosto quando ali ia em caleças tiradas a burros, umas atrás das outras, não pelo veículo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá embaixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pinturescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até à própria estação de Petrópolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, ali para beber água na fonte célebre, e finalmente a vista do alto da serra, onde os elegantes de Petrópolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até à cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam ali mesmo para os carros onde as famílias esperavam por eles.
Campos continuou a dizer todo o bem que achava no trem de ferro, como prazer e como vantagem. Só o tempo que a gente poupa! Eu, se retorquisse dizendo-lhe bem do tempo que se perde, iniciaria uma espécie de debate que faria a viagem ainda mais sufocada e curta. Preferi trocar de assunto e agarrei-me aos derradeiros minutos, falei do progresso, ele também, e chegamos satisfeitos à cidade da serra.
Os dous fomos para o mesmo hotel (Bragança). Depois de jantar saímos em passeio de digestão, ao longo do rio. Então, a propósito dos tempos passados, falei do casal Aguiar e do conhecimento que Rita me disse que ele tinha da vida e da mocidade dos dous cônjuges. Confessei achar nestes um bom exemplo de aconchego e união. Talvez a minha intenção secreta fosse passar dali ao casamento da própria sobrinha dele, suas condições e circunstâncias, cousa difícil pela curiosidade que podia exprimir, e aliás não está nos meus hábitos, mas ele não me deu azo nem tempo. Todo este foi pouco para dizer da gente Aguiar. Ouvi com paciência, porque o assunto entrou a interessar-me depois das primeiras palavras, e também porque o desembargador fala muito agradavelmente. Mas agora é tarde para transcrever o que ele disse; fica para depois, um dia, quando houver passado a impressão, e só me ficar de memória o que vale a pena guardar.