Iaiá Garcia
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.
Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.
O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).
Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.
O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.
Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
I
Luís Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando apareceu um criado e lhe entregou esta carta:
5 de outubro de 1866
Sr. Luís Garcia - Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus obséquios. - VALÉRIA
- Diga que irei. A senhora está cá no morro?
- Não, senhor, está na rua dos Inválidos.
Luís Garcia era funcionário público. Desde 1860 elegera no lugar menos povoado de Santa Teresa uma habitação modesta, onde se meteu a si e a sua viuvez. Não era frade, mas queria como eles a solidão e o sossego. A solidão não era absoluta, nem o sossego, ininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cá embaixo. Os frades que, na puerícia da cidade, se tinham alojado nas outras colinas , desciam muita vez, ou quando o exigia o sacro ministério, ou quando o governo precisava da espada canônica - e as ocasiões não eram raras; mas geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação civil. Luís Garcia podia dizer a mesma cousa; e, porque nenhuma vocação apostólica o incitava a abrir a outros a porta de seu refúgio, podia dizer-se que fundara um convento em que ele era quase toda a comunidade, desde prior até noviço.
No momento em que começa esta narrativa, tinha Luís Garcia quarenta e um anos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar circunspecto. Suas maneiras eram frias, modestas e corteses; a fisionomia, um pouco triste. Um observador atento podia adivinhar por trás daquela impassibilidade aparente ou contraída as ruínas de um coração desenganado. Assim era; a experiência, que foi precoce, produzira em Luís Garcia um estado de apatia e cepticismo, com seus laivos de desdém. O desdém não se revelava por nenhuma expressão exterior; era a ruga sardônica do coração. Por fora, havia só a máscara imóvel, o gesto lento e as atitudes tranquilas. Alguns poderiam temê-lo, outros, detestá-lo, sem que merecesse execração nem temor. Era inofensivo por temperamento e por cálculo. Como um célebre eclesiástico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que uma libra de vitória. Poucos lhe queriam deveras, e esses empregavam mal a afeição, que ele não retribuía com afeição igual, salvo duas exceções. Nem por isso era menos amigo de obsequiar. Luís Garcia amava a espécie e aborrecia o indivíduo. Quem recorria a seu préstimo, era raro que não obtivesse favor. Obsequiava sem zelo, mas com eficácia, e tinha a particularidade de esquecer o benefício, antes que o beneficiado o esquecesse.
A vida de Luís Garcia era como a pessoa dele - taciturna e retraída. Não fazia nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia lá dentro a melancolia da solidão. Um só lugar podia chamar-se alegre; eram as poucas braças de quintal que Luís Garcia percorria e regava todas as manhãs. Erguia-se com o sol, tomava do regador, dava de beber às flores e à hortaliça; depois, recolhia-se e ia trabalhar antes do almoço, que era às oito horas. Almoçado, descia a passo lento até à repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as gazetas do dia. Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do método. Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras vezes em caminho. Ao chegar a casa, já o preto Raimundo lhe havia preparado a mesa - uma mesa de quatro a cinco palmos -, sobre a qual punha o jantar, parco em número, medíocre na espécie, mas farto e saboroso para um estômago sem aspirações nem saudades. Ia dali ver as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite caía. Então, sentava-se a trabalhar até às nove horas, que era a hora do chá.
Não somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas também a casa participava dela. Cada móvel, cada objeto - ainda os ínfimos - parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que se enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, à hora costumada; abriam-se as mesmas janelas e nunca outras. A regularidade era o estatuto comum. E se o homem amoldara as cousas a seu jeito, não admira que amoldasse também o homem. Raimundo parecia feito expressamente para servir Luís Garcia. Era um preto de cinquenta anos, estatura mediana, forte, apesar de seus largos dias, um tipo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luís Garcia o herdou de seu pai - não avultou mais o espólio -, deu-lhe logo carta de liberdade. Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregara-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luís Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o afeto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu.
- És livre - disse Luís Garcia -; viverás comigo até quando quiseres.
Raimundo foi dali em diante um como espírito externo de seu senhor; pensava por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas as suas ações, não menos silenciosas que pontuais. Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente. Raimundo, posto fosse o único servidor da casa, sobrava-lhe tempo, à tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a noite vinha caindo. Ali falavam de seu pequeno mundo, das raras ocorrências domésticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra circunstância exterior. Quando a noute caía de todo e a cidade abria os seus olhos de gás, recolhiam-se eles a casa, a passo lento, à ilharga um do outro.
- Raimundo hoje vai tocar, não é? - dizia às vezes o preto.
- Quando quiseres, meu velho.
Raimundo acendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para o jardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de África, memórias desmaiadas da tribo em que nascera. O canto do preto não era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave pesarosa. Alegres eram, guerreiras, entusiastas; por fim calava-se. O pensamento, em vez de volver ao berço africano, galgava a janela da sala em que Luís Garcia trabalhava e pousava sobre ele como um feitiço protetor. Quaisquer que fossem as diferenças civis e naturais entre os dous, as relações domésticas os tinham feito amigos.
Entretanto, das duas afeições de Luís Garcia, Raimundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha.
Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo da semana. No sábado à tarde, acabado o jantar, descia Raimundo até à rua dos Arcos, a buscar a sinhá moça, que estava sendo educada em um colégio. Luís Garcia esperava por eles, sentado à porta ou encostado à janela, quando não era escondido em algum recanto da casa para fazer rir a pequena. Se a menina o não via à janela ou à porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde não era difícil dar com ele, porque os recantos eram poucos. Então caíam nos braços um do outro. Luís Garcia pegava dela e sentava-a nos joelhos. Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapelinho, que cobria os cabelos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina; beijava-a outra vez, mas então nos cabelos e nos olhos - os olhos, que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.
Contava onze anos e chamava-se Lina. O nome doméstico era Iaiá. No colégio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com igual nome, acrescentavam-lhe o apelido de família. Esta era Iaiá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso - um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra idade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pai. Luís Garcia punha-a no chão, tornava a subi-la aos joelhos, até que consentia finalmente em separar-se dela por alguns instantes. Iaiá ia ter com o preto.
- Raimundo, o que é que você me guardou?
- Guardei uma cousa - respondia ele sorrindo -. Iaiá não é capaz de adivinhar o que é.
- É uma fruta.
- Não é.
- Um passarinho?
- Não adivinhou.
- Um doce?
- Que doce é?
- Não sei; dá cá o doce.
Raimundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança guardada. Era às vezes um confeito, outras, uma fruta, um inseto esquisito, um molho de flores. Iaiá festejava a lembrança do escravo, dando saltos de alegria e de agradecimento. Raimundo olhava para ela, bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos, como um jorro de água pura. Quando o presente era uma fruta ou um doce, a menina trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, a gesticular, e a interromper-se de quando em quando:
- Muito bom! Raimundo é amigo de Iaiá... Viva Raimundo!
E seguia dali a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o jardim. No jardim achava o pai já sentado no banco do costume, com uma das pernas sobre a outra, e as mãos cruzadas sobre o joelho. Ia ter com ele, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atrás dos insetos. De noite, não havia trabalho para Luís Garcia; a noite, como o dia seguinte, era toda consagrada à criança. Iaiá referia ao pai as anedotas do colégio, as puerilidades que não valem mais nem menos que outras da idade madura, as intriguinhas de nada, as pirraças de cousa nenhuma. Luís Garcia escutava-a com igual atenção à que prestaria a uma grande narrativa histórica. Seu magro rosto austero perdia a frieza e a indiferença; inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as mãos da filha nas suas, considerava-se o mais venturoso dos homens. A narrativa da pequena era como costumam ser as da idade infantil: desigual e truncada, mas cheia de um colorido seu. Ele ouvia-a sem interromper; corrigia, sim, algum erro de prosódia ou alguma reflexão menos justa; fora disso, ouvia somente.
Pouco depois da madrugada todos três estavam de pé. O sol de Santa Teresa era o mesmo da rua dos Arcos; Iaiá, porém, achava-lhe alguma cousa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro, através das persianas. Ia à janela que dava para uma parte do jardim. Via o pai bebendo a xícara de café, que aos domingos precedia o almoço. Às vezes ia ter com ele; outras vezes ele caminhava para a janela, e, com o peitoril de permeio, trocavam os ósculos da saudação. Durante o dia, Iaiá derramava pela casa todas as sobras de vida que tinha em si. O rosto de Luís Garcia acendia-se de um reflexo de juventude, que lhe dissipava as sombras acumuladas pelo tempo. Raimundo vivia da alegria dos dous. Era domingo para todos três, e tanto o senhor como o antigo escravo não ficavam menos colegiais que a menina.
- Raimundo - dizia esta -, você gosta de santo de comer?
Raimundo empertigava o corpo, abria um riso e, dando aos quadris e ao tronco o movimento de suas danças africanas, respondia cantarolando:
- Bonito santo! Santo gostoso!
- E santo de trabalhar?
Raimundo, que já esperava o reverso, estacava subitamente, punha a cabeça entre as mãos, e afastava-se murmurando com terror:
- Eh... eh... não fala nesse santo, Iaiá! Não fala nesse santo!
- E santo de comer?
- Bonito santo! Santo gostoso!
E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, até que Iaiá, aborrecida, passava a outra cousa.
Não havia só recreio. Uma parte mínima do dia - pouco mais de uma hora - era consagrada ao exame do que Iaiá aprendera no colégio, durante os dias anteriores. Luís Garcia interrogava-a, fazia-a ler, contar e desenhar alguma cousa. A docilidade da menina encantava a alma do pai. Nenhum receio, nenhuma hesitação; respondia, lia ou desenhava, conforme lhe era mandado ou pedido.
- Papai quer ouvir tocar piano? - disse ela um dia -; olhe, é assim.
E com os dedos na borda da mesa, executava um trecho musical, sobre teclas ausentes. Luís Garcia sorriu, mas um véu lhe empanou os olhos. Iaiá não tinha piano! Era preciso dar-lhe um, ainda com sacrifício. Se ela aprendia no colégio, não era para tocar mais tarde em casa? Este pensamento enraizou-se-lhe no cérebro e turbou o resto do dia. No dia seguinte, Luís Garcia encheu-se de valor, pegou da caderneta da Caixa Econômica e foi retirar o dinheiro preciso para comprar um piano. Eram da filha as poucas economias que ajuntava; o piano era para ela igualmente; não lhe diminuía a herança.
Quando no seguinte sábado, Iaiá viu o piano, que o pai lhe foi mostrar, sua alegria foi intensa, mas curta. O pai abrira-o, ela acordou as notas adormecidas no vasto móvel, com suas mãozinhas ainda incertas e débeis. A um dos lados do instrumento, com os olhos nela, Luís Garcia pagava-se do sacrifício, contemplando a satisfação da filha. Curta foi ela. Entre duas notas, Iaiá parou, olhou para o pai, para o piano, para os outros móveis; depois descaiu-lhe o rosto, disse que tinha uma vertigem. Luís Garcia ficou assustado, pegou dela, chamou Raimundo; a criança afirmou que estava melhor, e finalmente que a vertigem passara de todo. Luís Garcia respirou. Os olhos de Iaiá não ficaram mais alegres, nem ela foi tão travessa como costumava ser.
A causa da mudança, desconhecida para Luís Garcia, era a penetração que madrugava no espírito da menina. Lembrara-se ela, repentinamente, das palavras que proferira e do gesto que fizera, no domingo anterior; por elas explicou a existência do piano; comparou-o, tão novo e lustroso, com os outros móveis da casa, modestos, usados, encardida a palhinha das cadeiras, roído do tempo e dos pés um velho tapete, contemporâneo do sofá. Dessa comparação extraiu a ideia do sacrifício que o pai devia ter feito para condescender com ela; ideia que a pôs triste, ainda que não por muito tempo, como sucede às tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia também irrupção naquela alma até agora isenta da jurisdição da fortuna.
Passou! Bem depressa os sons do piano vieram casar-se ao gorjeio de Iaiá e ao riso do escravo e do senhor. Era mais uma festa aos domingos. Iaiá confiou um dia ao pai a ideia que tinha de ser mestre de piano. Luís Garcia sorria a esses planos da meninice, tão frágeis e fugidios como suas impressões. Também ele os tivera aos dez anos. Que lhe ficara dessas primeiras ambições? Um resíduo e nada mais. Mas assim como as aspirações daquele tempo o fizeram feliz, era justo não dissuadir a filha de uma ambição, aliás inocente e modesta. Oxalá não viesse a ter outras de mais alto voo! Demais, que lhe poderia ele desejar, senão aquilo que a tornasse independente e lhe desse os meios de viver sem favor? Iaiá tinha por si a beleza e a instrução; podia não ser bastante para lhe dar casamento e família. Uma profissão honesta aparava os golpes possíveis da adversidade. Não se podia dizer que Iaiá tivesse talento musical: que importa? Para ensinar a gramática da arte, era suficiente conhecê-la.
Resta dizer que havia ainda uma terceira afeição de Iaiá; era Maria das Dores, a ama que a havia criado, uma pobre catarinense para quem só havia duas devoções capazes de levar uma alma ao céu: Nossa Senhora e a filha de Luís Garcia. Ia ela de quando em quando à casa deste, nos dias em que era certo encontrar lá a menina, e ia de São Cristóvão, onde morava. Não descansou enquanto não alugou um casebre em Santa Teresa, para ficar mais perto da filha de criação. Um irmão, antigo furriel, que fizera a campanha contra Rosas, era seu companheiro de trabalho.
Tal era a vida uniforme e plácida de Luís Garcia. Nenhuma ambição, cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A última dor séria que tivera foi a morte da esposa, ocorrida em 1859, meses antes de ir-se ele esconder em Santa Teresa. O tempo, esse químico invisível, que dissolve, compõe, extrai e transforma todas as substâncias morais, acabou por matar no coração do viúvo, não a lembrança da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizer que as lágrimas derramadas nessa ocasião honraram a esposa morta por serem conquista sua. Luís Garcia não casara por amor nem interesse; casara porque era amado. Foi um movimento generoso. A mulher não era de sua mesma índole; seus espíritos vinham de pontos diferentes do horizonte. Mas a dedicação e o amor da esposa abriram nele a fonte da estima. Quando ela morreu, viu Luís Garcia que perdera um coração desinteressado e puro; consolou-o a esperança de que a filha havia herdado uma parcela dele.
Assim vivia esse homem céptico, austero e bom, alheio às cousas estranhas, quando a carta de 5 de outubro de 1866 veio chamá-lo ao drama que este livro pretende narrar.