Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

XVI

A morte de Luís Garcia foi uma complicação mais. Passados os primeiros dous meses, Jorge pensou em realizar o casamento, sem aparato, como um simples ato de interesse doméstico, aliás necessário pela situação em que se achavam as duas senhoras. O Sr. Antunes fora morar com elas, e era o chefe natural da família; mas Jorge não esquecera que Luís Garcia nenhuma confiança tinha na pessoa do sogro; demais, entregara diretamente a Jorge a chefia da casa. Ora, cumpria legalizar e santificar a designação do moribundo.

Mas, se isto lhe parecia claro e necessário, não se atrevia ainda assim propô-lo à noiva, e por duas razões. A primeira era o natural respeito à dor da filha, que ele podia magoar ainda mais falando-lhe desde logo no casamento. Era a segunda a frieza e o silêncio com que esta o tratava depois da morte do pai. A diferença era positiva e inexplicável; mas a boa-fé explica tudo, e Jorge atribuiu essa nova feição da moça ao profundo golpe que o desastre lhe desfechara. Sabia da paixão filial de Iaiá; era testemunha dessa adoração constante, que parecia contar com a eternidade da vida.

A ideia de falar a Estela apenas lhe passou pela mente; rejeitou-a sem esforço. Limitou-se a esperar, e ia ali com a assiduidade que lhe permitia a condição de noivo. Ia às noites, não todas; passava uma ou duas horas, a atar e desatar uma conversação frouxa, muita vez sem interesse. Sobre todos três, mas principalmente sobre as duas, pesava ainda a lembrança do finado. O Sr. Antunes tomava parte nessas conversações íntimas, e era ele quem forcejava por lhes dar a perdida animação; temperava-as com algum dito folgazão, ouvido com indiferença, quando não com tédio. Posto que o casamento de Jorge com a enteada da filha estivesse tratado, ele nutria a esperança de que alguma cousa o viria desfazer, e nessa carta incerta jogava todo o futuro.

Uma noite, Jorge propôs diretamente a Iaiá a necessidade de apressar o casamento.

- Não sendo a cerimônia pública - disse ele -, não daremos que falar aos outros, se alguma cousa há que falar...

- Quer a minha resposta hoje mesmo? - interrompeu Iaiá.

- Podia ser hoje.

Estela, que estava presente, apoiou a reflexão de Jorge.

- Convém decidir quanto antes - disse ela -; não vale a pena deixar passar mais tempo sem utilidade.

- Sem utilidade - repetiu Iaiá olhando para o teto.

- Decerto...

Iaiá baixou os olhos aos dous; fitou-os a um e outro, longo tempo, com severidade; depois, retorquiu em tom ríspido:

- Deixem-me ao menos o tempo de chorar meu pai!

Jorge proferiu algumas palavras de afeição; Estela não protestou nem retorquiu; ergueu-se silenciosamente e deixou-os. O silêncio foi longo. Jorge não tomara à má parte a súplica da noiva; atribuiu-a ao sentimento de piedade filial, que era nela mais forte que qualquer outro.

- Iaiá - disse ele -, ninguém lhe nega o direito de chorar seu pai; se insistimos é em benefício da família. Seu pai recomendou-me que olhasse pelos seus, e eu quisera poder fazê-lo, não como estranho, mas como parente; por isso lembrei a conveniência de realizar o casamento quanto antes, mas se lhe parece que pode ser adiado...

- Pode.

- Até quando?

- Até um dia.

- Que dia?

- Sábado de Aleluia, por exemplo.

- Falemos sério - disse Jorge.

- Sério? Dia de São Nunca.

Jorge franziu a testa.

- Que quer isso dizer? Retira a sua palavra? Em todo o caso, tenho o direito de saber o motivo, porque algum motivo há de haver...

Iaiá tinha-se levantado, pegou-lhe na mão e levou-o até à janela. O transtorno das feições era visível; os olhos luziam de impaciência, enquanto a palavra parecia medrosa e recalcitrante. Pasmado do que via, e curioso do que ela lhe iria dizer, Jorge não pensou sequer em a aquietar; se lhe pegou nas mãos foi por um movimento instintivo; mas quando as sentiu geladas e trêmulas ficou aterrado.

- Que tem, Iaiá? Você padece; vamos, fale, diga-me tudo. Já me não ama?

- Se o não amo! - disse vivamente a moça deitando os olhos ao céu, como a tomá-lo por testemunha da sinceridade de seu coração; mas logo depois arrependeu-se e continuou de um modo compassado e frio -. Amei-o; não importa saber se muito ou pouco, mas amei-o. O senhor foi a primeira pessoa que me fez bater o coração de um modo diferente do que ele batia; foi a primeira pessoa que me disse palavras novas, que me fizeram bem...

Jorge lançou-lhe o braço à cintura e conchegou-a ao coração.

- Pois sim - disse ele -; eu repetirei essas palavras em todo o resto da nossa vida. Seja boa, e sobretudo seja franca. Para que há de negar o que se está vendo? Eu sei que ainda me ama...

- Eu? - disse a moça deslaçando-se-lhe dos braços -. Eu tenho-lhe horror.

Jorge sorriu.

-Horror, por quê? - disse ele.

Mas o gesto da moça veio apagar-lhe o sorriso começado. Iaiá levara as mãos ao seio, como se quisera conter os ímpetos do coração; os olhos luziam-lhe de extraordinário fulgor. Ofegante, por alguns minutos, não pôde articular uma só palavra; quando chegou a falar disse simplesmente:

- Que razão há agora para que nos casemos? - E depois de uma pausa: - Tenho ciúmes do passado, e o senhor amou já uma vez. Assim como eu ia entregar-me ao senhor, com o coração limpo de qualquer outro afeto, assim quisera que o senhor nunca houvesse amado a ninguém. Que é o seu coração para mim? Um sobejo de outra; talvez nem isso; esse mesmo resto não me pertence, não é meu; fiquemos neste ponto, e tome cada um de nós a sua liberdade.

Iaiá recusou outra explicação, aliás desnecessária; a linguagem era transparente. Jorge saiu dali com o espírito transtornado e confuso. O motivo da recusa, para ser sincero, era pueril ou romanesco demais; nenhuma noiva teve ciúmes de um amor anônimo e extinto; logo, a alusão de Iaiá não era vaga e sem objeto, mas ia direito à pessoa de Estela. Seria isso? Jorge não queria crer e mal podia duvidar.

No dia seguinte, acabado o almoço, apareceu-lhe o pai de Estela.

- Iaiá manda-lhe isto - disse ele sacando da algibeira uma carta.

Jorge recebeu-a pressurosamente e abriu-a; leu estas palavras únicas: "Não posso ser sua mulher; esqueça-me e seja feliz." Empalideceu; tornou a ler a carta, sem a entender, posto que ela não fosse mais do que a fórmula escrita e seca do que Iaiá lhe dissera na véspera. Mas entre as queixas e efusões de uma hora de desânimo e aquela intimação, havia um abismo; a carta trazia o cunho da resolução definitiva, que ele não achara ou não quisera achar nas declarações verbais da moça.

- Iaiá deu-lhe isto agora mesmo?

- Antes do almoço - respondeu o Sr. Antunes, cujo olhar forcejava por soletrar no rosto de Jorge algumas linhas do drama que supunha haver lá dentro.

- Não lhe parece que Iaiá anda triste? - perguntou Jorge no fim de um minuto.

- A morte do pai prostrou-a muito.

Jorge foi dali ao gabinete; o Sr. Antunes acompanhou-o. A preocupação do moço era uma chuva benéfica às esperanças do pai de Estela, que todas pareciam reflorir. Como este falasse da filha com a prolixidade astuta do pretendente, Jorge atentou numa ideia, que a princípio lhe pareceu absurda, mas com a qual se familiarizou a pouco e pouco; mordeu-lhe o coração a suspeita de que o procedimento de Iaiá era uma desforra de Estela, uma como vingança póstuma. O inexplicável da carta podia justificar até certo ponto essa suspeita sem fundamento nem verossimilhança, que afinal acabou por não achar nenhuma repulsa na consciência dele.

Duas horas depois Jorge escrevia estas poucas palavras à viúva de Luís Garcia: "Iaiá mandou-me há pouco o incluso bilhete. Peço-lhe o favor de uma explicação."

A carta de Iaiá fora escrita naquela manhã, depois de uma noite de agitação e luta. Nem foi a única. Iaiá escrevera outra, menos lacônica, a Procópio Dias. Morto o pai, esse homem fora ali três vezes, sem trocar com a moça um só palavra relativa à estranha confidência que lhe fizera antes. Eram visitas de meia hora, não mais; durante esse curto lapso de tempo, Procópio Dias não discrepava um instante da gravidade um pouco triste que adotara. Não era o folgazão primitivo, mas também não era um poeta desesperado e pálido; ficava a igual distância de um e outro modelo. Os acontecimentos pareciam aconselhar-lhe uma discreta ausência; mas, além de não ter melindres nem escrúpulos, floria-lhe no peito a esperança, a esperança tenaz dos cobiçosos. Não a sussurrava ao ouvido da moça, nem a ostentava nos olhos, na compostura, nos meneios, todos eles impregnados da submissão de uma alma desenganada e passiva. Iaiá tratava-o com bondade, já agora mais constante; posto não lhe passasse pela cabeça a ideia de vir a desposá-lo, não lhe destoava o aspecto dessa paixão resignada e muda.

Depois de soltar a palavra decisiva, Iaiá entendeu que lhe devia dar a forma última, desligando-se da solene promessa. Não o fez sem muita lágrima solitária. A pobre criança amava o filho de Valéria com a singeleza de um coração quase adolescente, e só então mediu todo o império que ele adquirira sobre ela. Mas duas circunstâncias a induziam ao desfecho; era a primeira a revelação de Procópio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, naquela noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pai, ali foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe metera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabelo em ondas amplas sobre a espádua, com a desordem da pecadora evangélica. Iaiá não a viu sem que os olhos se umedecessem.

- Que se casem! - disse a moça resolutamente.

Desligando-se da promessa feita, Iaiá refletiu que ia ficar só, e que precisava forçosamente de um amparo; foi então que lhe lembrou Procópio Dias. Não encarou a ideia sem repugnância; aceitável na palestra, Procópio Dias era-lhe antipático para a convivência conjugal. Não o podia amar, e, uma vez resoluta a aceitá-lo, começou logo de o aborrecer. Que muito? Era um marido; não exigia outro mérito. A carta que lhe escreveu não saiu de um jato, foi trabalhada e repisada; o texto definitivo dizia que fosse ali sem demora para lhe falar de objeto que interessava à felicidade de ambos. Isto, e nada mais que uma lágrima, que lhe resvalou dos cílios no papel como um protesto contra o que ia nele escrito.

Raimundo, chamado para levar essa carta, recebeu-a depois de alguma hesitação. Olhou para o papel e para a sinhá moça. Depois sacudiu a cabeça com um ar de dúvida. Iaiá simulou não ver nada, mas o gesto do preto impressionou-a. Ia afastar-se, Raimundo reteve-a dizendo:

- Iaiá me desculpe... esta carta... Raimundo não gosta de falar àquele homem.

- Não lhe fales; basta deixar a carta em casa dele.

Raimundo não insistiu; acompanhou com os olhos a filha de seu antigo senhor, abanando a cabeça com o mesmo ar de alguns momentos antes. Depois olhou para a carta, como se quisesse adivinhar o que ia dentro. Não era só pressentimento, mas também dedução do que ele via naquelas últimas semanas. Tinham-lhe dado notícia do casamento; falara-se nisso todos os dias antes da morte de Luís Garcia. Morto este, cessou toda a alusão ao projeto, que parecia dever executar-se dentro de pouco tempo. O coração do preto dizia que aquela carta era alguma cousa mais do que um recado sem consequência. Quis levá-la a Estela; mas rejeitou o expediente, por lhe parecer infidelidade. Dez minutos depois saiu em direção à casa de Procópio Dias.

Entretanto, chegavam às mãos de Estela o bilhete de Jorge e o de Iaiá. A viúva não podia crer o que lera. A carta da enteada era um ato de insubordinação, inexplicável na essência e na forma; e, se essa carta a fez pasmar, a de Jorge fê-la gemer. O noivo desenganado recorria à intervenção de Estela. A primeira amada desse homem era agora a sua confidente, a quem ele escrevia sem saudade, sem remorso, talvez sem hesitação.

- Sogra! - concluiu Estela com amargura; e erguendo os olhos do papel para o espelho, que pendia da parede fronteira, contemplou caladamente as suas graças ainda em flor. Iaiá entrou nessa ocasião. A madrasta chamou-a ao pé de si, e, mostrando-lhe o bilhete que escrevera ao noivo, perguntou-lhe o que queria dizer aquilo. A enteada ficou silenciosa durante alguns segundos; mas a resolução deu-lhe força e tranquilidade.

- Quer dizer o que aí está escrito - respondeu ela -; não posso casar com o Dr. Jorge.

- Por quê?

- Não posso.

- Por quê? - repetiu Estela com autoridade.

- Amo a outra pessoa.

- Não creio; tem decerto outro motivo.

- Que motivo?

- Nenhum que seja sensato - acudiu a madrasta -, mas algum há de haver, que não seja esse. O passo que deu é grave; não é próprio de uma moça obediente; chega a ser contrário à cortesia. Não importa; tudo se pode explicar; explique-me esta carta.

Iaiá não obedeceu à intimação da madrasta, e, para tirar à recusa qualquer aparência ofensiva, conservou um ar de modéstia e resignação. Estela não se deu por vencida; demonstrou-lhe que só um motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e que era forçoso dizê-lo ao noivo; lembrou-lhe finalmente a estima que sempre houvera entre Jorge e o pai. Neste ponto Iaiá estremeceu e fitou na madrasta uns olhos que não eram os de pouco antes. Parecia-lhe sacrilégio evocar o nome do pai. Não se pôde ter; deu um passo e interrompeu-a com sequidão:

- Não posso casar, porque a senhora gosta dele.

Estela, que já então estava sentada, ergueu-se de golpe ao ouvir esta súbita e inesperada explicação. A face pálida, que o traje de viúva ainda mais empalidecia, tingiu-se de um longes de vermelho. Podia ser confusão ou indignação. Durante uma pausa relativamente longa, Iaiá não tirou os olhos da madrasta. Essas duas lâmpadas buscavam examinar-lhe, no momento supremo, todos os recantos da consciência e todos os atalhos do passado. Não disse nada, para melhor gozar do abalo que acabava de produzir em Estela; era o juro do sacrifício. Mas Estela sentou-se daí a pouco, e foi a primeira que rompeu o silêncio.

- Tu estás maluca - disse ela tranquilamente -. Quem te meteu semelhante ideia na cabeça?

- Não examinemos agora quem foi ou o que foi que me fez adivinhar a verdade - respondeu Iaiá -; basta saber que decidi romper o casamento, que o mandei dizer ao Dr. Jorge, e que talvez dentro de poucos dias outra pessoa lhe pedirá minha mão.

Estas palavras transtornaram de todo a viúva, que, atônita e irritada, deu alguns passos na sala, buscando conter a explosão de seus sentimentos. Iaiá foi ter com ela, falou-lhe com brandura e submissão.

- Não se zangue, mamãezinha, se lhe não disse antes o que fiz agora mesmo; estava certa de que aprovaria, ou me perdoaria, quando menos. O homem de que lhe falo ama-me, e a senhora mesma não rejeitou a ideia de me ver casada com ele.

- Não tens culpa da imprudência que cometeste - disse Estela -; porque antes disso tinhas perdido a razão. Vem cá; disseste-me aí uma palavra absurda, e é preciso que me digas outra com que expliques a primeira. Porque eu gosto dele? - continuou depois de alguns instantes -. Que quer dizer com isso?

Iaiá curvou a cabeça.

- Fala!

- Não direi nada; essa palavra explica tudo. Se gosta como eu creio, é a sua felicidade que lhe trago, não digo a troco da minha, porque seria lançar-lhe em rosto o sacrifício, mas a troco de uma ilusão, e nada mais. Não pense que lhe quero mal; não posso querer mal a quem me tem ou teve alguma afeição e substituiu dignamente minha mãe. Se lhe quisesse mal, é provável que não fizesse o que fiz.

Enquanto falava a enteada, Estela tinha a fronte inclinada e pensativa; atitude em que se conservou ainda durante algum tempo.

- Bem vê que acertei - disse Iaiá -; seu silêncio confirma a minha suposição.

- Eu! - exclamou Estela estremecendo -. Tu não entendes nada dos sentimentos, não conheces o coração. Eu amá-lo? Eu? Não! Não é possível!

- Talvez não, mas o que está feito, está feito.

A madrasta quis retê-la, mas não pôde; Iaiá saiu sem dizer nada. Estela ficou atordoada, confusa e até medrosa; reboavam-lhe aos ouvidos as palavras de Iaiá, não como um som exterior, mas como o brado da própria consciência. Venceu o abatimento, reagiu depressa como lho pediam as circunstâncias e a própria necessidade de sua natureza. Não teve tempo de cogitar no modo por que a enteada chegara a suspeitar um sentimento que ela recalcara no coração. Urgia reparar o mal feito pela imprudência da moça. Estela dispôs-se a responder desde logo à carta de Jorge, e não sabia ainda claramente o que lhe havia de dizer. Tratou primeiro de chamar Raimundo, e vendo que ele não acudia foi ter com Iaiá.

- Raimundo foi levar uma carta minha ao Procópio Dias - respondeu esta.

Estela caiu numa cadeira. Pela primeira vez, alumiou-lhe o espírito uma ideia cruel: a ideia de que a suspeita de Iaiá fosse mais do que uma simples e inocente conjectura. Os olhos que lançou à moça ardiam de indignação. Cobriu-os depressa, não para chorar, mas para fugir aos da outra. O olhar de Estela fez vacilar por um instante a convicção da enteada; a cólera pareceu-lhe sincera e até excessiva, mas o gesto que se lhe seguiu atenuou e desvaneceu a primeira impressão. Iaiá supôs ver na atitude da madrasta uma confissão involuntária, uma expressão de abatimento e desespero, como de pessoa que entrevê a felicidade própria e julga dever sacrificá-la à de outrem. Era generosa. Caminhou para ela, dobrou as curvas, pousou-lhe no regaço os braços, trêmulos de comoção; com as mãos desviou as de Estela e fitou-lhe os olhos, que estavam sombrios.

- Fui estouvada, confesso - disse ela -; devia tê-la consultado antes de fazer o que fiz. Mas eu temia a sua oposição, e não queria torná-la desgraçada. Sou mais moça que a senhora; se tivesse de consolar-me, consolava-me depressa. Mas não tenho; não amava; cedi a um capricho, e não sinto a menor dor ao despedir-me dele. Ande, perdoe-me; e esteja certa de que não a amarei menos do que até agora.

Ergueu-se e procurou beijá-la. A madrasta recuou instintivamente a cabeça; era um resto de repugnância, que a fisionomia ingênua e pura de Iaiá para logo dissipou. Em tão verdes anos, sem nenhum trato social, era lícito supor na menina tamanha dissimulação? Estela concluiu que a ação da enteada vinha, não de uma suposição ultrajante, mas de um impulso desinteressado. Qualquer que fosse o fundamento da suspeita, o procedimento da enteada trazia o cunho da candura e da boa-fé; assim pensando, Estela sentiu desoprimir-se-lhe a alma. Não era generosa - ou tinha somente a generosidade fria e altiva, que nasce da soberba. Mas não era insensível, e o desinteresse da menina tocou-lhe profundamente o coração. Inclinou-se para ela, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e fitou-a, com um olhar severo e maternal ao mesmo tempo.

- Perdoo-te - disse finalmente -, porque não sabes o que fizeste. A intenção é que te salva do meu ódio; digo mal, do meu desprezo. Se queres medir bem a profundidade do abismo que acabas de cavar, fica sabendo que me injuriaste, pensando servir-me, e que o resultado do teu erro pode talvez arrancar-te lágrimas amargas e inúteis. Teu castigo será que só eu as enxugarei; ouves bem? Só eu.

Dizendo isto, soltou a cabeça da enteada com um gesto ríspido, em que havia ainda um pouco de irritação. Iaiá estava pálida. Sentiu na palavra seca e fria da madrasta um alento de indignação sincera; e a alma caiu-lhe prostrada, mais ainda do que o corpo, que, não podendo suster-se, procurou amparar-se no móvel que achou mais próximo. A dúvida, que já antes atravessara o espírito da moça, começou a invadi-lo. Iaiá fitou Estela com o mais agudo de seus olhares, acompanhou-a de um lado para outro, porque a madrasta, logo depois das palavras que lhe disse, entrara a andar e a refletir. Se a viúva era sincera, Iaiá acabava de fazer gratuitamente a sua própria desgraça; foi o que a moça pensou. No atordoamento moral em que esta hipótese a lançou, Iaiá achou-se entre dous desejos, mal definidos, mas inteiramente opostos um ao outro. Quisera e não quisera ter-se enganado; aspirava a conciliar o coração e a consciência. Seu espírito evocou a hora inicial da suspeita - aquela funesta manhã em que a carta de Jorge foi lida por Estela; recordou o gesto da madrasta, o tremor, a lividez, os vivos sintomas da consternação, do medo ou do remorso. Seria engano aquilo? Não era evidente que eles se haviam amado, que se amavam ainda naquela ocasião? E, dada a afirmativa, era acaso impossível que Estela, ao menos, o amasse ainda hoje?

Iaiá ateve-se a esta conclusão, embora confirmasse a ruína de suas esperanças; a conclusão, porém, contrastava com a impassibilidade da madrasta. Já então perdera Estela o alvoroço do primeiro momento. Depois de alguns minutos de reflexão, parara em frente da enteada. Era difícil ver na atitude quieta, no aspecto de matrona severa e digna, alguma cousa que se parecesse com as ânsias, o triunfo ou o abatimento de uma rival. Iaiá deixou-se estar diante dela, a fitá-la e a revolvê-la. A porção da alma que transparecia do rosto da viúva era tão fria, tão indiferente, que mal se podia combinar com o sentimento que Iaiá lhe atribuía. Foi o que esta pensou ver com seus olhos finamente sagazes; e no meio desse contraste entre o aspecto presente e a revelação passada, Iaiá acabou por não saber definitivamente onde ficava a verdade, e esteve a ponto de lha pedir de joelhos.

Achavam-se então no gabinete de Luís Garcia, defronte da secretária, onde o finado encontrara, com outros papéis, a carta que dera lugar às conjecturas de Iaiá. Não havia mudança nem no número nem na disposição dos móveis. Só a luz era diferente, porque a daquele dia era viva e clara, coada através de uma atmosfera serena, como a vida anterior dessa família, ao passo que a de hoje vinha turva e meio apagada pelas nuvens de um céu chuvoso e triste. Na longa pausa que houve entre a madrasta e a enteada, os únicos sons que se ouviam eram o rufar da chuva na folhagem do jardim e o tic-tac de um relógio de parede.

- Escuta - disse finalmente Estela -; se alguma razão tens para crer que amo esse homem, é necessário mostrar-te a realidade das cousas.

Estela abriu duas ou três gavetinhas da secretária, e depois de alguma busca entre os maços de cartas que aí encontrou, tirou uma, abriu-a e deu-a à enteada. Iaiá recebeu-a com as mãos trêmulas de curiosidade; leu-a toda; devia ser a mesma que o pai mostrara à madrasta.

- Essa moça era a senhora? - murmurou ela como se ainda esperasse resposta negativa.

- Era eu.

Iaiá deixou-se cair numa cadeira rasa, a mesma em que Estela estivera sentada, quando ouviu a confidência do marido.

- Vês? - disse Estela -; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir para a guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não há nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida, afronta a vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa paixão violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre duas xícaras de chá...

- A senhora não o amou nunca? - interrompeu Iaiá, ao sentir o tremor e o despeito com que a madrasta proferira as últimas palavras.

- Havia entre nós um fosso largo, muito largo - disse Estela -. Eu era humilde e obscura, ele, distinto e considerado; diferença que podia desaparecer, se a natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda a distância que nos separava e tratei simplesmente de evitá-lo. Foi então que ele embarcou; interiormente aprovei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento, entre nós, era impossível, ainda que todos trabalhassem para ele; era impossível, sim, porque o consideraria uma espécie de favor e eu tenho um grande respeito a minha própria condição. Meu pai já me achava, em pequena, uns arremessos de orgulho. Como querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um homem socialmente superior a mim? Era preciso dar-me outra índole. Todas as felicidades do casamento, achei-as ao pé de teu pai. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso acertada. Não tínhamos ilusões; pudemos ser felizes sem desencanto. Teu pai não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais tímido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns anos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem necessidade da dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir, desde que aquele homem aqui apareceu; era necessário. Um dia teu pai mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta que aí se conta; podes imaginar se ouvi tranquila. Mas fora desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi nenhuma porta abrir-se-me por obséquio, nenhuma mão apertou a minha por simples condescendência. Não conheci a polidez humilhante, nem a afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto à natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ela? Donde veio? Ninguém me perguntou donde vinha, não é verdade? Perguntaste-me quem era eu? Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha. E para isso bastou-nos estender os braços; não foi preciso descer nem subir.

- Não foi - bradou Iaiá comovida, apertando-lhe as mãos.

- Já vês quem eu era e sou; uma espécie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisonjeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois aí tens a minha história, a história dessa carta, que já agora podemos rasgar...

Estela pegou na carta e rasgou-a lentamente, em pedaços miúdos, enquanto a enteada refletia nas revelações que acabava de ouvir. A madrasta deitou os fragmentos do papel à cesta.

- Resta concertar a imprudência e casar - disse Estela dando à palavra um tom galhofeiro.

- Não sei! - murmurou Iaiá -. O que a senhora me disse é grave; não há sentimentos eternos. Parece que depois de tamanha paixão, qualquer outro afeto não terá longa vida.

- Por que não? Não hás de querer agora uma paixão que o leve à guerra; seria um desastre. Mas está nas tuas mãos fazer que ele te ame, sempre e muito.

Iaiá refletiu um instante.

- Jure-me que o não ama!

Estela franziu o sobrolho; depois mostrou-lhe o bilhete que Jorge lhe escrevera pouco antes, e cuja redação dissiparia à moça qualquer dúvida em relação ao noivo. Era uma evasiva para lhe não confessar nem mentir. A primeira vez que lhe negara o amor foi antes um grito do coração que queria enganar-se a si próprio; agora preferia calar-se. A certeza da isenção de Jorge importava muito mais que a de Estela; a alma de Iaiá, no primeiro instante, respirou à larga. O respeito que tinha à madrasta, e um pouco de ciúme retrospectivo que a mordia, ao pensar naquela paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam à moça qualquer outra manifestação. Quando se achou a sós consigo, levava o espírito arejado da suspeita que o oprimira durante largos meses; mas o vento que o lavou das sombras, lá lhe queimou algumas das flores desabotoadas ao calor do primeiro sol. A felicidade tinha um travo de desgosto e humilhação; o coração tremia de medo.

Quando mais absorta estava nesse contraste de sensações, viu Raimundo transpor a porta do jardim.

XVII

Iaiá foi ter com Raimundo.

- Entregaste?

- Não entreguei - disse o preto.

Iaiá ficou alguns instantes imóvel. Raimundo tirou a carta do bolso, e esteve com ela nas mãos, sem atrever-se a levantar os olhos; levantou-os enfim e disse resolutamente:

- Raimundo não achou bonito que Iaiá escrevesse àquele homem, que não é seu pai nem seu noivo, e voltou para falar a nhanhã Estela.

- Dê cá - disse a moça secamente -; não é preciso.

Raimundo entregou-lhe a carta, e sacudiu a cabeça encanecida, como se quisera repelir os anos que sobre ela pesavam, e retroceder ao tempo em que Iaiá era uma simples criança, travessa e nada mais. Tinha-lhe custado a resolução; três vezes investira a porta de Procópio Dias para obedecer à filha do seu antigo senhor, e três vezes recuara, até que venceu nele o pressentimento - uma cousa que lhe martelava no coração, dizia ele daí a pouco a Estela, quando lhe referiu tudo.

Estela não se deteve mais. Na carta, que escreveu a Jorge, disse que a enteada era apenas uma menina romanesca, desconfiada e curiosa; queria desfazer o casamento, porque supunha não ser amada com ardor igual ao seu. "Iaiá adora-o", concluiu Estela, "e não se sente adorada. Venha prostrar-se ao pé do altar, e terá em mim a mais piedosa sacristã."

Iaiá teve notícia da carta, e já tarde para opor qualquer objeção. O primeiro impulso foi agradecer a pia fraude da madrasta; mas a alma, picada por um resto de ciúme, depressa conteve o impulso, e a única resposta da moça foi um gesto de acanhamento e um silêncio largo. Ouviu-a depois sem azedume nem impaciência, atenta à menor hesitação que lhe truncasse a palavra, ou à mínima sombra de desgosto que lhe velasse os olhos. A verdade é que a ternura da madrasta e a jovialidade recente de seus modos traziam certa nota desusada e violenta, e esse excesso fazia refletir a enteada.

Entretanto, a carta de Estela chegou às mãos de Jorge, que a leu duas vezes para conseguir entender-lhe o sentido. A explicação tinha o defeito de ser um pouco subtil; mas a alma de Jorge conservava sempre uma porta aberta aos sentimentos extraordinários. Demais, qualquer explicação favorável era um benefício, e aquela tinha a vantagem de afagar o amor-próprio, além de vir ajustada com o espírito inquieto e súbito da noiva. Leu a carta sem cotejar o texto com a assinatura, sem atentar naquela sacristã em cujos ombros quisera outrora atar a veste sacerdotal.

Nessa mesma noite foi à casa da noiva, que o recebeu sem contentamento nem mortificação, um pouco lacônica e meditativa. Nem um nem outro aludiu aos sucessos últimos; fê-lo Estela com muita pertinência e tato. Não obstante, como a explicação da viúva não correspondia exatamente à realidade das cousas, a situação ficou ainda obscura e vaga, e porventura exagerou o acanhamento recíproco. A persuasão de que Iaiá exigia da parte dele maior intensidade de sentimento não inclinara o espírito de Jorge a nenhuma ostentação teatral, mas acabou por lhe infundir deveras maior ternura, e aumentou a vitalidade de um sentimento, que é a forma desinteressada do egoísmo - a felicidade de fazer outrem feliz.

- Marquemos o casamento para esta semana - disse Estela na noite de um domingo.

- Ainda não - respondeu a enteada.

Posto visse dissipada a tempestade que lhe negrejara sobre a cabeça, Iaiá enxergava ainda para o lado poente um espectro, e para e lado do nascente, uma possibilidade. Esses dous pontos negros vinham estragar a beleza azul do céu e torná-lo pesado e melancólico. O mistério do futuro unia-se ao mistério do passado; um e outro podiam devorar o presente, e ela receava ser esmagada entre ambos. A convivência da família aterrava-a. Que seria para ela o casamento, se tivesse de penetrar nele com a perpétua ameaça diante dos olhos, uma antiga semente de amor, que a primeira brisa da primavera podia fazer brotar e crescer de novo? Acreditava na isenção presente da madrasta, e na inteira cura do marido, mas o futuro? A beleza de Estela estava ainda longe do declínio, e a modéstia de Iaiá fazia-a persuadir de que, ainda no declínio, seria superior à sua.

Uma noite, entrou o Sr. Antunes e deu uma carta à filha, que a leu silenciosamente.

- Olha - disse ela apresentando a carta à enteada.

Iaiá leu-a; eram duas páginas escritas de alto a baixo, e por letra desconhecida. Uma antiga condiscípula de Estela, residente no norte de São Paulo, aceitava a proposta que esta lhe fizera, de ir dirigir-lhe o estabelecimento de educação que ali fundara desde alguns meses.

- Bem vês que é necessário casar-te quanto antes - disse Estela logo que a enteada acabou a leitura.

Iaiá sentiu os olhos úmidos e atirou-se aos braços da madrasta. A efusão era sincera; havia ali afeto, reconhecimento e admiração. Mas, por isso mesmo que era sincera, deveria molestar a madrasta, se alguma cousa pudesse já molestá-la. Estela sorriu - um sorriso que queria dizer: "Bem sei que sou demais". A língua, porém, não proferiu uma palavra única.

- Que quer dizer isso? - perguntou o pai de Estela, que nada sabia da carta, e consequentemente nada entendia daquela expansão da moça.

Estela mostrou-lhe a carta. O pai não pôde acabar de ler: a primeira página fizera-lhe compreender tudo. Seus olhos iam do papel à filha e da filha ao papel, sem que a boca se atrevesse a formular nenhuma queixa ou censura.

- Não digo que me obedeças - murmurou ele -; mas parece que podias consultar-me...

- Eu estava certa da sua aprovação - respondeu Estela -. Ou parece-lhe que fiz mal?

- Nunca fizeste bem em cousa nenhuma - disse tristemente o pai. E pegando-lhe nas mãos: - Tão moça! Tão bonita!

O dia do casamento foi definitivamente marcado naquela noite. Como Estela declarasse que ela própria serviria de madrinha, Iaiá procurou dissuadi-la cautelosamente; também ao noivo repugnou a intervenção espiritual da viúva. Mas Estela não se deu por entendida. O papel de acólita, que a si mesma distribuíra, tinha-o desempenhado com lealdade e dignidade. Quis ir até o fim. Era o melhor modo de se mostrar isenta e superior. Jorge sentia-se vexado e transportado ao mesmo tempo, ao observar a simplicidade e o desvelo que a viúva punha naquele ato. Iaiá sentia só admiração e gratidão. Tinha já certeza de que o passado era pouca cousa, e de que o futuro seria cousa nenhuma. O casamento ia separá-las, reconciliando-as.

Casados os dous, Estela preparou-se para seguir viagem, não obstante a resistência do pai, que foi tenaz e hábil. O pai ficaria. Estava já tão cansado para viagens longas! A diferença do clima, a falta de relações, a necessidade de não abrir mão do emprego eram motivos de grave peso para não arriscar-se a deixar o Rio.

- Ao menos, prometes vir ver-me de quando em quando? - disse o Sr. Antunes sentindo tremer-lhe nos olhos uma lágrima sincera.

Estela respondeu que sim; depois pediu-lhe que aceitasse uma mesada. O pai recusou comovido.

- Tu vales muito - exclamou ele.

O tom com que proferiu estas palavras deu uma esperança à filha.

- O senhor pode valer ainda mais do que eu - disse ela.

Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo o episódio da Tijuca, causa originária dos acontecimentos narrados neste livro; mostrou-lhe com calor, com eloquência, que, recusando ceder à paixão de Jorge, sacrificara algumas vantagens ao seu próprio decoro; sacrifício tanto mais digno de respeito, quanto que ela amava naquele tempo o filho de Valéria. Que pedia agora ao pai? Pouca e muita cousa; pedia que a acompanhasse, que cessasse a vida de dependência e servilidade em que vivera até ali; era um modo de a respeitar e respeitar-se. O pai escutava-a atônito.

- Tu chegaste a amá-lo! - exclamou ele -. Não o aborrecias? Amaram-se? E só agora sei... Bem digo eu; tu és uma fera. Não tens, nunca tiveste pena de minha velhice... Ele é tão bom! Tão digno! E se morresse por tua causa? Não terias remorsos? Não te havia doer o coração quando soubesses que um moço tão bem-nascido, que gostava de ti... Sim, ele gostava muito de ti; e tu também... e só hoje!

Estela fechou os olhos para não ver o pai. Nem esse amparo lhe ficava na solidão. Compreendeu que devia contar só consigo, e encarou serenamente o futuro. Partiu; o pai despediu-se dela com o desespero no coração - e desta vez a dor era desinteressada e pura. Jorge consolou-o depressa. Não houve interrupção na convivência, e o Sr. Antunes continuou a achar ali a mesma proteção e cordialidade. Se o casamento fora um atentado, ele os absolveu disso, e repartiu com ambos infinita solicitude. Outra vez comensal assíduo, tornou a ser o homem de confiança. Fora dali, as horas de lazer que lhe deixava o pouco trabalho eram empregadas nas sessões do júri, nas galerias da Câmara dos Deputados ou nos bancos do Carceller. Não tendo já a aspiração de uma aliança vantajosa, adotou a devoção da loteria. Era ele quem dava, secretamente, notícias de Estela a Iaiá.

Esta achou no casamento a felicidade sem contraste. A sociedade não lhe negou carinhos e respeitos. Se antes de casar, Iaiá possuía o abecedário da elegância, depressa aprendeu a prosódia e a sintaxe; afez-se a todos os requintes da urbanidade, com a presteza de um espírito sagaz e penetrante. Nenhuma nuvem do passado veio sombrear a fronte de um ou de outro; ninguém se interpunha entre eles. Iaiá escrevia algumas vezes a Estela, que lhe respondia regularmente, e no mais puro estilo de família. De longe em longe a enteada presenteava a madrasta, que lhe retribuía logo na primeira ocasião. Quanto a encontrarem-se, era difícil; Estela aplicava todos os seus cuidados à nova ocupação.

Procópio Dias viu a morte de todas as esperanças últimas, com uma filosofia que não supunha ter em si. Naturalmente padeceu alguns dias de despeito; mas o despeito acabou com o amor. Verdade é que o ambiciado casamento abriu nele o desejo de não morrer solteiro; e, perdida uma oportunidade, tratou de haver outras à mão. Ultimamente voltou à religião do celibato. Duas ou três vezes encontrou Iaiá e o marido. A última foi num sarau. Jogou o voltarete com Jorge e acompanhou a mulher até à carruagem, não sem lançar um olhar furtivo ao estribo, onde Iaiá pousou o pé, cansado de valsar.

No primeiro aniversário da morte de Luís Garcia, Iaiá foi com o marido ao cemitério, a fim de depositar na sepultura do pai uma coroa de saudades. Outra coroa havia sido ali posta, com uma fita em que se liam estas palavras: A meu marido. Iaiá beijou com ardor a singela dedicatória, como beijaria a madrasta se ela lhe aparecesse naquele instante. Era sincera a piedade da viúva. Alguma cousa escapa ao naufrágio das ilusões.

FIM

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