Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

II

A hora aprazada era incômoda para Luís Garcia, cujos hábitos de trabalho mal sofriam interrupção. Não obstante, foi à rua dos Inválidos.

Valéria Gomes era viúva de um desembargador honorário, falecido cerca de dous anos antes, a quem o pai de Luís Garcia devera alguns obséquios e a quem este prestara outros. Não havia entre ela e Luís Garcia relações assíduas ou estreitas; mas a viúva e seu finado marido sempre o tiveram em boa conta e o tratavam com muito carinho. Defunto o desembargador, Valéria recorrera duas ou três vezes aos serviços de Luís Garcia; contudo, era a primeira vez que o fazia com tamanha solenidade.

Valéria recebeu-o afetuosamente, estendendo-lhe a mão, ainda fresca, apesar dos anos, que subiam de quarenta e oito. Era alta e robusta. A cabeça, forte e levantada, parecia protestar pela altivez da atitude contra a moleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, a sobrancelha basta, o cabelo abundante, listrado de alguns fios de prata. Posto não andasse alegre nos últimos tempos, estava naquele dia singularmente preocupada. Logo que entraram na sala, deixou-se cair numa poltrona; caiu e ficou silenciosa alguns instantes. Luís Garcia sentou-se tranquilamente na cadeira que ela lhe designou.

- Sr. Luís Garcia - disse a viúva -; esta guerra do Paraguai é longa e ninguém sabe quando acabará. Vieram notícias hoje?

- Não me consta.

- As de ontem não me animaram nada - continuou a viúva depois de um instante -. Não creio na paz que o López veio propor. Tenho medo que isto acabe mal.

- Pode ser, mas não dependendo de nós...

- Por que não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que vá alistar-se como voluntário; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará major ou coronel. Ele, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Contudo, resiste...

- Que razão dá ele?

- Diz que não quer separar-se de mim.

- A razão é boa.

- Sim, porque também a mim custaria a separação. Mas não se trata do que eu ou ele podemos sentir: trata-se de cousa mais grave - da pátria, que está acima de nós.

Valéria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luís Garcia pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo público. O interesse que a viúva mostrava agora em relação à sorte da campanha era totalmente novo para ele. Excluído o motivo público, algum haveria que ela não quisera ou não podia revelar. Justificaria ele semelhante resolução? Não se atreveu a formular a suspeita e a dúvida; limitou-se a dissuadi-la, dizendo que um homem de mais ou de menos não pesaria nada na balança do destino, e desde que ao filho repugnava a separação era mais prudente não insistir. Valéria redarguia a todas essas reflexões com algumas ideias gerais acerca da necessidade de dar fortes exemplos às mães. Quando foi preciso variar de resposta, declarou que entrava no projeto um pouco de interesse pessoal.

- Jorge está formado - disse ela -; mas não tem queda para a profissão de advogado nem para a de juiz. Goza por enquanto a vida; mas os dias passam, e a ociosidade faz-se natureza com o tempo. Eu quisera dar-lhe um nome ilustre. Se for para a guerra, poderá voltar coronel, tomar gosto às armas, segui-las e honrar assim o nome de seu pai.

- Bem; mas vejamos outra consideração. Se ele morrer?

Valéria empalideceu e esteve alguns minutos calada, enquanto Luís Garcia olhava para ela, a ver se lhe adivinhava o trabalho interior da reflexão, esquecendo que a ideia de um desastre possível devia ter-lhe acudido, desde muito, e, se não recuara diante dela, é porque a resolução era inabalável.

- Pensei na morte - disse Valéria daí a pouco - e, na verdade, antes a obscuridade de meu filho que um desastre... mas repeli essa ideia. A consideração superior de que lhe falei deve vencer qualquer outra.

Em seguida, como para impedir que ele insistisse nas reflexões apresentadas antes, disse-lhe claramente que, diante da recusa de Jorge, contava com o influxo de seus conselhos.

- O senhor é nosso amigo - explicou ela -; seu pai também foi nosso amigo. Sabe que um e outro sempre nos mereceram muita consideração. Em todo caso, não quisera recorrer a outra pessoa.

Luís Garcia não respondeu logo; não tinha ânimo de aceitar a incumbência e não queria abertamente recusar; procurava um meio de esquivar-se à resposta. Valéria insistiu por modo que era impossível calar mais tempo.

- O que me pede é muito grave - disse ele -; se o Dr. Jorge der algum peso a meus conselhos e seguir para a guerra, assumo uma porção de responsabilidade, que não só me há de gravar a consciência, como influirá para alterar nossas relações e diminuir talvez a amizade benévola que sempre achei nesta casa. O obséquio que hoje exige de mim, quem sabe se mo não lançará em rosto um dia como ato de leviandade?

- Nunca.

- Nesse dia - observou Luís Garcia sorrindo levemente - há de ser tão sincera como hoje.

- Oh! O senhor está com ideias negras! Eu não creio na morte; creio só na vida e na glória. A guerra começou há pouco e há já tanto herói! Meu filho será um deles.

-Não creio em pressentimentos.

- Recusa?

- Não me atrevo a aceitar.

Valéria ficou abatida com a resposta. Após alguns minutos de silêncio, ergueu-se e foi buscar o lenço que deixara sobre um móvel, ao entrar na sala. Enxugou o rosto, e ficou a olhar para o chão, com um dos braços caídos, em atitude meditativa. Luís Garcia começou a refletir no modo de a dissuadir eficazmente. Seu cepticismo não o fazia duro aos males alheios, e Valéria parecia padecer naquele instante, qualquer que fosse a sinceridade de suas declarações. Ele quisera achar um meio de conciliar os desejos da viúva com a sua própria neutralidade - o que era puramente difícil.

- Seu filho não é criança - disse ele -; está com vinte e quatro anos; pode decidir por si, e naturalmente não me dirá outra cousa... Demais, é duvidoso que se deixe levar por minhas sugestões, depois de resistir aos desejos de sua mãe.

- Ele respeita-o muito.

Respeitar não era o verbo pertinente; atender fora mais cabido, porque exprimia a verdadeira natureza das relações entre um e outro. Mas a viúva lançava mão de todos os recursos para obter de Luís Garcia que a ajudasse em persuadir o filho. Como ele lhe dissesse ainda uma vez que não podia aceitar a incumbência, viu-a morder o lábio e fazer um gesto de despeito. Luís Garcia adotou então um meio-termo:

- Prometo-lhe uma cousa - disse ele -; irei sondá-lo, discutir com ele os prós e os contras do seu projeto, e se o achar mais inclinado...

Valéria abanou a cabeça.

- Não faça isso; desde já lhe digo que será tempo perdido. Jorge há de repetir-lhe as mesmas razões que me deu, e o senhor as aceitará naturalmente. Se alguma cousa lhe mereço, se não morreu em seu coração a amizade que o ligou à nossa família, peço-lhe que me ajude francamente neste empenho, com a autoridade de sua pessoa. Entre nisto, como eu mesma, disposto a vencê-lo e convencê-lo. Faz me este obséquio?

Luís Garcia refletiu um instante.

- Faço - disse ele frouxamente.

Valéria mostrou-se reanimada com a resposta; disse-lhe que fosse lá jantar naquele mesmo dia ou no outro. Ele recusou duas vezes mas não pôde resistir às instâncias da viúva, e prometeu ir no dia seguinte. A promessa era um meio, não só de pôr termo à insistência da viúva, mas também de encaminhar-se a saber qual era a mola secreta da ação daquela senhora. A honra nacional era certamente o colorido nobre e augusto de algum pensamento reservado e menos coletivo. Luís Garcia abriu velas à reflexão e conjecturou muito. Afinal não duvidava do empenho patriótico de Valéria, mas perguntava a si mesmo se ela quereria colher da ação que ia praticar alguma vantagem especialmente sua.

"O coração humano é a região do inesperado", dizia consigo o céptico subindo as escadas da repartição.

Na repartição soube da chegada de tristes notícias do Paraguai . Os aliados tinham atacado Curupaiti e recuado com grandes perdas: o inimigo parecia mais forte do que nunca. Supunha-se até que as propostas de paz não tinham sido mais do que um engodo para fortalecer a defesa. Assim, a sorte das armas vinha reforçar os argumentos de Valéria. Luís Garcia adivinhou tudo o que ela lhe diria no dia seguinte.

No dia seguinte foi ele jantar à rua dos Inválidos. Achou a viúva menos consternada do que deveria estar, à vista das notícias da véspera, se porventura os sucessos da guerra a preocupassem tanto como dizia. Pareceu-lhe até mais serena. Ela ia e vinha com um ar satisfeito e resoluto. Tinha um sorriso para cada cousa que ouvia, um carinho, uma familiaridade, uma intenção de agradar e seduzir, que Luís Garcia estudava com os olhos agudos da suspeita.

Jorge, pelo contrário, mostrava-se retraído e mudo. Luís Garcia, à mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expressão dos olhos tristes e a ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nele o despeito e a irritação. Na verdade, era duro enviar para a guerra um dos mais belos ornamentos da paz. Naqueles olhos não morava habitualmente a tristeza; eles eram, de costume, brandos e pacíficos. Um bigode negro e basto, obra comum da natureza e do cabeleireiro, cobria-lhe o lábio e dava ao rosto a expressão viril que este não tinha. A estatura esbelta e nobre era a única feição que absolutamente podia ser militar. Elegante, ocupava Jorge um dos primeiros lugares entre os dandies da rua do Ouvidor; ali podia ter nascido, ali poderia talvez morrer.

Valéria acertava quando dizia não achar no filho nenhum amor à profissão de advogado. Jorge sabia muita cousa do que aprendera; tinha inteligência pronta, rápida compreensão e memória vivíssima. Não era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, era uma inteligência teórica; para ele, o praxista representava o bárbaro. Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver à farta, empregava uma partícula do tempo em advogar o menos que podia - apenas o bastante para ter o nome no portal do escritório e no Almanaque de Laemmert. Nenhuma experiência contrastava nele os ímpetos da juventude e os arroubos da imaginação. A imaginação era o seu lado fraco, porque não a tinha criadora e límpida, mas vaga, tumultuosa e estéril. Era generoso e bom, mas padecia um pouco de fatuidade, que lhe diminuía a bondade nativa. Havia ali a massa de um homem futuro, à espera que os anos, cuja ação é lenta, oportuna e inevitável, lhe dessem fixidez ao caráter e virilidade à razão.

Não foi alegre nem animado o jantar. Falaram a princípio de cousas indiferentes; depois Valéria fez recair a conversação nas últimas notícias do Paraguai. Luís Garcia declarou que lhe não pareciam tão más, como diziam as gazetas, sem contudo negar que se tratava de um sério revés.

- É guerra para seis meses - concluiu ele.

- Só?

Esta pergunta foi a primeira palavra de Jorge, que até então não fizera mais do que ouvir e comer. Valéria tomou a outra ponta do diálogo, e confirmou a opinião de Luís Garcia. Mas o filho continuou a não intervir. Acabado o jantar, Valéria ergueu-se; Luís Garcia fez o mesmo; a viúva, pousando-lhe a mão no ombro, disse em tom familiar e intencional:

- Sem cerimônia; eu volto já.

Uma vez sós os dous homens, Luís Garcia achou de bom aviso ir de ponto em branco ao assunto que ali os reunira.

- Não tem vontade de ir também ao Paraguai? - perguntou ele logo que Valéria desapareceu no corredor.

- Nenhuma. Contudo, acabarei por aí.

- Sim?

- Mamãe não deseja outra cousa, e o senhor mesmo, sei que é dessa opinião.

Uma resposta negativa roçou os lábios de Luís Garcia; a tempo a reprimiu, confirmando com o silêncio a pia fraude de Valéria. Tinha nas mãos o meio de inutilizar o efeito do equívoco; era mostrar-se indiferente. Jorge distraía-se em equilibrar um palito na borda de um cálix; o interlocutor, depois de olhar para ele, rompeu enfim a larga pausa:

- Mas por que motivo cede hoje, depois de recusar tanto tempo?

Jorge ergueu os olhos, fez-lhe um sinal e foram para o terraço.

- O senhor é amigo velho de nossa casa - disse ele -; posso confiar-lhe tudo. Mamãe quer mandar-me para a guerra, porque não pode impedir os movimentos do meu coração.

- Algum namoro - concluiu friamente Luís Garcia.

- Uma paixão.

- Está certo do que diz?

- Estou.

- Não creio - tornou Luís Garcia depois de um instante.

- Por que não? Ela conta com a distância e o tempo para matar um amor que supõe não haver criado raízes profundas.

Luís Garcia dera alguns passos, acompanhado pelo filho de Valéria; parou um instante, depois continuaram ambos a passear de um para outro lado. O primeiro refletia na explicação, que lhe pareceu verossímil, se o amor do rapaz era indigno de seu nome. Essa pergunta, não se animou a fazê-la; mas procurou uma vereda tortuosa para ir dar com ela.

- Uma viagem à Europa - observou Luís Garcia depois de curto silêncio - produziria o mesmo resultado, sem outro risco mais que...

- Recusei a viagem, foi então que ela pensou na guerra.

- Mas se ela quisesse ir à Europa, o senhor recusaria acompanhá-la?

- Não; mas mamãe detesta o mar; não viajaria nunca. É possível que, se eu resistisse até à última, em relação à guerra, ela vencesse a repugnância ao mar e iríamos os dous...

- E por que não resistiu?

- Primeiramente, porque estava cansado de recusar. Há mês e meio que dura esta luta entre nós. Hoje, à vista das notícias do Sul, falou-me com tal instância que cedi de uma vez. A segunda razão foi um sentimento mau - mas justificável. Escolho a guerra, a fim de que se alguma cousa me acontecer ela sinta o remorso de me haver perdido.

Luís Garcia parou e encarou silenciosamente o mancebo.

- Sei o que quer dizer esse olhar - continuou este -; acha-me feroz, e eu sou apenas natural. O sentimento mau teve só um minuto de duração. Passou. Ficou-me uma sombra de remorso. Não acuso mamãe; sei as lágrimas que lhe vai custar a separação...

- Ainda é tempo de recuar.

- O que está feito, está feito - disse Jorge erguendo os ombros.

- Sabe que mais? Acho mau gosto dar a este negócio um desenlace épico. Que tem que fazer nisto a Guerra do Paraguai? Vou sugerir-lhe um meio de arranjar as cousas. Ceda metade somente; vá à Europa sozinho, volte no fim de dous ou três anos...

Jorge sorriu desdenhosamente.

- Seu conselho mostra a diferença de nossas idades - disse ele. Se eu fosse para a Europa, que sacrifício faria à pessoa a quem amo? Pelo contrário, a sacrificada era ela. Eu ia divertir-me, passear, ver cousas novas, talvez achar novos amores. Indo à guerra, é diferente; sacrifico o repouso e arrisco a vida; é alguma cousa. Separados, embora, não me negará sua estima...

- Sua estima? - disse Luís Garcia admirado.

Não continuou; mas Jorge compreendeu, por aquela só palavra, a que classe de mulheres ele supunha pertencer a eleita de seu coração. Fez um gesto; não se animou a dizer nada. Arrependeu-se talvez de haver dito tanto. Sem ousar recomendar-lhe silêncio, começou a insinuá-lo delicadamente; tática escusada, porque Luís Garcia não era homem de revelar o que se lhe confiava; e perigosa, porque fazia crescer as proporções do mistério. Luís Garcia sorriu interiormente ao sentir a arte cautelosa de Jorge; e quando ela lhe pareceu enfadonha:

- Descanse - disse ele -; não receie que eu vá publicar seus amores. Repito-lhe o conselho: não se atire de cabeça para baixo numa aventura sem fundo. Ir para a guerra é muito nobre, mas há de ser levado de outros sentimentos. Um desacordo por motivo de namoro, não é o Porto Alegre nem o Polidoro, é um padre que lhe deve pôr termo.

Jorge sorriu com ar afável, e despediu-se de Luís Garcia; foi dali vestir-se para ir ao teatro. Luís Garcia estava mais do que nunca resoluto a deixar que os acontecimentos tivessem livre curso, sem nenhuma intervenção sua. Logo que Jorge saiu, dispôs-se a fazer o mesmo, despedindo-se de Valéria. Esta acompanhou-o até à porta da sala.

- Não me diz nada? - perguntou ela quando o viu prestes a transpor a porta.

- Que lhe hei de dizer?

- Falou a meu filho?

- Falei.

- Achou-o disposto?

- Não digo que não.

- Mas de má vontade?

- Não digo que sim.

Valéria sorriu com uma ponta de despeito.

- Vejo que este assunto o aborrece.

Luís Garcia disse que não. Valéria encostou-se ao portal.

- Ninguém! - exclamou ela. Não tenho ninguém a meu lado. Só; ficarei só.

- Sejamos francos - disse Luís Garcia -; seu filho cede, mas cede violentado, e não vejo que se possa fazer dele um herói. Que motivo tão forte a obriga a exigir desse moço um sacrifício superior a suas posses?

Valéria não respondeu.

- Sei o motivo - disse ele daí a um instante.

- Sabe?

- Suspeito; e se me permite ser franco, direi que o acho singular, pelo menos não há proporções entre a causa e o efeito. Seu filho ama. Trata-se de uma mulher de certa espécie? São correrias da mocidade, e as dele não são tais que façam escândalo, creio eu. Trata-se de alguma moça, cuja aliança lhe não pareça aceitável? Nada lhe direi a tal respeito; mas reflita primeiro antes de o mandar ao Paraguai.

Valéria prendeu a mão direita de Luís Garcia entre as suas; refletiu longo tempo; depois disse com voz sumida:

- Suponha... que se trata... de uma senhora casada?

Luís Garcia curvou a cabeça com um gesto de assentimento. Como seus olhos baixassem ao chão, não pôde ver no rosto da viúva uma ligeira cor que avermelhou e desapareceu. Se lha visse, se a fitasse imperiosamente, talvez a viúva baixasse os olhos envergonhada de haver mentido. Luís Garcia não viu nada. Calou-se, aprovou a viúva, e prometeu auxiliá-la.

Era noite quando Luís Garcia saiu da casa de Valéria. Ia aborrecido de tudo, da mãe e do filho, de suas relações naquela casa, das circunstâncias em que se via posto. Galgando a ladeira a pé, detendo-se de quando em quando a olhar para baixo, ia como apreensivo do futuro, supersticioso, tomado de temores intermitentes e inexplicáveis. Não tardou a aparecer-lhe a luz da casa, e, daí a pouco, a ouvir a cantilena solitária do escravo e as notas rudimentais da marimba. Eram as vozes da paz; ele apertou o passo e refugiou-se na solidão.

III

Luís Garcia pouco trabalho teve no ânimo de Jorge. A resolução deste, uma vez declarada, não recuou mais. Não desconhecia o moço que a empresa a que metia ombros era crespa de dificuldades. A guerra, sobretudo depois do desastre de Curupaiti, prometia durar muito: não havia desânimo, e o governo era auxiliado eficazmente pela população. Jorge obteve uma patente de capitão de voluntários .

Vinte dias depois da conversa no terraço da rua dos Inválidos, apresentou-se Jorge em Santa Teresa, fardado e pronto, de tal modo porém que era ainda difícil separar o casquilho do militar. A mesma tesoura que lhe cortava os fraques, talhara a farda de capitão. Trazia à cintura uma banda vermelha, cujas pontas caíam graciosamente ao lado. Calçava um botim reluzente, sobre o qual assentava a calça de fino pano. Inclinado levemente à direita, o boné não lhe desconcertava o cabelo, penteado ao estilo de todos os dias; o bigode tinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas.

Luís Garcia não pôde furtar-se a um sentimento de pena, ao vê-lo entrar fardado e prestes a seguir para o Sul. Pareceu-lhe descobrir por trás dele o perfil da morte, com o eterno sorriso sem lábios. Mas esse sentimento de comiseração passou; lembrou-lhe logo a última palavra da viúva, e não pôde deixar de condená-lo. Viu até, com certa repulsa, esse coração de vinte e quatro anos, que ia arriscar a vida própria, e talvez a de sua mãe, para não rejeitar um sentimento mau.

- Estou a seu gosto? - perguntou Jorge com um ar de benévola ironia.

- Há de estar melhor ao fim da guerra, Sr. general - respondeu o outro.

- General? Pode ser.

Dizendo isto, Jorge entrou a falar de suas esperanças e futuros. A imaginação começava a dissipar a melancolia. Ele via já naquilo uma aventura romanesca e misteriosa; sentia-se uma ressurreição de cavaleiro medievo, saindo a combater por amor de sua dama, castelã opulenta e formosa que o esperaria na varanda gótica, com a alma nos olhos e os olhos na ponte levadiça. A ideia da morte ou da mutilação não vinha agitar-lhe ao rosto suas asas pálidas e sangrentas. O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos da esperança. Contudo, o momento era grave, e dificilmente podia o espírito esquivar-se à reflexão intermitente. Além disso, Jorge subira a Santa Teresa com a resolução de contar tudo a Luís Garcia, a fim de deixar um confidente austero e único de seus amores; mas a palavra não se atrevia a sair do coração. Ou a idade do outro ou a índole de suas relações tolhia essa confidência íntima; ainda mais do que uma e outra razão, havia naquele momento o gesto singularmente preocupado e duro de Luís Garcia. Jorge deu de mão ao projeto.

- Dê-me o abraço de despedida - disse ele -; embarco amanhã.

- Já amanhã?

- Vim despedir-me do senhor.

Luís Garcia considerou-o silenciosamente durante dous ou três minutos; depois apertou-lhe as mãos.

- Vá - disse -; trabalhe pela terra; não se poupe a trabalhos, nem se exponha sem utilidade; em todo o caso, obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe.

Jorge saiu e desceu a passo largo e trêmulo na direção da rua de D. Luísa. A meio caminho, parou como se quisesse tomar outra direção; ergueu os ombros e prosseguiu. Ia mergulhado em si mesmo, e só deu acordo ao parar diante de uma casa daquela rua.

Antes de lá entrar, vejamos quem eram os moradores.

O defunto marido de Valéria, no tempo em que advogava, tinha um escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de confiança. Chamava-se o Sr. Antunes. Foram serviços de certa ordem que os ligaram mais intimamente. A fortuna troca às vezes os cálculos da natureza; uma e outra iam de acordo na pessoa daquele homem, nado e criado para as funções subalternas. Familiar com todas as formas da adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hiperbólico até o silêncio oportuno. Tornou-se, dentro de pouco, não só um escrevente laborioso e pontual, mas também, e sobretudo, um fac-totum do desembargador, seu braço direito, desde os recados eleitorais até às compras domésticas, vasta escala em que entrava o papel de confidente das entrepresas amorosas. Assim que, nunca lhe fez míngua a proteção do desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado, multiplicarem-se-lhe as gratificações; foi admitido a comer algumas vezes em casa, nos dias comuns, quando não havia visitas de cerimônia. Nas ocasiões mais solenes era ele o primeiro que se esquivava. Ao cabo de três anos de convivência tinha consolidado a situação.

Justamente nesse tempo sucedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe ficou uma filha de dez anos, menina interessante, que algumas vezes visitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou o luto da filha e do pai. O Sr. Antunes, que não era de extremas filosofias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Eclesiastes, nem tudo, perfeições, como opina o Doutor Pangloss ; entendia que há larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. Morta a mulher, alcançou do desembargador um enxoval completo para fazer entrar a filha num colégio, visto que até então nada aprendera, e já agora não podia deixá-la sozinha em casa. O desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a criança, que era bonita e boa, entrou manso e manso no coração de Valéria, que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os estudos.

Estela - era o seu nome - tinha então dezesseis anos. Pouco antes falecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de não o ver testar. As aneurismas têm dessas perfídias inopináveis. A fim de emendar a mão à fortuna, o pai de Estela concentrou na viúva a atenção que até então repartira entre ela e o marido, fato que aliás decorria da própria obrigação moral em que se achava para com a família do desembargador. Estela devia a essa família educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge vinculasse as duas famílias. Esta ambição, afagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma.

Jorge estava prestes a concluir os estudos em São Paulo; ia na metade do quarto ano. Vindo à capital durante as férias, achou-se diante de uma situação inesperada; a mãe esboçara um projeto de casamento para ele. A noiva escolhida era ainda parenta remota de Jorge. Chamava-se Eulália. Tinha dezenove anos na certidão de batismo e trinta no cérebro. Era uma moça sem ilusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juízo reto e coração simples, e sobre tudo isso uma beleza sem mácula e uma elegância sem espavento.

- Uma pérola! - dizia Valéria quando insinuou ao filho a conveniência de casar com Eulália.

A pérola, entretanto, não parecia ansiosa de ornar a fronte de ninguém. Quando Valéria fez as primeiras sondagens no coração da jovem parenta, achou ali uma água tranquila sem curso nem recurso de marés. Tratou de saber se alguma brisa lhe roçara a asa, e descobriu que não; então chamou em seu auxílio o siroco e o pampeiro. Não foi difícil a Eulália perceber os desejos da viúva, nem resistiu quando chegou a entendê-la. A razão disse-lhe que o casamento era aceitável; esperou. Valéria ficou satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as disposições de Jorge, quando ele voltou no fim do ano.

Graças à sua arte de assediar as vontades alheias, Valéria alcançou do filho uma resposta condicional. Era já alguma cousa. O motivo da insistência da viúva era complexo; eram as qualidades da parenta, a afeição grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e a confiança que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres. Durante o último ano da Faculdade, Jorge pensou algumas vezes no casamento como se pensa num projeto remoto; mas, à proporção que o tempo corria, o coração ia-se-lhe tornando retraído e medroso. Uma vez formado, deu de mão à ideia; não teve a franqueza de o declarar à mãe, e Valéria esperou confiadamente que o coração do filho dissesse noutra língua aquilo que ela já lhe havia dito na sua.

Para conhecer exatamente o motivo da repulsa de Jorge em relação a uma moça cujas qualidades deviam tentar qualquer outro, convém não esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avessas à índole do filho de Valéria. Não bastava ser elegante e bonita, discreta e mansa; era preciso alguma cousa mais, que exatamente correspondesse à imaginação dele; faltava-lhe um grão de romanesco.

A isto acrescia um sentimento novo, que se apossou dele, ao cabo de três semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. A vista quotidiana de Estela produziu em Jorge uma impressão forte. Posto vivessem na mesma casa, era difícil acharem-se nunca a sós, porque a filha do escrevente passava todo o tempo ao pé da viúva; circunstância que não teve a virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Não podendo passar de palavras gerais e estranhas ao que lhe quisera confiar, Jorge falava-lhe com os olhos - linguagem que a moça não entendia, ou fingia não entender. A imperturbável seriedade de Estela foi um aguilhão mais, não menos cruel que a gentileza de suas formas, e certo ar de resolução que lhe transparecia do rosto quieto e pálido.

Pálida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascética. Tinha os olhos grandes, escuros, com uma expressão de virilidade moral que dava à beleza de Estela o principal característico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas, mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo. Usualmente trazia roupas pretas, cor que preferia a todas as outras. Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexível. Nem usava nunca trazê-lo de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viúva a presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nem brincos, nem anéis. Ao primeiro aspecto dissera-se um Diógenes feminino, cuja capa, através das roturas, deixava entrever a vaidade da beleza que quer afirmar-se tal qual é, sem nenhum outro artifício. Mas, conhecido o caráter da moça, eram dous os motivos - um sentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a consideração de que os meios do pai não davam para custosos atavios, e assim não lhe convinha afeiçoar-se ao luxo.

- Por que não põe os brincos que mamãe lhe deu a semana passada? - perguntou Jorge a Estela, um dia, em que havia gente de fora a jantar.

- Os presentes mais queridos guardam-se - respondeu ela olhando para a viúva.

Valéria apertou-lhe a ponta do queixo entre o polegar e o indicador:

- Poeta! - exclamou sorrindo -. Você não precisa de brincos para ser bonita, mas vá pô-los, que lhe ficam bem.

Foi a primeira e última vez que Estela os pôs. A intenção era patente demais para não ser notada, e Jorge não esqueceu nem a resposta da moça nem o constrangimento com que obedeceu. Não podia supor-lhe ingratidão, porque via a afeição com que Estela tratava a mãe. Em relação a ele não parecia haver afeição igual, mas havia certamente respeito e consideração, rara vez familiaridade, e ainda assim, uma familiaridade enluvada, um ar de visita de pouco tempo.

Jorge começou a achar mais agradável a casa do que a rua; e as noites, quando não havia pessoas de fora, passava-as à volta de uma mesa, lendo ou jogando com as duas, ou vendo-as trabalhar, enquanto contava anedotas da academia, lia as correspondências do Paraguai e de Buenos Aires, ou simplesmente alguma página de romance. Nessa vida, meio patriarcal, as horas corriam depressa, tão depressa, que ele não as sentia. Ao cabo de cinco a seis semanas, fez-se ele seu próprio confessor, examinou a consciência, descobriu lá dentro alguma cousa que não era a fantasia sensual do primeiro instante, e, longe de absolver-se, condenou-se à crua penitência de abstenção. Voltou aos antigos hábitos e deixou os serões domésticos. Mas a aplicação do remédio, por mais sincera que fosse, já não podia muito contra a ação do mal. Estela frequentava-lhe tenazmente a memória; e na rua, no teatro, nas assembleias a que ia, o perfil severo da moça vinha meter-se entre ele e a realidade. Se pudesse deixar de a ver, a convalescença não era ainda difícil; mas como fugir à lembrança de uma mulher cuja figura lhe aparecia durante algumas horas de cada dia? Demais, a sonâmbula que ele tinha no cérebro vinha auxiliar a fatalidade das circunstâncias. No fim de um mês, a índole do sentimento havia mudado: era mais pura; mas o sentimento não parecia disposto a esvair-se: era mais violento.

Como o Sr. Antunes levasse a filha, uma noite, a visitar pessoa de sua amizade, Jorge aproveitou a circunstância para insinuar a Valéria a conveniência de restituir Estela a seu pai.

- Por quê? - perguntou a viúva.

- Sempre é um tropeço, uma pessoa estranha metida entre nós! - replicou Jorge -. Não lhe nego que tem boas qualidades; mas... é uma pessoa estranha.

- Que importa, se me dou bem com ela? Conheço-a desde pequena; é uma companhia melhor do que qualquer outra. Mas por que te lembras disso agora?

- Estive pensando na responsabilidade que pesa sobre nós. Se fosse nossa parenta, vá, não se podia dispensar a obrigação; mas não sendo, creio que era melhor libertarmo-nos.

- Descansa; quando for tempo, caso-a. O que não admito é algum marido de pouco mais ou menos. Há de ser pessoa que a mereça. Não sabes o que vale aquela menina. Não é só boa, tem certa elevação de sentimentos; nunca me desatendeu e nunca me adulou.

Jorge confirmou com a cabeça e não disse mais nada. O que acabava de fazer não passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, para arredar Estela da casa; era o imposto pago à consciência. Quite com ela, entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que o perigo não era tão grave, nem o remédio tão urgente; finalmente, que ele era homem.

No meio de semelhante situação, que sentia ou que pensava Estela? Estela amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangular ou dissimular - trancá-lo ao menos no mais escuso do coração, como se fora uma vergonha ou um pecado.

"Nunca!" - jurou ela a si mesma.

Estela era o vivo contraste do pai, tinha a alma acima do destino. Era orgulhosa, tão orgulhosa, que chegava a fazer da inferioridade uma auréola; mas o orgulho não lhe derivava de inveja impotente ou de estéril ambição; era uma força, não um vício - era o seu broquel de diamante, o que a preservava do mal, como o do anjo de Tasso defendia as cidades castas e santas. Foi esse sentimento que lhe fechou os ouvidos às sugestões do outro. Simples agregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e, dado que fosse possível obtê-la, é lícito afirmar que recusara, porque, a seus olhos, seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valéria, que também era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrário, veio a apreciá-la melhor.

Pois o orgulho de Estela não lhe fez somente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessária para viver tranquila no centro mesmo do perigo. Jorge não percebera nunca os sentimentos que inspirara; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirar um dia. Estela só lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade.

Um dia, vagando uma casa de Valéria no caminho da Tijuca,determinou-se a viúva a ir examiná-la, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estela. Saíram cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que pela primeira vez ia àquele arrabalde. Quando a carruagem parou, supunha Estela que mal tivera tempo de sair da rua dos Inválidos.

A casa precisava de alguns reparos; um mestre-de-obras, que já ali estava, acompanhou a família de sala em sala e de alcova em alcova. Só ele e Valéria falavam; Estela não tinha voto consultivo e Jorge parecia indiferente. Que lhe importava a ele o reboco de uma parede ou o conserto de um soalho? Ele gracejava, ria ou sussurrava ao ouvido de Estela um epigrama a respeito do mestre-de-obras, cuja prosódia era execrável. Estela, que sorria com ele, cerrava entretanto o gesto aos epigramas.

De sala em sala, chegaram a uma pequena varanda, onde uma circunstância nova os deteve algum tempo. Numa das extremidades da varanda havia um pombal velho, onde eles foram achar, esquecido ou abandonado, um casal de pombos. As duas aves, após vinte e quatro horas de solidão, pareciam saudar as pessoas que ali apareciam repentinamente.

- Coitadinhos! - disse Estela logo que entrou na varanda.

Valéria prestou um minuto de atenção, talvez meio, e seguiu a ver a casa. Estela ficara a olhar para os dous pombos, e não a viu sair.

- Quer levá-los? - disse a voz de Jorge.

A moça voltou-se e respondeu que não.

- Contudo - continuou ela -, era bom dá-los a alguém para não morrerem à fome. São tão bonitos!

- Mas por que não os há de levar a senhora mesma?

- Vou pedir ao mestre que os tire dali - disse ela dando um passo para dentro.

- Não é preciso: eu vou tirá-los.

Estela recusou, mas o bacharel resolvera e ia satisfazer ele próprio o desejo da moça. O pombal não ficava ao alcance da mão; era preciso trepar ao parapeito da varanda, crescer na ponta dos pés e estender o braço. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos pombos. Jorge trepou ao parapeito. Se perdesse o equilíbrio poderia cair ao chão da chácara; para evitá-lo, Jorge lançou a mão esquerda a um ferro que havia na coluna do canto, e que o amparou; depois esticou o corpo e alcançou com a mão o pombal. Um dos pombos ficou logo seguro; o outro, a princípio arisco, foi colhido depois de algum esforço. Estela recebeu-os; Jorge saltou ao chão.

- A Sra. D. Valéria, se visse isto, havia de ralhar - disse Estela.

- Grande façanha! - respondeu Jorge sacudindo com o lenço as mãos e a aba do fraque.

- Podia cair.

- Mas não caí; foi um risco que passou. São bonitinhos, não são? - continuou ele apontando para os pombos que Estela tinha entre as mãos.

A moça respondeu com um gesto e deu alguns passos, a fim de ir ter com a viúva. Jorge deteve-a, metendo-se entre ela e a porta.

- Não se vá embora - disse ele.

- Que é? - perguntou Estela erguendo tranquilamente os grandes olhos límpidos.

- Disfarçada!

Estela baixou silenciosamente a cabeça e buscou dar outra volta para entrar na sala ao pé; Jorge, porém, interceptou-lhe de novo o caminho.

- Deixe-me passar - disse ela sem cólera nem súplica.

Jorge recuara até a porta, única das três que estava aberta. Era arriscado o que fazia; mas, além de que Valéria e o mestre estavam no pavimento superior, ele ouvia-lhes os passos, perdera naquela ocasião toda a lucidez de espírito. Era deserto o lugar, e naturalmente seria longo o tempo de que poderia dispor para lhe dizer tudo. Mas os lábios ficaram cerrados alguns instantes, enquanto os olhos diziam a eloquência da paixão mal contida e prestes a irromper.

Não insistiu Estela, mas ficou diante dele, quieta e sem arrogância, como esperando ser obedecida. Jorge quisera-a suplicante ou desvairada; a tranquilidade feria-lhe o amor-próprio, fazendo-lhe ver que o perigo era nenhum, e revelando, em todo caso, a mais dura indiferença. Quem era ela para o afrontar assim? Era a segunda vez que formulava essa pergunta; tinha-a feito nas primeiras auroras da paixão. Desta vez a resposta foi deplorável. Cravando os olhos em Estela, disse com voz trêmula, mas imperiosa:

- Não há de sair daqui, sem me dizer se gosta de mim. Vamos; responda! Não sabe o que lhe pode custar esse silêncio?

Não obtendo resposta, continuou depois de alguma pausa:

- É animosa! Saiba que posso vir a odiá-la e que talvez já a odeio; saiba também que posso tirar vingança de seus desprezos, e chegarei a ser cruel, se for necessário.

Estela suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para a chácara. Era sua intenção não irritá-lo, com a resposta seca e má que lhe ditava o coração, e esperar que Valéria descesse. Entretanto, na posição em que ficara, tinha as costas voltadas para Jorge, circunstância que não era intencional, mas que pareceu a este um simples meio de lhe significar o seu desdém. A irritação de Jorge foi grande. Após uns dous ou três minutos de silêncio, Jorge caminhou na direção do parapeito, onde estava Estela, com a cabeça inclinada, a beijar a cabeça dos pombos, que tinha encostados ao seio. Deteve-se, sem que a moça mudasse de posição. Contemplou-a ainda um instante, e se Estela olhasse para ele veria que a expressão dos olhos era de respeitosa ternura e nada mais.

Esse instante, porém, voou depressa, e com ele a consideração. Inclinando-se para a moça, Jorge falou de um modo que nem a educação nem a índole, mas só o despeito explicava:

- Por que há de gastar, com esses animais, uns beijos que podem ter melhor emprego?

Estela estremeceu toda e ergueu para o moço uns olhos que fuzilavam de indignação. Já não estava pálida, mas lívida. Estupefata, não sabia que dissesse ou fizesse, e infelizmente não sabia também que a pergunta de Jorge, por mais ofensiva que lhe parecesse, não era ainda a máxima injúria. Não era; Jorge tinha uma nuvem diante de si, através da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da mulher amada; via só a mulher indiferente. Lançou-lhe as mãos à cabeça, puxou-a até si e antes que ela pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos.

Soltos com o movimento, os pombos esvoaçaram sobre a cabeça de ambos, e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhuma fatalidade moral os condenava àquele amor sem esperança, àquela cólera sem dignidade.

Estela sufocara um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviam-se as vozes de Valéria e do mestre, que se aproximavam; Jorge teve um instante de incerteza e hesitação; mas a reação operara-se, e, além disso, urgia apagar os vestígios daquela cena, de maneira que os não visse a viúva.

- Aí vem mamãe - disse ele baixinho a Estela -; não tive culpa no que fiz, porque gosto muito da senhora.

Estela voltou-se para fora e enxugou o rosto; daí a pouco entraram Valéria e o mestre. Este saiu logo depois, tendo ajustado as obras que era indispensável fazer na casa. Valéria, irritada com a vista dos estragos que encontrou, criticava o desleixo dos inquilinos. Só depois dos primeiros instantes reparou que nenhum dos dous lhe respondia nada. Jorge parecia acanhado, e Estela, triste. Posto houvesse enxugado as lágrimas, Estela tinha o rosto desfeito e murchos os belos olhos. Jorge não ousava olhar para a mãe nem para Estela; olhava para a ponta dos botins, onde ficara um pouco da caliça do parapeito; tinha as mãos nas costas e estava arrimado a um portal. Valéria reparou na atitude dos dous; mas como possuía a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram.

Daí a nada meteram-se no carro. Era tarde. A viagem foi quase inteiramente silenciosa; pelo menos, só Valéria disse algumas palavras. Chegando à rua dos Inválidos, a viúva suspeitava que alguma cousa havia entre os dous e grave. Todo aquele dia meditou nos meios de conhecer a natureza e os pormenores da situação, e nada achou melhor do que interrogar diretamente um deles. Jorge saíra de casa logo depois e não voltou para jantar; Estela não sorriu em todo esse dia e quase não falou.

Não foi preciso interrogá-la. Logo na seguinte manhã, acabando de levantar-se, entrou-lhe Estela na alcova, e pediu alguns minutos de atenção. Expôs-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moça, devia ir prestar ao pai os serviços que ele precisaria de alguém e tinha o direito de exigir da filha. Não era ingratidão, acrescentava; levaria dali saudades eternas; voltaria muitas vezes, seria sempre obediente e grata. Cedia somente à necessidade de acompanhar o pai. Este pedido confirmava a suspeita de Valéria, mas só esclarecia metade da situação. A retirada de Estela era um meio de fugir a Jorge ou de lhe falar mais livremente? Valéria tratou de perscrutar o coração da moça, dizendo-lhe que a razão dada era insuficiente e que alguma causa oculta a movia; depois, recordou-lhe a amizade que lhe tinha e a confiança a que Estela não devia faltar.

- Vamos lá - disse ela -; confessa tudo.

Estela afirmou que nada mais havia; mas, insistindo a viúva, respondeu curvando a cabeça - o que importava meia confissão. Valéria lutou ainda muito tempo, empregou a brandura e a intimação, mas a moça não cedeu mais nada.

- Bem - disse a viúva -; faça-se a tua vontade.

Foi assim que Estela, ao cabo de algum tempo de residência na casa de Valéria, regressou à casa do pai, na rua de D. Luísa. O Sr. Antunes ficou desorientado com a notícia; disse que vivia perfeitamente só; achou pouco decoroso e menos justo o procedimento de Estela, em relação à viúva do desembargador; gastou largos conceitos, que lhe não aproveitaram, porque Estela não recuou da resolução, nem a viúva tentou dissuadi-la.

A separação não valia nada ou valia cousa pior; fez recrudescer o amor de Jorge, por isso mesmo que entre um e outro rasgava espaço à imaginação. Duas forças reagiram no coração do rapaz; o obstáculo, que tornava mais intenso o amor, e o remorso, que o fazia mais respeitoso. Nenhum ressentimento lhe ficara da resolução de Estela; sentia-se culpado, e mais ainda, sentia-se vítima da fuga da moça. Nem tudo isso seria efeito somente da paixão; cabia uma parte de influência à severidade do caráter de Estela, que acabou por incutir no espírito de Jorge ideia diferente da que ele a seu respeito fazia. Valéria descobriu a pouco e pouco a ineficácia do remédio que aceitara; estava certa da paixão do filho, e via que, longe de expirar, entrava pela vida adiante, menos estouvada talvez, mas não menos sincera e profunda; soube que Jorge frequentava a casa da rua de D. Luísa; estremeceu pelo futuro e cogitou no modo de estrangular as esperanças em flor.

"Ou ela já o ama ou pode vir a amá-lo", dizia consigo.

Valéria encarava os dous desenlaces possíveis da situação, se a moça lhe amasse o filho: ou seria a queda de Estela, que a viúva estimava muito, ou o consórcio dos dous, solução que lhe repugnava aos sentimentos, ideias e projetos. Jamais consentiria em semelhante aliança. Urgia pronto remédio.

Voltou energicamente ao projeto de casar o filho com Eulália, e o intimou a obedecer-lhe. Jorge começou resistindo e acabou dissimulando; mas o artifício não iludiu a mãe. Valéria chamou logo em seu auxílio a jovem parenta. Eulália, que tivera tempo de refletir, francamente lhe disse que não estava disposta a ser sua nora, porque Jorge não a amaria nunca; e, conquanto não visse no casamento uma página de romance, entendia que a antipatia ou total indiferença era o mais frouxo dos vínculos conjugais.

Desamparada desse lado, a viúva cogitou então a viagem à Europa; e, quando ele lha recusou, recorreu à Guerra do Paraguai. Não sem custo lançou mão desse meio, violento para ambos; mas, uma vez adotado, luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo. Assim foi que de um incidente, comparativamente mínimo, resultara aquele desfecho grave, e de um caso doméstico saía uma ação patriótica.

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