Conto

Linha Reta e Linha Curva

1869
Este conto foi publicado pela primeira vez no Jornal das Famílias, entre outubro de 1865 e janeiro de 1866, assinado por Job. É, na verdade, a adaptação de uma peça de teatro de Machado de Assis, intitulada As forcas caudinas, provavelmente escrita em 1863 e inédita em vida do escritor.

Capítulo Primeiro

Era em Petrópolis, no ano de 186... Já se vê que a minha história não data de longe. É tomada dos anais contemporâneos e dos costumes atuais. Talvez algum dos leitores conheça até as personagens que vão figurar neste pequeno quadro. Não será raro que, encontrando uma delas amanhã, Azevedo, por exemplo, um dos meus leitores exclame:

- Ah! Cá vi uma história em que se falou de ti. Não te tratou mal o autor. Mas a semelhança era tamanha, houve tão pouco cuidado em disfarçar a fisionomia, que eu, à proporção que voltava a página, dizia comigo: "É o Azevedo, não há dúvida."

Feliz Azevedo! A hora em que começa essa narrativa é ele um marido feliz, inteiramente feliz. Casado de fresco, possuindo por mulher a mais formosa dama da sociedade, e a melhor alma que ainda se encarnou ao sol da América, dono de algumas propriedades bem situadas e perfeitamente rendosas, acatado, querido, descansado, tal é o nosso Azevedo, a quem por cúmulo de ventura coroam os mais belos vinte e seis anos.

Deu-lhe a fortuna um emprego suave: não fazer nada. Possui um diploma de bacharel em direito; mas esse diploma nunca lhe serviu; existe guardado no fundo da lata clássica em que o trouxe da faculdade de São Paulo. De quando em quando Azevedo faz uma visita ao diploma, aliás ganho legitimamente, mas é para não se ver mais senão daí a longo tempo. Não é um diploma, é uma relíquia.

Quando Azevedo saiu da faculdade de São Paulo e voltou para a fazenda da província de Minas Gerais, tinha um projeto: ir à Europa. No fim de alguns meses o pai consentiu na viagem, e Azevedo preparou-se para realizá-la. Chegou à Corte no propósito firme de tomar lugar no primeiro paquete que saísse; mas nem tudo depende da vontade do homem. Azevedo foi a um baile antes de partir; aí estava armada uma rede em que ele devia ser colhido. Que rede! Vinte anos, uma figura delicada, esbelta, franzina, uma dessas figuras vaporosas que parecem desfazer-se ao primeiro raio do sol. Azevedo não foi senhor de si: apaixonou-se; daí a um mês casou-se, e daí a oito dias partiu para Petrópolis.

Que casa encerraria aquele casal tão belo, tão amante e tão feliz? Não podia ser mais própria a casa escolhida; era um edifício leve, delgado, elegante, mais de recreio que de morada; um verdadeiro ninho para aquelas duas pombas fugitivas.

A nossa história começa exatamente três meses depois da ida para Petrópolis. Azevedo e a mulher amavam-se ainda como no primeiro dia. O amor tomava então uma força maior e nova; é que... devo dizê-lo, ó casais de três meses? É que apontava no horizonte o primeiro filho. Também a terra e o céu se alegram quando aponta no horizonte o primeiro raio do sol. A figura não vem aqui por simples ornato de estilo; é uma dedução lógica: a mulher de Azevedo chamava-se Adelaide.

Era, pois, em Petrópolis, numa tarde de dezembro de 186... Azevedo e Adelaide estavam no jardim que ficava em frente da casa onde ocultavam a sua felicidade. Azevedo lia alto; Adelaide ouvia-o ler, mas como se ouve um eco do coração, tanto a voz do marido e as palavras da obra correspondiam ao sentimento interior da moça.

No fim de algum tempo Azevedo deteve-se e perguntou:

- Queres que paremos aqui?

- Como quiseres - disse Adelaide.

- É melhor - disse Azevedo fechando o livro -. As cousas boas não se gozam de uma assentada. Guardemos um pouco para a noite. Demais, era já tempo que eu passasse do idílio escrito para o idílio vivo. Deixa-me olhar para ti.

Adelaide olhou para ele e disse:

- Parece que começamos a lua-de-mel.

- Parece e é - acrescentou Azevedo -; e se o casamento não fosse eternamente isto, o que poderia ser? A ligação de duas existências para meditar discretamente na melhor maneira de comer o maxixe e o repolho? Ora, pelo amor de Deus! Eu penso que o casamento deve ser um namoro eterno. Não pensas como eu?

- Sinto - disse Adelaide.

- Sentes, é quanto basta.

- Mas que as mulheres sintam é natural; os homens...

- Os homens, são homens.

- O que nas mulheres é sentimento, nos homens é pieguice; desde pequena me dizem isto.

- Enganam-te desde pequena - disse Azevedo rindo.

- Antes isso!

- É a verdade. E desconfia sempre dos que mais falam, sejam homens ou mulheres. Tens perto um exemplo. A Emília fala muito da sua isenção. Quantas vezes se casou? Até aqui duas, e está nos vinte e cinco anos. Era melhor calar-se mais e casar-se menos.

- Mas nela é brincadeira - disse Adelaide.

- Pois não. O que não é brincadeira é que os três meses do nosso casamento parecem-me três minutos...

- Três meses! - exclamou Adelaide.

- Como foge o tempo! - disse Azevedo.

- Dirás sempre o mesmo? - perguntou Adelaide com um gesto de incredulidade.

Azevedo abraçou-a e perguntou:

- Duvidas?

- Receio. É tão bom ser feliz!

- Sê-lo-ás sempre e do mesmo modo. De outro não entendo eu.

Neste momento ouviram os dous uma voz que partia da porta do jardim.

- O que é que não entendes? - dizia essa voz.

Olharam.

À porta do jardim estava um homem alto, bem parecido, trajando com elegância, luvas cor de palha, chicotinho na mão.

Azevedo pareceu ao princípio não conhecê-lo. Adelaide olhava para um e para outro sem compreender nada. Tudo isto, porém, não passou de um minuto; no fim dele Azevedo exclamou:

- É o Tito! Entra, Tito!

Tito entrou galhardamente no jardim; abraçou Azevedo e fez um cumprimento gracioso a Adelaide.

- É minha mulher - disse Azevedo apresentando Adelaide ao recém-chegado.

- Já o suspeitava - respondeu Tito -; e aproveito a ocasião para dar-te os meus parabéns.

- Recebeste a nossa carta de participação?

- Em Valparaíso.

- Anda sentar-te e conta-me a tua viagem.

- Isso é longo - disse Tito sentando-se -. O que te posso contar é que desembarquei ontem no Rio. Tratei de indagar a tua morada. Disseram-me que estavas temporariamente em Petrópolis. Descansei, mas logo hoje tomei a barca da Prainha e aqui estou. Eu já suspeitava que com o teu espírito de poeta irias esconder tua felicidade em algum recanto do mundo. Com efeito, isto é verdadeiramente uma nesga do paraíso. Jardim, caramanchões, uma casa leve e elegante, um livro. Bravo! Marília de Dirceu... É completo! Tityre, tu patulæ. Caio no meio de um idílio. Pastorinha, onde está o cajado?

Adelaide ri às gargalhadas.

Tito continua:

- Ri mesmo como uma pastorinha alegre. E tu, Teócrito, que fazes? Deixas correr os dias como as águas do Paraíba? Feliz criatura!

- Sempre o mesmo! - disse Azevedo.

- O mesmo doudo? Acha que ele tem razão, minha senhora?

- Acho, se o não ofendo...

- Qual ofender! Se eu até me honro com isso; sou um doudo inofensivo, isso é verdade. Mas é que realmente são felizes como poucos. Há quantos meses se casaram?

- Três meses faz domingo - respondeu Adelaide.

- Disse há pouco que me pareciam três minutos - acrescentou Azevedo.

Tito olhou para ambos e disse sorrindo:

- Três meses, três minutos! Eis toda a verdade da vida. Se os pusessem sobre uma grelha, como São Lourenço, cinco minutos eram cinco meses. E ainda se fala em tempo! Há lá tempo! O tempo está nas nossas impressões. Há meses para os infelizes e minutos para os venturosos!

- Mas que ventura! - exclama Azevedo.

- Completa, não? Imagino! Marido de um serafim, nas graças e no coração, não reparei que estava aqui... mas não precisa corar!... Disto me há de ouvir vinte vezes por dia; o que penso, digo. Como não te hão de invejar os nossos amigos!

- Isso não sei.

- Pudera! Encafuado neste desvão do mundo, de nada podes saber. E fazes bem. Isto de ser feliz à vista de todos é repartir a felicidade. Ora, para respeitar o princípio devo ir-me já embora...

Dizendo isto, Tito levantou-se.

- Deixa-te disso: fica conosco.

- Os verdadeiros amigos também são a felicidade - disse Adelaide.

- Ah!

- É até bom que aprendas em nossa escola a ciência do casamento - acrescentou Azevedo.

- Para quê? - perguntou Tito meneando o chicotinho.

- Para te casares.

- Hum!... - fez Tito.

- Não pretende? - perguntou Adelaide.

- Estás ainda o mesmo que em outro tempo?

- O mesmíssimo - respondeu Tito.

Adelaide fez um gesto de curiosidade e perguntou:

- Tem horror ao casamento?

- Não tenho vocação - respondeu Tito -. É puramente um caso de vocação. Quem a não tiver não se meta nisso, que é perder o tempo e o sossego. Desde muito tempo estou convencido disto.

- Ainda te não bateu a hora.

- Nem bate - disse Tito.

- Mas, se bem me lembro - disse Azevedo oferecendo-lhe um charuto -, houve um dia em que fugiste às teorias do costume: andavas então apaixonado...

- Apaixonado, é engano. Houve um dia em que a Providência trouxe uma confirmação aos meus instintos solitários. Meti-me a pretender uma senhora...

- É verdade: foi um caso engraçado.

- Como foi o caso? - perguntou Adelaide.

- O Tito viu em um baile uma rapariga. No dia seguinte apresenta-se em casa dela, e, sem mais nem menos, pede-lhe a mão. Ela responde... que te respondeu?

- Respondeu por escrito que eu era um tolo e me deixasse daquilo. Não disse positivamente tolo, mas vinha a dar na mesma. É preciso confessar que semelhante resposta não era própria. Voltei atrás e nunca mais amei.

- Mas amou naquela ocasião? - perguntou Adelaide.

- Não sei se era amor - respondeu Tito -, era uma cousa... Mas note, isto foi há uns bons cinco anos. Daí para cá ninguém mais me fez bater o coração.

- Pior para ti.

- Eu sei! - disse Tito levantando os ombros -. Se não tenho os gozos íntimos do amor, não tenho nem os dissabores, nem os desenganos. É já uma grande fortuna!

- No verdadeiro amor não há nada disso - disse sentenciosamente a mulher de Azevedo.

- Não há? Deixemos o assunto; eu podia fazer um discurso a propósito, mas prefiro...

- Ficar conosco - Azevedo atalhou-o -. Está sabido.

- Não tenho essa intenção.

- Mas tenho eu. Hás de ficar.

- Mas se eu já mandei o criado tomar alojamento no hotel de Bragança...

- Pois manda contraordem. Fica comigo.

- Insisto em não perturbar a tua paz.

- Deixa-te disso.

- Fique! - disse Adelaide.

- Ficarei.

- E amanhã - continuou Adelaide -, depois de ter descansado, há de nos dizer qual é o segredo da isenção de que tanto se ufana.

- Não há segredo - disse Tito -. O que há é isto: entre um amor que se oferece e... uma partida de voltarete, não hesito, atiro-me ao voltarete. A propósito, Ernesto, sabes que encontrei no Chile um famoso parceiro de voltarete? Fez a casca mais temerária que tenho visto... sabe o que é uma casca, minha senhora?

- Não - respondeu Adelaide.

- Pois eu lhe explico.

Azevedo olhou para fora e disse:

- Aí chega a D. Emília.

Com efeito à porta do jardim parava uma senhora dando o braço a um velho de cinquenta anos.

D. Emília era uma moça a que se pode chamar uma bela mulher; era alta na estatura e altiva de caráter. O amor que pudesse infundir seria por imposição. De suas maneiras e das suas graças inspirava um não sei quê de rainha que dava vontade de levá-la a um trono.

Trajava com elegância e simplicidade. Ela tinha essa elegância natural que é outra elegância diversa da elegância dos enfeites, a propósito da qual já tive ocasião de escrever esta máxima: "Que há pessoas elegantes, e pessoas enfeitadas."

Olhos negros e rasgados, cheios de luz e de grandeza, cabelos castanhos e abundantes, nariz reto como o de Safo, boca vermelha e breve, faces de cetim, colo e braços como os das estátuas, tais eram os traços da beleza de Emília.

Quanto ao velho que lhe dava o braço, era, como disse, um homem de cinquenta anos. Era o que se chama, em português chão e rude, um velho gaiteiro. Pintado, espartilhado, via-se nele uma como que ruína do passado reconstruída por mãos modernas, de modo a ter esse aspecto bastardo que não é nem a austeridade da velhice, nem a frescura da mocidade. Não havia dúvida de que o velho devia ter sido um belo rapaz em seus tempos; mas presentemente, se algumas conquistas tivesse feito, só podia contentar-se com a lembrança delas.

Quando Emília entrou no jardim todos se achavam de pé. A recém-chegada apertou a mão a Azevedo e foi beijar Adelaide. Ia sentar-se na cadeira que Azevedo lhe oferecera quando reparou em Tito que se achava a um lado.

Os dous cumprimentaram-se, mas com ar diferente. Tito parecia tranquilo e friamente polido; mas Emília, depois de cumprimentá-lo, conservou os olhos fitos nele, como que avocando uma memória do passado.

Feitas as apresentações necessárias, e a Diogo Franco (é o nome do velho braceiro), todos tomaram assentos.

A primeira que falou foi Emília:

- Ainda hoje não vinha se não fosse a obsequiosidade do Sr. Diogo.

Adelaide olhou para o velho e disse:

- O Sr. Diogo é uma maravilha.

Diogo empertigou-se e murmurou com certo tom de modéstia:

- Nem tanto, nem tanto.

- É, é - disse Emília -. Não é talvez uma, porém duas maravilhas. Ah! Sabes que me vai fazer um presente?

- Um presente! - exclamou Azevedo.

- É verdade - continuou Emília -, um presente que mandou vir da Europa e lá dos confins; recordações das suas viagens de adolescente...

Diogo estava radiante.

- É uma insignificância - disse ele olhando ternamente para Emília.

- Mas o que é? - perguntou Adelaide.

- É... adivinhem? É um urso branco!

- Um urso branco!

- Deveras?

- Está para chegar, mas só ontem é que me deu notícia dele. Que amável lembrança!

- Um urso! - exclamou ainda Azevedo.

Tito inclinou-se ao ouvido do amigo, e disse em voz baixa:

- Com ele fazem dous.

Diogo, jubiloso pelo efeito que causava a notícia do presente, mas iludido no caráter desse efeito, disse:

- Não vale a pena. É um urso que eu mandei vir; é verdade que eu pedi dos mais belos. Não sabem o que é um urso branco. Imaginem que é todo branco.

- Ah! - disse Tito.

- É um animal admirável! - tornou Diogo.

- Acho que sim - disse Tito -. Ora imagina tu o que não será um urso branco que é todo branco. Que faz este sujeito? - perguntou ele em seguida a Azevedo.

- Namora a Emília; tem cinquenta contos.

- E ela?

- Não faz caso dele.

- Diz ela?

- E é verdade.

Enquanto os dous trocavam estas palavras, Diogo brincava com os sinetes do relógio e as duas senhoras conversavam. Depois das últimas palavras entre Azevedo e Tito, Emília voltou-se para o marido de Adelaide e perguntou:

- Dá-se isto, Sr. Azevedo? Então faz-se anos nesta casa e não me convidam?

- Mas a chuva? - disse Adelaide.

- Ingrata! Bem sabes que não há chuva em casos tais.

- Demais - acrescentou Azevedo -, fez-se a festa tão à capucha.

- Fosse como fosse, eu sou de casa.

- É que a lua de mel continua apesar de cinco meses - disse Tito.

- Aí vens tu com os teus epigramas - disse Azevedo.

- Ah! Isso é mau, Sr. Tito!

- Tito? - perguntou Emília a Adelaide em voz baixa.

- Sim.

- D. Emília não sabe ainda quem é o nosso amigo Tito - disse Azevedo -. Eu até tenho medo de dizê-lo.

- Então é muito feio o que tem para dizer?

- Talvez - disse Tito com indiferença.

- Muito feio! - exclamou Adelaide.

- O que é então? - perguntou Emília.

- É um homem incapaz de amar - continuou Adelaide -. Não pode haver maior indiferença para o amor... Em resumo, prefere a um amor... o quê? Um voltarete.

- Disse-te isso? - perguntou Emília.

- E repito - disse Tito -. Mas note bem, não por elas, é por mim. Acredito que todas as mulheres sejam credoras da minha adoração; mas eu é que sou feito de modo que nada mais lhes posso conceder do que uma estima desinteressada.

Emília olhou para o moço e disse:

- Se não é vaidade, é doença.

- Há de me perdoar, mas eu creio que não é doença, nem vaidade. É natureza: uns aborrecem as laranjas, outros aborrecem os amores; agora se o aborrecimento vem por causa das cascas, não sei; o que é certo é que é assim.

- É ferino! - disse Emília olhando para Adelaide.

- Ferino, eu? - disse Tito levantando-se -. Sou uma seda, uma dama, um milagre de brandura... Dói-me, deveras, que eu não possa estar na linha dos outros homens, e não seja, como todos, propenso a receber as impressões amorosas, mas que quer? A culpa não é minha.

- Anda lá - disse Azevedo -, o tempo te há de mudar.

- Mas quando? Tenho vinte e nove anos feitos.

- Já vinte e nove? - perguntou Emília.

- Completei-os pela Páscoa.

- Não parece.

- São os seus bons olhos.

A conversa continuou por este modo, até que se anunciou o jantar. Emília e Diogo tinham jantado, ficaram apenas para fazer companhia ao casal Azevedo e a Tito, que declarou desde o princípio estar caindo de fome.

A conversa durante o jantar versou sobre cousas indiferentes.

Quando se servia o café apareceu à porta um criado do hotel em que morava Diogo; trazia uma carta para este, com indicação no sobrescrito de que era urgente. Diogo recebeu a carta, leu-a e pareceu mudar de cor. Todavia continuou a tomar parte na conversa geral. Aquela circunstância, porém, deu lugar a que Adelaide perguntasse a Emília:

- Quando te deixará este eterno namorado?

- Eu sei cá! - respondeu Emília -. Mas afinal de contas, não é mau homem! Tem aquela mania de me dizer no fim de todas as semanas que nutre por mim uma ardente paixão.

- Enfim, se não passa de declaração semanal...

- Não passa. Tem a vantagem de ser um braceiro infalível para a rua e um realejo menos mau dentro de casa. Já me contou umas cinquenta vezes as batalhas amorosas em que entrou. Todo o seu desejo é acompanhar-me a uma viagem à roda do globo. Quando me fala nisto, se é à noite, e é quase sempre à noite, mando vir o chá, excelente meio de aplacar-lhe os ardores amorosos. Gosta do chá que se pela. Gosta tanto como de mim! Mas aquela do urso branco? E se realmente mandou vir um urso?

- Aceita.

- Pois eu hei de sustentar um urso? Não me faltava mais nada!

Adelaide sorriu-se e disse:

- Quer me parecer que acabas por te apaixonar...

- Por quem? Pelo urso?

- Não, pelo Diogo.

Neste momento achavam-se as duas perto de uma janela. Tito conversava no sofá com Azevedo. Diogo refletia profundamente, estendido numa poltrona.

Emília tinha os olhos em Tito. Depois de um silêncio, disse ela para Adelaide:

- Que achas ao tal amigo do teu marido? Parece um presumido. Nunca se apaixonou! É crível?

- Talvez seja verdade.

- Não acredito. Pareces criança! Diz aquilo dos dentes para fora...

- É verdade que não tenho maior conhecimento dele...

- Quanto a mim, pareceu-me não ser estranha aquela cara... mas não me lembro!

- Parece ser sincero... mas dizer aquilo é já atrevimento.

- Está claro...

- De que te ris?

- Lembra-me um do mesmo gênero que este - disse Emília -. Foi já há tempos. Andava sempre a gabar-se da sua isenção. Dizia que todas as mulheres eram para ele vasos da China: admirava-as e nada mais. Coitado! Caiu em menos de um mês. Adelaide, vi-o beijar-me a ponta dos sapatos... depois do quê, desprezei-o.

- Que fizeste?

- Ah! Não sei o que fiz. Santa Astúcia foi quem operou o milagre. Vinguei o sexo e abati um orgulhoso.

- Bem feito.

- Não era menos do que este. Mas falemos de cousas sérias... Recebi as folhas francesas de modas...

- Que há de novo?

- Muita cousa. Amanhã tas mandarei. Repara em um novo corte de mangas. É lindíssimo. Já mandei encomendas para a Corte. Em artigos de passeios há fartura e do melhor.

- Para mim quase que é inútil mandar.

- Por quê?

- Quase nunca saio de casa.

- Nem ao menos irás jantar comigo no dia de ano-bom!

- Oh! Com toda a certeza!

- Pois vai... Ah! Irá o homem? O Sr. Tito?

- Se estiver cá... e quiseres...

- Pois que vá, não faz mal... Saberei contê-lo... Creio que não será sempre tão... incivil. Nem sei como podes ficar com esse sangue-frio! A mim faz-me mal aos nervos!

- É-me indiferente.

- Mas a injúria ao sexo... não te indigna?

- Pouco.

- És feliz.

- Que queres que eu faça a um homem que diz aquilo? Se não fosse casada era possível que me indignasse mais. Se fosse livre era provável que lhe fizesse o que fizeste ao outro. Mas eu não posso cuidar dessas cousas...

- Nem ouvindo a preferência do voltarete? Pôr-nos abaixo da dama de copas! E o ar com que ele diz aquilo! Que calma, que indiferença!

- É mau! É mau!

- Merecia castigo...

- Merecia. Queres tu castigá-lo?

Emília fez um gesto de desdém e disse:

- Não vale a pena.

- Mas tu castigaste o outro.

- Sim... mas não vale a pena.

- Dissimulada!

- Por que dizes isso?

- Porque já te vejo meio tentada a uma nova vingança...

- Eu? Ora qual!

- Que tem? Não é crime...

- Não é, decerto; mas... veremos.

- Ah! Serás capaz?

- Capaz? - disse Emília com um gesto de orgulho ofendido.

- Beijar-te-á ele a ponta do sapato?

Emília ficou silenciosa por alguns momentos; depois, apontando com o leque para a botina que lhe calçava o pé, disse:

- E hão de ser estes.

Emília e Adelaide se dirigiram para o lado em que se achavam os homens. Tito, que parecia conversar intimamente com Azevedo, interrompeu a conversa para dar atenção às senhoras. Diogo continuava mergulhado na sua meditação.

- Então o que é isso, Sr. Diogo? - perguntou Tito -. Está meditando?

- Ah! Perdão, estava distraído!

- Coitado! - disse Tito baixo a Azevedo.

Depois, voltando-se para as senhoras:

- Não as incomoda o charuto?

- Não senhor - disse Emília.

- Então, posso continuar a fumar?

- Pode - disse Adelaide.

- É um mau vício, mas é o meu único vício. Quando fumo parece que aspiro a eternidade. Enlevo-me todo e mudo de ser. Divina invenção!

- Dizem que é excelente para os desgostos amorosos - disse Emília com intenção.

- Isso não sei. Mas não é só isto. Depois da invenção do fumo não há solidão possível. É a melhor companhia deste mundo. Demais, o charuto é um verdadeiro Memento homo: convertendo-se pouco a pouco em cinzas, vai lembrando ao homem o fim real e infalível de todas as cousas: é o aviso filosófico, é a sentença fúnebre que nos acompanha em toda a parte. Já é um grande progresso... Mas estou eu a aborrecer com uma dissertação tão pesada. Hão de desculpar... que foi descuido. Ora, a falar a verdade, eu já vou desconfiando; Vossa Excelência olha com olhos tão singulares...

Emília, a quem era dirigida a palavra, respondeu:

- Não sei se são singulares, mas são os meus.

- Penso que não são os do costume. Está talvez Vossa Excelência a dizer consigo que eu sou um esquisito, um singular, um...

- Um vaidoso, é verdade.

- Sétimo mandamento: não levantar falsos testemunhos.

- Falsos, diz o mandamento.

- Não me dirá em que sou eu vaidoso?

- Ah! A isso não respondo eu.

- Por que não quer?

- Porque... não sei. É uma cousa que se sente, mas que se não pode descobrir. Respira-lhe a vaidade em tudo: no olhar, na palavra, no gesto... mas não se atina com a verdadeira origem de tal doença.

- É pena. Eu tinha grande prazer em ouvir da sua boca o diagnóstico da minha doença. Em compensação pode ouvir da minha o diagnóstico da sua... A sua doença é... Digo?

- Pode dizer.

- É um despeitozinho.

- Deveras?

- Vamos ver isso - disse Azevedo rindo-se.

Tito continuou:

- Despeito pelo que eu disse há pouco.

- Puro engano! - disse Emília rindo-se.

- É com toda a certeza. Mas é tudo gratuito. Eu não tenho culpa de cousa alguma. A natureza é que me fez assim.

- Só a natureza?

- E um tanto de estudo. Ora vou expor-lhe as minhas razões. Veja se posso amar ou pretender: primeiro, não sou bonito...

- Oh!... - disse Emília.

- Agradeço o protesto, mas continuo na mesma opinião: não sou bonito, não sou...

- Oh!... - disse Adelaide.

- Segundo: não sou curioso, e o amor, se o reduzirmos às suas verdadeiras proporções, não passa de uma curiosidade; terceiro: não sou paciente, e nas conquistas amorosas a paciência é a principal virtude; quarto, finalmente: não sou idiota, porque, se com todos estes defeitos pretendesse amar, mostraria a maior falta de razão. Aqui está o que eu sou por natural e por indústria.

- Emília, parece que é sincero.

- Acreditas?

- Sincero como a verdade - disse Tito.

- Em último caso, seja ou não seja sincero, que tenho eu com isso?

- Eu creio que nada - disse Tito.

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