Conto

Linha Reta e Linha Curva

1869
Este conto foi publicado pela primeira vez no Jornal das Famílias, entre outubro de 1865 e janeiro de 1866, assinado por Job. É, na verdade, a adaptação de uma peça de teatro de Machado de Assis, intitulada As forcas caudinas, provavelmente escrita em 1863 e inédita em vida do escritor.

III

Tinham-se passado oito dias depois do que acabo de narrar.

Tito, como o temos visto até aqui, estava no terreno do primeiro dia. Passeava, lia, conversava e parecia inteiramente alheio aos planos que se tramavam em roda dele. Durante esse tempo foi apenas duas vezes à casa de Emília, uma com a família de Azevedo, outra, com Diogo. Nestas visitas era sempre o mesmo, frio, indiferente, impassível. Não havia olhar, por mais sedutor e significativo, que o abalasse; nem a ideia de que andava no pensamento da viúva era capaz de animá-lo.

"Por que, ao menos, se não é capaz de amar, não procura entreter um desses namoros de sala, que tanto lisonjeiam a vaidade dos homens?"

Esta pergunta era feita por Emília a si mesma, sob a impressão da estranheza que lhe causava a indiferença do rapaz. Ela não compreendia que Tito pudesse conservar-se de gelo diante dos seus encantos. Mas infelizmente era assim.

Cansada de trabalhar em vão, a viúva determinou dar um golpe mais decisivo. Encaminhou a conversa para as doçuras do casamento e lamentou o estado de sua viuvez. O casal Azevedo era para ela o tipo da perfeita felicidade conjugal. Apresentava-o aos olhos de Tito como um incentivo para quem queria ser venturoso na terra. Nada, nem a tese, nem a hipótese, nada moveu a frieza de Tito.

Emília jogava um jogo perigoso. Era preciso decidir entre os seus desejos de vingar o sexo e as conveniências da sua posição; mas ela era de um caráter imperioso; respeitava muito os princípios de sua moral severa, mas não acatava do mesmo modo as conveniências de que a sociedade cercava essa moral. A vaidade impunha-se no espírito dela, com força prodigiosa. Assim quê, a bela viúva foi usando todos os meios que era lícito empregar para fazer apaixonar Tito.

Mas, apaixonado ele, o que faria ela? A pergunta é ociosa; desde que ela o tivesse aos pés, trataria de conservá-lo aí fazendo parelha ao velho Diogo. Era o melhor troféu que uma beleza altiva pode ambicionar.

Uma manhã, oito dias depois das cenas referidas no capítulo anterior, apareceu Diogo em casa de Azevedo. Tinham aí acabado de almoçar; Azevedo subira para o gabinete, a fim de aviar alguma correspondência para a Corte; Adelaide achava-se na sala do pavimento térreo.

Diogo entrou com uma cara contristada, como nunca se lhe vira. Adelaide correu para ele.

- Que é isso? - perguntou ela.

- Ah! Minha senhora... sou o mais infeliz dos homens!

- Por quê? Venha sentar-se...

Diogo sentou-se, ou antes deixou-se cair na cadeira que Adelaide lhe ofereceu. Esta tomou lugar ao pé dele, animou-o a contar as suas mágoas.

- Então que há?

- Duas desgraças - respondeu ele -. A primeira em forma de sentença. Perdi mais uma demanda. É uma desgraça isto, mas não é nada...

- Pois há maior?...

- Há. A segunda desgraça foi em forma de carta.

- De carta? - perguntou Adelaide.

- De carta. Veja isto.

Diogo tirou da carteira uma cartinha cor-de-rosa, cheirando a essência de magnólia.

Adelaide leu a carta para si.

Quando ela acabou, perguntou-lhe o velho:

- Que me diz a isto?

- Não compreendo - respondeu Adelaide.

- Esta carta é dela.

- Sim, e depois?

- É para ele.

- Ele quem?

- Ele! O diabo! O meu rival! O Tito!

- Ah!

- Dizer-lhe o que senti quando apanhei esta carta, é impossível. Nunca tremi na minha vida! Mas quando li isto, não sei que vertigem se apoderou de mim. Ando tonto! A cada passo como que desmaio... Ah!

- Ânimo! - disse Adelaide.

- É isto mesmo que eu vinha buscar... é uma consolação, uma animação. Soube que estava aqui e estimei achá-la só... Ah! Quanto sinto que o estimável seu marido esteja vivo... porque a melhor consolação era aceitar Vossa Excelência um coração tão mal compreendido.

- Felizmente ele está vivo.

Diogo soltou um suspiro e disse:

- Felizmente!

E depois de um silêncio continuou:

- Tive duas ideias: uma foi o desprezo; mas desprezá-los é pô-los em maior liberdade e ralar-me de dor e de vergonha; a segunda foi o duelo... é melhor... eu mato... ou...

- Deixe-se disso.

- É indispensável que um de nós seja riscado do número dos vivos.

- Pode ser engano...

- Mas não é engano, é certeza.

- Certeza de quê?

Diogo abriu o bilhete e disse:

- Ora, ouça:

Se ainda não me compreendeu é bem curto de penetração. Tire a máscara e eu me explicarei. Esta noite tomo chá sozinha. O importuno Diogo não me incomodará com as suas tolices. Dê-me a felicidade de vê-lo e admirá-lo.

Emília

- Mas que é isto?

- Que é isto? Ah! Se fosse mais do que isto já eu estava morto! Pude pilhar a carta, e a tal entrevista não se deu...

- Quando foi escrita a carta?

- Ontem.

- Tranquilize-se. É capaz de guardar um segredo? O que lhe vou dizer é grave. Mas só a sua aflição me faz falar. Posso afirmar-lhe que esta carta é uma pura caçoada. Trata-se de vingar o nosso sexo ultrajado; trata-se de fazer com que Tito se apaixone... nada mais.

Diogo estremeceu de alegria.

- Sim? - perguntou ele.

- É pura verdade. Mas veja lá, isto é segredo. Se lho descobri foi por vê-lo aflito. Não nos comprometa.

- Isso é sério? - insistiu Diogo.

- Como quer que lho diga?

- Ah! Que peso me tirou! Pode estar certa de que o segredo caiu num poço. Oh! Muito me hei de rir... muito me hei de rir... Que boa inspiração tive em vir falar-lhe! Diga-me, posso dizer a D. Emília que sei tudo?

- Não!

- É então melhor que não me dê por achado...

- Sim.

- Muito bem!

Dizendo estas palavras o velho Diogo esfregava as mãos e piscava os olhos. Estava radiante. Quê! Ver o suposto rival sendo vítima dos laços da viúva! Que glória! Que felicidade!

Nisto estava quando à porta do interior apareceu Tito. Acabava de levantar-se da cama.

- Bom dia, D. Adelaide - disse ele dirigindo-se para a mulher de Azevedo.

Depois, sentando-se e voltando a cara para Diogo:

- Bom dia - disse -. Está hoje alegre... Tirou a sorte grande?

- A sorte grande? - perguntou Diogo -. Tirei... tirei...

- Dormiu bem? - perguntou Adelaide a Tito.

- Como um justo que sou. Tive sonhos cor-de-rosas: sonhei com o Sr. Diogo.

- Ah! Sonhou comigo? - murmurou entre dentes o velho namorado -. Coitado! tenho pena dele!

- Mas onde está Azevedo? - perguntou Tito a Adelaide.

- Anda de passeio.

- Já?

- Pois então. Onze horas.

- Onze horas! É verdade, acordei muito tarde. Tinha duas visitas para fazer: uma a D. Emília...

- Ah! - disse Diogo.

- De que se espanta, meu caro?

- De nada! De nada!

- Bom; vou mandar pôr o seu almoço - disse Adelaide.

Os dous ficaram sós. Tito acendeu um cigarro de palha; Diogo afetava grande distração, mas olhava sorrateiramente para o moço. Este, apenas soltou duas fumaças, voltou-se para o velho e disse:

- Como vão os seus amores?

- Que amores?

- Os seus, a Emília... Já lhe fez compreender toda a imensidade da paixão que o devora?

- Qual... Preciso de algumas lições... Se mas quisesse dar?

- Eu? Está sonhando!

- Ah! Eu sei que o senhor é forte... É modesto, mas é forte... e até fortíssimo! Ora, eu sou realmente um aprendiz... Tive há pouco a ideia de desafiá-lo.

- A mim?

- É verdade, mas foi uma loucura de que me arrependi...

- Além de quê não é uso em nosso país...

- Em toda a parte é uso vingar a honra.

- Bravo, D. Quixote!

- Ora, eu acreditava-me ofendido na honra.

- Por mim?

- Mas emendei a mão; reparei que era antes eu quem ofendia pretendendo lutar com um mestre, eu, simples aprendiz...

- Mestre de quê?

- Dos amores! Oh! Eu sei que é mestre...

- Deixe-se disso... eu não sou nada... o Sr. Diogo, sim; o senhor vale um urso, vale mesmo dous. Como havia de eu... Ora!... Aposto que teve ciúmes?

- Exatamente.

- Mas era preciso não me conhecer; não sabe das minhas ideias?

- Homem, às vezes é pior.

- Pior, como?

- As mulheres não deixam uma afronta sem castigo... As suas ideias são afrontosas... Qual será o castigo? Paro aqui... paro aqui...

- Onde vai?

- Vou sair. Adeus. Não se lembre mais da minha desastrada ideia do duelo...

- Que está acabado... Ah! O senhor escapou de boa!

- De quê?

- De morrer. Eu enfiava-lhe a espada por esse abdome... com um gosto... com um gosto só comparável ao que tenho de abraçá-lo vivo e são!

Diogo riu-se com um riso amarelo.

- Obrigado, obrigado. Até logo!

- Venha cá, onde vai? Não se despede de D. Adelaide?

- Eu já volto - disse Diogo travando do chapéu e saindo precipitadamente.

Tito ainda o acompanhou com os olhos.

"Este sujeito", disse o moço consigo quando se viu só, "não tem nada de original. Aquela opinião a respeito das mulheres não é dele... Melhor... Já se conspira; é o que me convém. Hás de vir! Hás de vir!"

Um criado alemão veio anunciar a Tito que o almoço estava preparado. Tito ia entrando quando assomou à porta a figura de Azevedo.

- Ora, graças a Deus! O meu amigo não se levanta com o sol. Estás com olhos de quem acaba de dormir.

- É verdade, e vou almoçar.

Dirigiram-se os dous para dentro, onde a mesa estava posta à espera de Tito.

- Almoças outra vez? - perguntou Tito.

- Não.

- Pois então vais ver como se come.

Tito sentou-se à mesa; Azevedo estirou-se num sofá.

- Onde foste? - perguntou Tito.

- Fui passear... Compreendi que é preciso ver e admirar o que é indiferente, para apreciar e ver melhor aquilo que faz a felicidade íntima do coração.

- Ah! Sim? Bem vês que até a felicidade por igual fatiga! Afinal sempre a razão do meu lado.

- Talvez. Apesar de tudo, quer-me parecer que já intentas entrar na família dos casados.

- Eu?

- Tu, sim.

- Por quê?

- Mas, dize, é ou não verdade?

- Qual, verdade!

- O que sei é que uma destas tardes em que adormeceste lendo, não sei que livro, ouvi-te pronunciar em sonhos, com a maior ternura, o nome de Emília.

- Deveras? - perguntou Tito mastigando.

- É exato. Concluí que se sonhavas com ela é que a tinhas no pensamento, e se a tinhas no pensamento é que a amavas.

- Concluíste mal.

- Mal?

- Concluíste como um marido de cinco meses. Que prova um sonho?

- Prova muito!

- Não prova nada! Pareces velha supersticiosa...

- Mas enfim, alguma cousa há por força... Serás capaz de me dizeres o que é?

- Homem, podia dizer-te alguma cousa se não fosses casado...

- Que tem que eu seja casado?

- Tem tudo. Seria indiscreto sem querer e até sem saber. À noite, entre um beijo e um bocejo, o marido e a mulher abrem um para o outro a bolsa das confidências. Sem pensares, podes deitar tudo a perder.

- Não digas isso. Vamos lá. Há novidade?

- Não há nada.

- Confirmas as minhas suspeitas. Gostas da Emília.

- Ódio, não lhe tenho, é verdade.

- Gostas. E ela merece. É uma boa senhora, de não vulgar beleza, possuindo as melhores qualidades. Talvez preferisses que não fosse viúva?...

- Sim; é natural que se embale dez vezes por dia na lembrança dos dous maridos que já exportou para o outro mundo... à espera de exportar o terceiro...

- Não é dessas...

- Afianças?

- Quase que posso afiançar.

- Ah! Meu amigo - disse Tito levantando-se da mesa e indo acender um charuto -, toma o conselho de um tolo: nunca afiances nada, principalmente em tais assuntos. Entre a prudência discreta e a cega confiança não é lícito duvidar, a escolha está decidida nos próprios termos da primeira. O que podes tu afiançar a respeito de Emília? Não a conheces melhor do que eu. Há quinze dias que nos conhecemos, e eu já lhe leio no interior; estou longe de atribuir-lhe maus sentimentos, mas tenho a certeza de que não possui as raríssimas qualidades que são necessárias à exceção. Que sabes tu?

- Realmente, eu não sei nada.

"Não sabes nada!", disse Tito consigo.

- Falo pelas minhas impressões. Parecia-me que um casamento entre vocês ambos não vinha fora de propósito.

- Se me falas outra vez em casamento, saio.

- Pois só a palavra?

- A palavra, a ideia, tudo.

- Entretanto, admiras e aplaudes o meu casamento...

- Ah! Eu aplaudo nos outros muitas cousas de que não sou capaz de usar. Depende da vocação...

Adelaide apareceu à porta da sala de jantar. A conversa cessou entre os dous rapazes.

- Trago-lhes uma notícia.

- Que notícia? - perguntaram-lhe os dous.

- Recebi um bilhete de Emília... Pede-nos que vamos lá amanhã, porque...

- Por quê? - perguntou Azevedo.

- Talvez dentro de oito dias se retire para a cidade.

- Ah! - disse Tito com a maior indiferença deste mundo.

- Apronta as tuas malas - disse Azevedo a Tito.

- Por quê?

- Não segues os passos da deusa?

- Não zombes, cruel amigo! Quando não...

- Anda lá...

Adelaide sorriu ouvindo estas palavras.

Daí a meia hora Tito subiu para o gabinete em que Azevedo tinha os livros. Ia, dizia, ler as Confissões de Santo Agostinho.

- Que repentina viagem é esta? - perguntou Azevedo à sua mulher.

- Tens muito empenho em saber?

- Tenho.

- Pois bem. Olha que é segredo. Eu não sei positivamente, mas creio que é uma estratégia.

- Estratégia? Não entendo.

- Eu te digo. Trata-se de prender o Tito.

- Prender?

- Estás hoje tão bronco! Prender pelos laços do amor...

- Ah!

- Emília julgou que deve fazê-lo. É só para brincar. No dia em que ele se declarar vencido fica ela vingada do que ele disse contra o sexo.

- Não está mau... E tu entras nesta estratégia...

- Como conselheira.

- Trama-se então contra um amigo, um alter ego.

- Tá, tá, tá. Cala a boca. Não vás fazer abortar o plano.

Azevedo riu-se a bandeiras despregadas. No fundo achava engraçada a punição premeditada ao pobre Tito.

A visita que Tito disse ter de fazer à viúva naquele dia não se realizou.

Diogo, que apenas saíra da casa de Azevedo, ciente das intenções da viúva, fora para casa desta esperar o rapaz, embalde lá esteve durante o dia, embalde jantou, embalde aborreceu a tarde inteira tanto a Emília como à tia; Tito não apareceu.

Mas, à noite, à hora em que Diogo, já vexado de tanta demora na casa da moça, tratava de sair, anunciou-se a chegada de Tito.

Emília estremeceu; mas esse movimento escapou a Diogo.

Tito entrou na sala onde se achavam Emília, a tia, e Diogo.

- Não contava com a sua visita - disse a viúva.

- Eu sou assim; apareço quando não me esperam. Sou como a morte e a sorte grande.

- Agora é a sorte grande - disse Emília.

- Que número é o seu bilhete, minha senhora?

- Número doze, isto é, doze horas que tenho tido o prazer de ter hoje aqui o Sr. Diogo...

- Doze horas! - exclamou Tito voltando-se para o velho.

- Sem que ainda o nosso bom amigo nos contasse uma história...

- Doze horas! - repetiu Tito.

- Que admira, meu caro senhor? - perguntou Diogo.

- Acho um pouco estirado...

- As horas contam-se quando são aborrecidas... Peço para me retirar...

E dizendo isto, Diogo travou do chapéu para sair lançando um olhar de despeito e ciúme para a viúva.

- Que é isso? - perguntou esta -. Onde vai?

- Dou asas às horas - respondeu Diogo ao ouvido de Emília -; vão correr depressa agora.

- Perdoo-lhe e peço que se sente.

Diogo sentou-se.

A tia de Emília pediu licença para retirar-se alguns minutos.

Ficaram os três.

- Mas então - disse Tito -, nem ao menos uma história contou?

- Nenhuma.

Emília lançou um olhar a Diogo como para tranquilizá-lo. Este, mais calmo então, lembrou-se do que Adelaide lhe havia dito, e voltou às boas.

"Afinal de contas", disse ele consigo, "o caçoado é ele. Eu sou apenas o meio de prendê-lo... Contribuamos para que se lhe tire a proa."

- Nenhuma história - continuou Emília.

- Pois olhe, eu sei muitas - disse Diogo com intenção.

- Conte uma de tantas que sabe - disse Tito.

- Nada! Por que não conta o senhor?

- Se faz empenho...

- Muito... muito - disse Diogo piscando os olhos -. Conte lá, por exemplo, a história do taboqueado, a história das imposturas do amor, a história dos viajantes encouraçados; vá, vá.

- Não, vou contar a história de um homem e de um macaco.

- Oh! - disse a viúva.

- É muito interessante - disse Tito -. Ora, ouçam...

- Perdão - interrompeu Emília -, será depois do chá.

- Pois sim.

Daí a pouco servia-se o chá aos três. Findo ele, Tito tomou a palavra e começou a história:

A História de Um Homem e de Um Macaco

Não longe da vila ***, no interior do Brasil, morava há uns vinte anos um homem de trinta e cinco anos, cuja vida misteriosa era o objeto das conversas das vilas próximas e o objeto do terror que experimentavam os viajantes que passavam na estrada a dous passos da casa.

A própria casa era já de causar apreensões ao espírito menos timorato. Vista de longe nem parecia casa, tão baixinha era. Mas quem se aproximasse conheceria aquela construção singular. Metade do edifício estava ao nível do chão e metade abaixo da terra. Era entretanto uma casa solidamente construída. Não tinha porta nem janelas. Tinha um vão quadrado que servia ao mesmo tempo de janela e de porta. Era por ali que o misterioso morador entrava e saía.

Pouca gente o via sair, não só porque ele raras vezes o fazia, como porque o fazia em horas impróprias. Era nas horas da lua cheia que o solitário deixava a residência para ir passear nos arredores. Levava sempre consigo um grande macaco, que acudia pelo nome de Calígula.

O macaco e o homem, o homem e o macaco, eram dous amigos inseparáveis, dentro e fora de casa, na lua nova.

Mil versões corriam a respeito deste misterioso solitário.

A mais geral é que era um feiticeiro. Havia uma que o dava por doudo; outra por simplesmente atacado de misantropia.

Esta última versão tinha por si duas circunstâncias: a primeira era não constar nada de positivo que fizesse reconhecer no homem hábitos de feiticeiro ou alienado; a segunda era a amizade que ele parecia votar ao macaco e o horror com que fugia ao olhar dos homens. Quando a gente se aborrece dos homens toma sempre a afeição dos animais, que têm a vantagem de não discorrer, nem intrigar.

O misterioso... É preciso dar-lhe um nome: chamemo-lo Daniel. Daniel preferia o macaco, e não falava a mais homem algum. Algumas vezes os viajantes que passavam pela estrada ouviam partir de dentro da casa gritos do macaco e do homem; era o homem que afagava o macaco.

Como se alimentavam aquelas duas criaturas? Houve quem visse um dia de manhã abrir-se a porta, sair o macaco e voltar pouco depois com um embrulho na boca. O tropeiro que presenciava esta cena quis descobrir onde ia o macaco buscar aquele embrulho que levava sem dúvida os alimentos dos dous solitários. Na manhã seguinte introduziu-se no mato; o macaco chegou à hora do costume, e dirigiu-se para um tronco de árvore; havia sobre esse tronco um grande galho, que o bicho atirou ao chão. Depois, introduzindo as mãos no interior do velho tronco, tirou um embrulho igual ao da véspera e partiu.

O tropeiro persignou-se, e tão apreensivo ficou com a cena que acabava de presenciar que não a contou a ninguém.

Durava esta existência três anos.

Durante esse tempo o homem não envelhecera. Era o mesmo que no primeiro dia. Longas barbas ruivas e cabelos grandes caídos para trás. Usava um grande casaco de baeta, tanto no inverno, como no verão. Calçava botas e não usava chapéu.

Era impossível aos passageiros e aos moradores das vizinhanças penetrar na casa do solitário. Não o será decerto para nós, minha bela senhora, e meu caro amigo.

A casa divide-se em duas salas e um quarto. Uma sala é para jantar; a outra é... a de visitas. O quarto é ocupado pelos dous moradores, Daniel e Calígula.

As duas salas são de iguais dimensões; o quarto é uma metade da sala. A mobília da primeira sala compõe-se de dous sujos bancos encostados à parede, uma mesa baixa no centro. O chão é assoalhado. Pendem das paredes dous retratos: um de moça, outro de velho. A moça é uma figura angélica e deliciosa. O velho inspirava respeito e admiração. Das outras duas paredes pendem, de um lado uma faca de cabo de marfim, e do outro, uma mão de defunto, amarela e seca.

A sala de jantar tem apenas uma mesa e dous bancos.

A mobília do quarto resume-se num grabato em que dorme Daniel. Calígula estende-se no chão, junto à cabeceira do dono.

Tal é a mobília da casa.

A casa, que de fora parece não ter capacidade para conter um homem em pé, é contudo suficiente, visto estar, como disse, entranhada no chão.

Que vida terão passado aí dentro o macaco e o homem, no espaço de três anos? Não saberei dizê-lo.

Quando Calígula traz de manhã o embrulho, Daniel divide a comida em duas porções, uma para o almoço, outra para o jantar. Depois homem e macaco sentam-se em face um do outro na sala de jantar e comem irmãmente as duas refeições.

Quando chega a lua cheia saem os dous solitários, como já disse, todas as noites, até a época em que a lua passa a ser minguante. Saem às dez horas, pouco mais ou menos, e voltam pouco mais ou menos às duas horas da madrugada. Quando entram, Daniel tira a mão do finado que pende da parede e dá com ela duas bofetadas em si próprio. Feito isto, vai deitar-se; Calígula acompanha-o.

Uma noite, era no mês de junho, época de lua cheia, Daniel preparou-se para sair. Calígula deu um pulo e saltou à estrada. Daniel fechou a porta, e lá se foi com o macaco estrada acima.

A lua, inteiramente cheia, projetava os seus reflexos pálidos e melancólicos na vasta floresta que cobria colinas próximas, e clareava toda a vasta campina que rodeava a casa.

Só se ouvia ao longe o murmúrio de uma cachoeira, e ao perto o piar de algumas corujas, e o chilrar de uma infinidade de grilos espalhados na planície.

Daniel caminhava pausadamente, levando um pau debaixo do braço, e acompanhado do macaco, que saltava do chão aos ombros de Daniel e dos ombros de Daniel para o chão.

Mesmo sem a forma lúgubre que tinha aquele lugar por causa da residência do solitário, qualquer pessoa que encontrasse àquela hora Daniel e o macaco corria risco de morrer de medo. Daniel, extremamente magro e alto, tinha em si um ar lúgubre. Os cabelos da barba e da cabeça, crescidos em abundância, faziam a sua cabeça ainda maior do que era. Sem chapéu era uma cabeça verdadeiramente satânica.

Calígula, que nos outros dias era um macaco ordinário, tomava, naquelas horas de passeio noturno, um ar tão lúgubre e tão misterioso como o de Daniel.

Havia já uma hora que os dous solitários tinham saído de casa. A casa ficara já um pouco longe. Nada mais natural do que chegar a polícia nessa ocasião, tomar a entrada da casa e reconhecer o mistério. Mas a polícia, apesar dos meios que tinha à sua disposição, não se animava a investigar no mistério que o povo reputava diabólico. Também a polícia é humana, e nada do que é humano lhe é desconhecido.

Havia uma hora, disse eu, que os dous passeadores tinham saído de casa. Começavam então a subir uma pequena colina...

Tito foi interrompido por um bocejo do velho Diogo.

- Quer dormir? - perguntou o rapaz.

- É o que vou fazer.

- Mas a história?

- A história é muito divertida. Até aqui só temos visto duas cousas, um homem e um macaco; perdão... temos mais dous, um macaco e um homem. É muito divertida! Mas, para variar, o homem vai sair e fica o macaco.

Dizendo estas palavras com uma raiva cômica, Diogo travou do chapéu e saiu.

Tito soltou uma gargalhada.

- Mas vamos ao fim da história...

- Que fim, minha senhora? Eu já estava em talas por não saber como continuar... Era um meio de servi-la. Vejo que é um velho aborrecido...

- Não é, está enganado.

- Ah! Não?

- Divirto-me com ele. O que não impede que a presença do senhor me dê infinito prazer...

- Vossa Excelência disse agora uma falsidade.

- Qual foi?

- Disse que lhe era agradável a minha conversa. Ora, isso é falso como tudo quanto é falso...

- Quer um elogio?

- Não, falo franco. Eu nem sei como Vossa Excelência me atura; desabrido, maçante, chocarreiro, sem fé em cousa alguma, sou um conversador muito pouco digno de ser desejado. É preciso ter uma grande soma de bondade para ter expressões tão benévolas... tão amigas...

- Deixe esse ar de mofa, e...

- Mofa, minha senhora?

- Ontem eu e minha tia tomamos chá sozinhas! Sozinhas!...

- Ah!

- Contava que o senhor viesse aborrecer-se uma hora conosco...

- Qual aborrecer... Eu lhe digo: o culpado foi o Ernesto.

- Ah! Foi ele?

- É verdade; deu comigo aí em casa de uns amigos, éramos quatro ao todo, rolou a conversa sobre o voltarete e acabamos por formar mesa. Ah! Mas foi uma noite completa! Aconteceu-me o que me acontece sempre: ganhei!

- Está bom.

- Pois olhe, ainda assim eu não jogava com pexotes; eram mestres de primeira força: um principalmente; até às onze horas a fortuna pareceu desfavorecer-me, mas dessa hora em diante desandou a roda para eles e eu comecei a assombrar... Pode ficar certa de que os assombrei. Ah! É que eu tenho diploma... Mas que é isso, está chorando?

Emília tinha com efeito o lenço nos olhos. Chorava? É certo que quando tirou o lenço dos olhos, tinha-os úmidos. Voltou-se contra a luz e disse ao moço:

- Qual... pode continuar.

- Não há mais nada; foi só isto - disse Tito.

- Estimo que a noite lhe corresse feliz...

- Alguma cousa...

- Mas a uma carta responde-se; por que não respondeu à minha? - disse a viúva.

- À sua qual?

- À carta que lhe escrevi pedindo que viesse tomar chá conosco?

- Não me lembro.

- Não se lembra?

- Ou, se recebi essa carta, foi em ocasião que a não pude ler, e então esqueci, esqueci-a em algum lugar...

- É possível: mas é a última vez...

- Não me convida mais para tomar chá?

- Não. Pode arriscar-se a perder distrações melhores.

- Isso, não digo: a senhora trata bem a gente, e em sua casa passam-se bem as horas... Isto é com franqueza. Mas então tomou chá sozinha? E o Diogo?

- Descartei-me dele. Acha que ele seja divertido?

- Parece que sim... É um homem delicado; um tanto dado às paixões, é verdade, mas sendo esse um defeito comum, acho que nele não é muito digno de censura.

- O Diogo está vingado.

- De quê, minha senhora?

Emília olhou fixamente para Tito e disse:

- De nada!

E levantando-se dirigiu-se para o piano.

- Vou tocar - disse ela-; não o aborrece?

- De modo nenhum.

Emília começou a tocar; mas era uma música tão triste que infundia certa melancolia no espírito do moço. Este, depois de algum tempo, interrompeu com estas palavras:

- Que música triste!

- Traduzo a minha alma - disse a viúva.

- Anda triste?

- Que lhe importam as minhas tristezas?

- Tem razão, não me importam nada. Em todo o caso não é comigo?

Emília levantou-se e foi para ele.

- Acha que lhe hei de perdoar a desfeita que me fez? - disse ela.

- Que desfeita, minha senhora?

- A desfeita de não vir ao meu convite!

- Mas eu já lhe expliquei...

- Paciência! O que sinto é que também nesse voltarete estivesse o marido de Adelaide.

- Ele retirou-se às dez horas, e entrou um parceiro novo, que não era de todo mau.

- Pobre Adelaide!

- Mas se eu lhe digo que ele se retirou às dez horas...

- Não devia ter ido. Devia pertencer sempre à sua mulher. Sei que estou falando a um descrido; não pode calcular a felicidade e os deveres do lar doméstico. Viverem duas criaturas uma para outra, confundidas, unificadas; pensar, respirar, sonhar a mesma cousa; limitar o horizonte nos olhos de cada uma, sem outra ambição, sem inveja de mais nada. Sabe o que é isto?

- Sei... É o casamento por fora.

- Conheço alguém que lhe provava aquilo tudo...

- Deveras? Quem é essa fênix?

- Se lho disser, há de mofar; não digo.

- Qual mofar! Diga lá, eu sou curioso.

- Não acredita que haja alguém que possa amá-lo?

- Pode ser...

- Não acredita que alguém, por despeito, por outra cousa que seja, tire da originalidade do seu espírito os influxos de um amor verdadeiro, mui diverso do amor ordinário dos salões; um amor capaz de sacrifício, capaz de tudo? Não acredita!

- Se me afirma, acredito; mas...

- Existe a pessoa e o amor.

- São então duas fênix.

- Não zombe. Existem... Procure...

- Ah! Isso há de ser mais difícil: não tenho tempo. E supondo que achasse, de que me servia? Para mim é perfeitamente inútil. Isso é bom para outros; para o Diogo, por exemplo...

- Para o Diogo?

A bela viúva pareceu ter um assomo de cólera. Depois de um silêncio disse:

- Adeus! Desculpe, estou incomodada.

- Então, até amanhã!

Dizendo o quê, Tito apertou a mão de Emília e saiu tão alegre e descuidoso como se saísse de um jantar de anos.

Emília, apenas ficou só, caiu numa cadeira e cobriu o rosto.

Estava nessa posição havia cinco minutos, quando assomou à porta a figura do velho Diogo.

O rumor que o velho fez entrando despertou a viúva.

- Ainda aqui!

- É verdade, minha senhora - disse Diogo aproximando-se -, é verdade. Ainda aqui, por minha infelicidade...

- Não entendo...

- Não saí para casa. Um demônio oculto me impeliu para cometer um ato infame. Cometi-o, mas tirei dele um proveito; estou salvo. Sei que me não ama.

- Ouviu?

- Tudo. E percebi.

- Que percebeu, meu caro senhor?

- Percebi que a senhora ama o Tito.

- Ah!

- Retiro-me, portanto, mas não quero fazê-lo sem que ao menos fique sabendo de que saio com ciência de que não sou amado; e que saio antes de me mandarem embora.

Emília ouviu as palavras de Diogo com a maior tranquilidade. Enquanto ele falava teve tempo de refletir no que devia dizer.

Diogo estava já a fazer o seu último cumprimento, quando a viúva lhe dirigiu a palavra.

- Ouça-me, Sr. Diogo. Ouviu bem, mas percebeu mal. Já que pretende ter sabido...

- Já sei; vem dizer que há um plano assentado de zombar com aquele moço...

- Como sabe?

- Disse-mo D. Adelaide.

- É verdade.

- Não creio.

- Por quê?

- Havia lágrimas nas suas palavras. Ouvi-as com a dor n'alma. Se soubesse como eu sofria!

A bela viúva não pôde deixar de sorrir ao gesto cômico de Diogo. Depois, como ele parecesse mergulhado em meditação sombria, disse:

- Engana-se, tanto que volto para a cidade.

- Deveras?

- Pois acredita que um homem como aquele possa inspirar qualquer sentimento sério? Nem por sombras!

Estas palavras foram ditas no tom com que Emília costumava persuadir aquele eterno namorado. Isso e mais um sorriso foi quanto bastou para acalmar o ânimo de Diogo. Daí a alguns minutos estava ele radiante.

- Olhe, e para desenganá-lo de uma vez vou escrever um bilhete ao Tito...

- Eu mesmo o levarei - disse Diogo louco de contente.

- Pois sim!

- Adeus, até amanhã. Tenha sonhos cor-de-rosa, e desculpe os meus maus modos. Até amanhã.

O velho beijou graciosamente a mão de Emília e saiu.

IV

No dia seguinte, ao meio-dia, Diogo apresentou-se ao Tito, e depois de falar sobre diferentes cousas, tirou do bolso uma cartinha, que fingira ter esquecido até então, e à qual mostrava não dar grande apreço.

- Que bomba! - disse ele consigo, na ocasião em que Tito rasgou a sobrecarta.

Eis o que dizia a carta:

Dei-lhe o meu coração. Não quis aceitá-lo, desprezou-o mesmo. A sua bota magoou-o demais para que ele possa palpitar ainda. Está morto. Não o censuro; não se deve falar de luz aos cegos; a culpada fui eu. Supus que pudesse dar-lhe uma felicidade, recebendo outra. Enganei-me.

Tem a glória de retirar-se com todas as honras de guerra. Eu é que fico vencida. Paciência! Pode zombar de mim; não lhe contesto o direito que tem para isso.

Entretanto, devo dizer-lhe que eu bem o conhecia; nunca lho disse, mas conhecia-o; desde o dia em que o vi pela primeira vez em casa de Adelaide, reconheci na sua pessoa o mesmo homem que um dia veio atirar-se aos meus pés... Era zombaria então, como hoje. Eu já devia conhecê-lo. Caro pago o meu engano. Adeus, adeus para sempre.

Lendo esta carta, Tito olhava repetidas vezes para Diogo. Como é que o velho se prestara àquilo? Era autêntica ou apócrifa a tal carta? Sobre não trazer assinatura, tinha a letra disfarçada. Seria uma arma de que o velho usara para descartar-se do rapaz? Mas, se fosse assim, era preciso que ele soubesse do que se passara na véspera.

Tito releu a carta muitas vezes; e, despedindo-se do velho, disse-lhe que a resposta iria depois.

Diogo retirou-se esfregando as mãos de contente.

É que a carta cuja leitura os leitores fizeram ao mesmo tempo que o nosso herói não era a que Emília lera a Diogo. Na minuta apresentada ao velho a viúva declarava simplesmente que se retirava para a Corte, e acrescentava que entre as recordações que levava de Petrópolis figurava Tito, pela figura que ele havia representado diante dela. Mas essa minuta, por uma destreza puramente feminina, não foi a que Emília mandou a Tito, como viram os leitores.

À carta de Emília respondeu Tito nos seguintes termos:

Minha senhora,

Li e reli a sua carta; e não lhe ocultarei o sentimento de pesar que ela me inspirou. Realmente, minha senhora, é esse o estado do seu coração? Está assim tão perdido por mim?

Diz Vossa Excelência que eu com a minha bota machuquei o seu coração. Penaliza-me o fato, sem que eu entretanto o confirme. Não me lembra até hoje que tivesse feito estrago algum desta natureza. Mas, enfim, Vossa Excelência o diz, e eu devo crê-lo.

Lendo esta carta Vossa Excelência dirá consigo que eu sou o mais audaz cavalheiro que ainda pisou a terra de Santa Cruz. Será um engano de observação. Isto em mim não é audácia, é franqueza. Lastimo que as cousas chegassem a este ponto, mas não posso dizer-lhe nada mais que a verdade.

Devo confessar que não sei se a carta a que respondo é de Vossa Excelência. A sua letra, de que eu já vi uma amostra no álbum de D. Adelaide, não se parece com a da carta; está evidentemente disfarçada; é de qualquer mão. Demais, não traz assinatura.

Digo isto porque a primeira dúvida que nasceu em meu espírito proveio do portador escolhido. Pois quê! Vossa Excelência não achou outro senão o próprio Diogo? Confesso que, de tudo o que tenho visto em minha vida, é isto o que mais me faz rir.

Mas eu não devo rir, minha senhora. Vossa Excelência abriu-me o seu coração de um modo que inspira antes compaixão. Esta compaixão não lhe é desairosa, porque não vem por sentido irônico. É pura e sincera. Sinto não poder dar-lhe essa felicidade que me pede; mas é assim.

Não devo estender-me, e contudo custa-me arrancar a pena de cima do papel. É que poucos terão a posição que eu ocupo agora, a posição de requestado. Mas devo acabar e acabo aqui, mandando-lhe os meus pêsames e rogando a Deus para que encontre um coração menos frio que o meu.

A letra vai disfarçada como a sua, e, como na sua carta, deixo a assinatura em branco.

Esta carta foi entregue à viúva na mesma tarde. À noite Azevedo e Adelaide foram visitá-la. Não puderam dissuadi-la da ideia da viagem para a Corte. Emília usou mesmo de uma certa reserva para com Adelaide, que não pôde descobrir os motivos de semelhante procedimento, e retirou-se um tanto triste.

No dia seguinte, com efeito, Emília e a tia aprontaram-se e saíram para voltar para a Corte.

Diogo ficou em Petrópolis ainda, cuidando em aprontar as malas... Não queria, dizia ele, que o público, vendo-o partir em companhia das duas senhoras, supusesse cousas desairosas à viúva.

Todos estes passos admiravam Adelaide, que, como disse, via na insistência de Emília e nos seus modos reservados um segredo que não compreendia. Quereria ela por aquele meio de viagem atrair Tito? Nesse caso era cálculo errado; visto que o rapaz, naquele dia como nos outros, acordou tarde e almoçou alegremente.

- Sabe - disse Adelaide - que a esta hora deve ter partido para a cidade a nossa amiga Emília?

- Já tinha ouvido dizer.

- Por que será?

- Ah! Isso é que eu não sei. Altos segredos do espírito de mulher! Por que sopra hoje a brisa deste lado e não daquele? Interessa-me tanto saber uma cousa como outra.

No fim do almoço Tito, como quase sempre, retirou-se para ler durante duas horas.

Adelaide ia dar algumas ordens quando viu com pasmo entrar-lhe em casa a viúva, acompanhada de um criado.

- Ah! Não partiste! - disse Adelaide correndo a abraçá-la.

- Não me vês aqui?

O criado saiu a um sinal de Emília.

- Mas que há? - perguntou a mulher de Azevedo, vendo os modos estranhos da viúva.

- Que há? - disse esta -. Há o que não prevíamos... És quase minha irmã... posso falar francamente. Ninguém nos ouve?

- Ernesto está fora e o Tito, lá em cima. Mas que ar é esse?

- Adelaide! - disse Emília com os olhos rasos de lágrimas -; eu o amo!

- Que me dizes?

- Isto mesmo. Amo-o doudamente, perdidamente, completamente. Procurei até agora vencer esta paixão, mas não pude; e quando, por vãos preconceitos, tratava de ocultar-lhe o estado do meu coração, não pude, as palavras saíram-me dos lábios insensivelmente...

- Mas como se deu isto?

- Eu sei! Parece que foi castigo; quis fazer fogo e queimei-me nas mesmas chamas. Ah! Não é de hoje que me sinto assim. Desde que os seus desdéns em nada cederam, comecei a sentir não sei o quê; ao princípio, despeito, depois, um desejo de triunfar, depois, uma ambição de ceder tudo, contanto que tudo ganhasse; afinal não fui senhora de mim. Era eu quem me sentia doudamente apaixonada e lho manifestava, por gestos, por palavras, por tudo; e mais crescia nele a indiferença, mais crescia o amor em mim.

- Mas estás falando sério?

- Olha antes para mim.

- Quem pensara?...

- A mim própria parece impossível; porém é mais que verdade...

- E ele?...

- Ele disse-me quatro palavras indiferentes, nem sei o que foi, e retirou-se.

- Resistirá?

- Não sei.

- Se eu adivinhara isto não te insinuaria naquela malfadada ideia.

- Não me compreendeste. Cuidas que eu deploro o que acontece? Oh! Não! Sinto-me feliz, sinto-me orgulhosa... É um destes amores que brotam por si para encher a alma de satisfação: devo antes abençoar-te...

- É uma verdadeira paixão... Mas acreditas impossível a conversão dele?

- Não sei; mas seja ou não impossível, não é a conversão que eu peço; basta-me que seja menos indiferente e mais compassivo.

- Mas que pretendes fazer? - perguntou Adelaide sentindo que as lágrimas também lhe rebentavam dos olhos.

Houve alguns instantes de silêncio.

- Mas o que tu não sabes - continuou Emília - é que ele não é para mim um simples estranho. Já o conhecia antes de casada. Foi ele quem me pediu em casamento antes de Rafael...

- Ah!

- Sabias?

- Ele já me havia contado a história, mas não nomeara a santa. Eras tu?

- Era eu. Ambos nos conhecíamos, sem dizermos nada um ao outro...

- Por quê?

A resposta a esta pergunta foi dada pelo próprio Tito, que assomara à porta do interior. Tendo visto entrar a viúva de uma das janelas, Tito desceu abaixo a ouvir a conversa dela com Adelaide. A estranheza que lhe causava a volta inesperada de Emília podia desculpar a indiscrição do rapaz.

- Por quê? - repetiu ele -. É o que lhes vou dizer.

- Mas antes de tudo - disse Adelaide - não sei se sabe que uma indiferença, tão completa, como a sua, pode ser fatal a quem lhe é menos indiferente?

- Refere-se à sua amiga? - perguntou Tito -. Eu corto tudo com uma palavra.

E voltando-se para Emília, disse, estendendo-lhe a mão:

- Aceita a minha mão de esposo?

Um grito de alegria suprema ia saindo do peito de Emília; mas não sei se um resto de orgulho, ou qualquer outro sentimento, converteu essa manifestação em uma simples palavra, que aliás foi pronunciada com lágrimas na voz:

- Sim! - disse ela.

Tito beijou amorosamente a mão da viúva. Depois acrescentou:

- Mas é preciso medir toda a minha generosidade; eu devia dizer: aceito a sua mão. Devia ou não devia? Sou um tanto original e gosto de fazer inversão em tudo.

- Pois sim; mas de um ou outro modo sou feliz. Contudo um remorso me surge na consciência. Dou-lhe uma felicidade tão completa como a que recebo?

- Remorso? Se é sujeita aos remorsos deve ter um, mas por motivo diverso. A senhora está passando neste momento pelas forcas caudinas. Fi-la sofrer, não? Ouvindo o que vou dizer concordará que eu já antes sofria, e muito mais.

- Temos romance? - perguntou Adelaide a Tito.

- Realidade, minha senhora - respondeu Tito -, e realidade em prosa. Um dia, há já alguns anos, tive eu a felicidade de ver uma senhora, e amei-a. O amor foi tanto mais indomável quanto que me nasceu de súbito. Era então mais ardente que hoje, não conhecia muito os usos do mundo. Resolvi declarar-lhe a minha paixão e pedi-la em casamento. Tive em resposta este bilhete...

- Já sei - disse Emília -. Essa senhora fui eu. Estou humilhada; perdão!

- Meu amor a perdoa; nunca deixei de amá-la. Eu estava certo de encontrá-la um dia e procedi de modo a fazer-me o desejado.

- Escreva isto e dirão que é um romance - disse alegremente Adelaide.

- A vida não é outra cousa... - acrescentou Tito.

Daí a meia hora entrava Azevedo. Admirado da presença de Emília quando a supunha a rodar no trem de ferro, e mais admirado ainda das maneiras cordiais por que se tratavam Tito e Emília, o marido de Adelaide inquiriu a causa disso.

- A causa é simples - respondeu Adelaide -; Emília voltou porque vai casar-se com Tito.

Azevedo não se deu por satisfeito; explicaram-lhe tudo.

- Percebo - disse ele -. Tito não tendo alcançado nada caminhando em linha reta, procurou ver se alcançava caminhando por linha curva. Às vezes é o caminho mais curto.

- Como agora - acrescentou Tito.

Emília jantou em casa de Adelaide. À tarde apareceu ali o velho Diogo, que ia despedir-se porque devia partir para a Corte no dia seguinte de manhã. Grande foi a sua admiração quando viu a viúva.

- Voltou?

- É verdade - respondeu Emília rindo.

- Pois eu ia partir, mas já não parto. Ah! Recebi uma carta da Europa: foi o capitão da galera Macedônia que ma trouxe! Chegou o urso!

- Pois vá fazer-lhe companhia - respondeu Tito.

Diogo fez uma careta. Depois, como desejasse saber o motivo da súbita volta da viúva, esta explicou-lhe que se ia casar com Tito.

Diogo não acreditou.

- É ainda um laço, não? - disse ele piscando os olhos.

E não só não acreditou então, como não acreditou daí em diante, apesar de tudo. Daí a alguns dias partiram todos para a Corte. Diogo ainda se não convencia de nada. Mas quando, entrando um dia em casa de Emília, viu a festa do noivado, o pobre velho não pôde negar a realidade e sofreu um forte abalo. Todavia, teve ainda coração para assistir às festas do noivado. Azevedo e a mulher serviram de testemunhas.

"É preciso confessar", escrevia dous meses depois o feliz noivo ao esposo de Adelaide; "é preciso confessar que eu entrei num jogo arriscado. Podia perder; felizmente ganhei."

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