Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

XIV

Guiando para casa, Jorge ia agitado e inquieto; recapitulava a conversação que acabava de ter com a filha de Luís Garcia. O acaso propusera-lhe um enigma; o tempo dava-lhe a decifração. Seria a decifração? O espírito do moço recuava, não dava crédito à realidade, pelo menos à realidade aparente; mas esta impunha-se-lhe de quando em quando, e Jorge recompunha todas as circunstâncias daquelas últimas semanas e ainda dos meses anteriores. Que era a esquivança, a rispidez, a hostilidade de Iaiá, senão a máscara de um sentimento contrário, a vingança de um coração atordoado pelo suposto desdém de outro? Esta reflexão vinha tão de molde com os fatos dos últimos tempos, que era difícil achar mais ajustada explicação. Logo depois, considerava que seria absurdo atribuir à moça uma ligeireza e um desgarre inconciliáveis com a prudência que reconhecia nela, a despeito dos assomos de travessura intermitente.

- Impossível! - disse ele sacudindo o ombro.

Mas esse impossível tornava a descer às regiões da probabilidade, até galgar os limites da certeza. A observação lhe mostrava que Iaiá tinha a audácia no sangue, e a razão lhe dizia que um amor sem freio possui todas as imprudências e vertigens; que umas naturezas são estoicas, outras, rebeldes; finalmente, que há situações morais incomportáveis, e que a uma candura de dezessete anos é lícito não distinguir entre o sentimento que fala e a conveniência que restringe. Esta era a interpretação benévola; depois vinha a interpretação pessimista. Podia ser que todos aqueles atrevimentos encobrissem um cálculo - o cálculo da ambição, que intentasse trocar a beleza pelo benefício de uma posição ostensiva e superior. Quando essa suspeita lhe brotou no espírito, Jorge não sentiu diminuir a admiração nem a estima; porquanto, a ambição, se ambição havia, parecia ser de boa raça. Mas era impossível combinar o cálculo com as lágrimas daquela tarde, e ele as sentira quentes, silenciosas, e não podia crer que uma vida quase adolescente possuísse já a arte da hipocrisia.

Não há vida tão física ou tão alheia ao sentimento da personalidade, que em tal situação não padecesse, ao menos, trinta minutos de insônia. A insônia de Jorge durou mais algum tempo. De envolta com as conjecturas havia um pouco de satisfação pessoal. A certeza ou a probabilidade de que, sem nenhuma ação própria, iniciara nos mistérios do amor uma alma ainda nova e ingênua, dava ao coração dele alguma cousa da volúpia do egoísmo; sensação que, aliás, diminuiu quando lhe ocorreu que talvez esse amor obscuro lhe houvesse já custado lágrimas e desesperos. Ele tinha razão quando dizia não ser espírito vulgar. Afrouxara-se-lhe o ardor dos primeiros tempos, a imaginação tinha o voo mais curto; mas a generosidade juvenil ficara intacta, e com ela, a faculdade de ressentir as dores alheias.

"Pobre menina!" - dizia consigo.

No dia seguinte, Jorge examinou detidamente se lhe convinha tornar à casa de Luís Garcia, ao menos com a assiduidade do costume. A situação moral de Iaiá tendia a agravar-se com a presença contínua dele; em tais casos, a ausência era um ato de critério e até de misericórdia. Misericórdia foi o que ele disse consigo, e sorriu logo depois, com um sorriso de modéstia envergonhada. A verdade é que Jorge ansiava por lá voltar; tinha curiosidade de contemplar a sua obra, agora que a descobria ou presumia havê-la descoberto; se não é que a noite lhe trouxera uma sombra de dúvida, e ele queria verificar definitivamente a realidade.

De noite foi. Luís Garcia estava um pouso ansiado e abatido.

- Venha, doutor! - disse ele quando viu entrar o filho de Valéria -; este coração é o meu importuno.

A mulher procurava animá-lo; a filha tinha o terror nos olhos. Jorge auxiliou a família no trabalho de o confortar; três quartos de hora depois a moléstia cedia, e tornava ao trabalho surdo da destruição. Luís Garcia era outro, logo que passava uma dessas crises; tornava-se gárrulo e risonho, com o fim de reanimar ele próprio a família, e comunicar-lhe a esperança que lhe começava a faltar. Jorge não se deixou contaminar da ilusão; recordou a sentença do médico e sentiu a próxima extinção daquele homem. Iaiá não conhecia a sentença do médico; mas o espetáculo da aflição do pai tinha-a prostrado muito. Aparentemente não se lembrava da entrevista da véspera; podia até supor-se que, de quando em quando, não se lembrava da presença de Jorge.

Jorge achou-a nos subsequentes dias, tal qual era nos outros, menos travessa, porém, e muito mais senhora. Ao cabo de uma semana, trazia todos os elementos de convicção: "Ama-me!", pensava ele ao sair dali uma noite. A convicção, por mais que a suspeita o houvesse prevenido, atordoou o espírito de Jorge, que nessa mesma noite resolveu não voltar lá; resolução varonil, que durou quarenta e oito horas.

Alguns dias, três semanas, decorreram assim na mais aprazível familiaridade. Jorge, se não obtivera o título, exercia realmente as funções de irmão mais velho; era um guia, um conselheiro, uma autoridade. Escutava-a com interesse; recebia a confidência dos sentimentos da moça e as ambições de um coração cuja sede parecia contentar-se da água que pudesse conter a própria mão, no primeiro arroio do caminho. Ao mesmo tempo, buscava temperar-lhe o romanesco com uma forte dose de realidade.

Durante esse tempo, nenhuma frase igual às daquela tarde veio sacudir o espírito de Jorge; nenhuma lágrima lhe caiu nas mãos. Mas, se a palavra não vinha, a voz era insinuante e comovida, às vezes; se os olhos não choravam, luziam ou quebravam-se de um modo pouco comum. Jorge fingia não compreender; mais do que isso, forcejou por se persuadir a si próprio que não compreendia: resultado útil, que lhe dava a vantagem de saborear em silêncio o gozo de se saber amado, sem perder o de contemplar uma natureza original, moralmente exuberante e forte, que, além de tudo, tinha para ele a fascinação do mistério.

No fim daquelas três semanas encontraram-se em casa da paralítica. Não houve acordo, mas nada foi casual.

- Vou amanhã à casa de Maria das Dores - disse Iaiá uma noite, prestes a despedir-se dele.

E no outro dia de tarde, Jorge, que havia rareado os passeios daqueles últimos tempos, acertou de caminhar para ali, e com tão boa fortuna, que achou a moça sentada no mesmo banco de pedra em que lhe falara da primeira vez.

Outra vez, quando Iaiá ali voltou, já encontrou Jorge, ao pé da enferma. Maria das Dores estava ainda mais contente com a honra da visita do que com a esmola que ele dissimuladamente lhe levara envolvida em um lenço de ramagens. Jorge animava-a, dizia-lhe que ainda iriam à Penha naquele ano. Iaiá parou à porta, espantada e contente.

- Venha - disse a enferma -, ande ver como seu noivo está caçoando com a velha.

- Agradeço-lhe - disse Iaiá -; creia que ela merece todas as consolações.

Na noite desse dia, quando Jorge entrou em casa, um pouco inebriado da entrevista, achou uma carta de Procópio Dias, que o encheu de contentamento. Procópio Dias tinha necessidade de se demorar ainda uns dous meses. Dous meses! Era a eternidade. Jorge sentiu-se confortado com a notícia de tão longa ausência. Que importava a presença, se ela o não amava? Essa reflexão não a fez Jorge, mas a filha de Luís Garcia, quando ele lhe deu a notícia da carta:

- Que tenho eu que ele esteja ausente ou presente? Ele ou um estranho é a mesma cousa.

A eternidade foi um minuto; os dous meses voaram como um tufão. Um dia, no último desses dous meses, Iaiá disse ao filho de Valéria que achara enfim um marido.

- Um marido? - repetiu Jorge empalidecendo.

- Parece que um marido. Não me aprova?

- Se ainda o não conheço.

- Não sei se é um marido - continuou Iaiá depois de um instante -; mas achei o homem a quem amo.

- É a mesma cousa.

- Ou quase.

Houve entre ambos uma longa pausa, durante a qual Iaiá tinha os olhos fitos no moço, enquanto este não tinha os seus em parte nenhuma; vagavam de um ponto a outro. Iaiá repetiu que achara um marido.

- É a segunda vez que me diz isso - redarguiu Jorge com a voz trêmula e irritada -; se o achou, tanto melhor; casará com ele.

- Não me disse uma vez que não me deixasse ir com os primeiros olhos que parecessem responder aos meus? Não me disse que era conveniente escolher um homem...

- O que eu disse foram palavras sem sentido - tornou Jorge -; não se dão conselhos ao coração que ama. O casamento vem talhado do céu, segundo diz o povo; outros dirão que vem do acaso, ou é o destino de cada um, ou é uma loteria. A senhora não me pede certamente que lhe diga o número em que há de sair a sorte grande? Compre o bilhete e deixe correr a roda. Alguns dias de paciência e nada mais...

A excitação de Jorge era extraordinária, mas não foi longa. Alguns instantes de silêncio bastaram a aplacá-la ou diminuí-la; pelo menos o gesto não traiu a agitação interior. Pálido, sim, estava pálido; mas a voz, se não era firme, perdera a aspereza do primeiro instante.

- Refleti depois da nossa conversa - disse ele -, e não desejo tomar nenhuma responsabilidade em um ato de que depende a felicidade de sua vida.

- Então, não me estima, é o que é - disse Iaiá em voz queixosa.

Jorge respondeu com um olhar, e a resposta que ele quisera fosse um simples protesto, transgrediu esse limite: foi um protesto, uma queixa e acaso uma interrogação. Iaiá abaixou os olhos; uma onda de sangue lhe avermelhou a face; Jorge viu-a ofegante e acanhada durante alguns segundos. Não indagou o motivo; ergueu-se para sair. Iaiá reteve-o pela aba do fraque.

- Nega-me então todo o auxílio? - disse ela -. Depois de alguns meses de uma vida em que me acostumei a ouvir seus conselhos, o senhor recusa-me este. Que lhe fiz eu?

- Nada.

Jorge saiu. "Que tenho eu que ela ame, que se case ou não se case? Sou eu seu pai? Seu tutor?" Quando assim falava, sentia dentro de si uma resposta; a consciência desvendava-lhe a realidade. "Sim, tu amas" - dizia-lhe ela, - "tu não fazes outra cousa há dous meses; deixaste-te envolver nos fios invisíveis; não sentiste que essa intimidade de todos os dias era a gota d'água que te cavava o coração. Ah! Tu querias saciar a curiosidade e sair dali sem deixar alguma cousa, sem receber também alguma outra cousa? Não se brinca com um inimigo; e ela o era, e continuará a sê-lo, porque tu estás definitivamente atado."

A esta voz importuna e verdadeira, Jorge erguia os ombros. Tentou refugiar-se no sono. O sono rejeitou-o de si. Então fumou, desceu à chácara, fatigou o corpo para melhor adormecer o espírito; mas a lua que batia no repuxo mostrava-lhe ora um casebre de Santa Teresa, ora uma varanda da Tijuca, como se fossem o verso e o anverso da medalha de seu coração, toda a história da vida que ele vivera até ali. A diferença entre uma e outra dessas duas fases é que presentemente o desengano não o levaria à guerra, nem lhe daria os desesperos do primeiro dia. Não; Jorge levantou-se na manhã seguinte um pouco atordoado, mas não inteiramente abatido. Sentia alguma opressão moral, um desejo de saber quem era o adversário preferido. Merecê-la-ia? Que a merecesse, embora; ele tinha um direito anterior e superior; desde que a amava, excluía todos os outros.

À força de pensar naquilo, chegou a entrever a realidade; perguntou a si mesmo se a declaração da moça não seria antes um estratagema. Podia ser; tinha-a visto corar, inclinar o colo, ficar por algum tempo acanhada e comovida. Essa conjectura desabafou-lhe um pouco o espírito, e, por isso que era a conjectura da esperança, não tardou em transferir-se a evidência. Relembrou todas as ações de Iaiá, suas palavras, as circunstâncias e os termos de reconciliação, as lágrimas sem motivo, a paciência, o interesse, o gosto de o conversar; finalmente, esse quê misterioso que divulga a uma alma a preferência de outra. Quando pouco a pouco lhe penetrou no coração essa ideia, Jorge reconheceu que havia sido precipitado. Queria escrever-lhe e recuou; queria lá voltar, mas resolveu o contrário.

"Se é um estratagema", pensou ele, "ela terá nisto o seu castigo; se verdadeiramente ama a outro, que vou lá fazer agora?"

Pensou isto; pensou mais; só não pensou em Estela.

Iaiá não se pôde conter. Ao cabo de sete dias de ausência determinou ir ao lugar onde mais de uma vez encontrara o filho de Valéria.

- Vai chover - disse Luís Garcia -; guarda a visita para amanhã.

Iaiá teimou na resolução.

- É uma nuvem que passa - disse ela -; em saindo a lua verá como o tempo fica limpo.

Estava inquieta, preocupada, tinha estremecimentos nervosos; não atendeu à segunda observação do pai. O pai dizia-lhe que não havia necessidade de desobedecer para realizar um capricho. Como repetisse a expressão, Iaiá ficou pálida e não ousou responder; mas Estela, que assistia calada aos conselhos de um e à resistência de outro, disse sorrindo à enteada:

- Vá, seu pai deixa-a ir.

Iaiá ia agradecer a intervenção; mas, quando os olhos das duas mulheres se encontraram, detiveram-se por um instante longo. Poucos minutos depois chegava a moça à casa de Maria das Dores. Despediu Raimundo; a porta estava aberta; entrou. Da sala, onde se deteve, ouviu noutra sala interior a voz de Jorge.

- Não se esqueça; há de entregar-lhe isto, quando ela vier; não mande lá à casa; é um livro.

Iaiá entrou.

- Não contava comigo? - disse ela.

- Não; por isso deixava-lho este livro - respondeu Jorge tirando o embrulho à doente e entregando-o à moça -; é um romance, creio que lhe falei nele uma vez.

Iaiá tomou-lhe o livro, abriu-o, folheou-o com sofreguidão, como certa de achar uma página marcada. Estava marcada uma página e a marca era um bilhete. Abriu-o; dizia assim:

A senhora deu-me uma vez um título que eu esperei viesse a ser verdadeiro. Diga se me enganei, se o céu lhe destinou outro noivo, ou se meu coração pode ter ainda uma esperança. Não lhe custará muito; não custa muito uma simples palavra.

Enquanto ela lia rapidamente estas linhas, e tornava-as a ler, Jorge afastou-se até à sala da frente. A carta era das que não permitem a presença do autor; precisam do prestígio da ausência; são, para assim dizer, expressões truncadas que a imaginação perfaz e amplia. Jorge ia a sair, quando ouviu o rumor dos passos de Iaiá; deteve-se a esperar a resposta. A moça parou diante dele, e entre ambos houve um momento de silêncio e hesitação.

- Cego! - disse enfim Iaiá estendendo-lhe as mãos com um ar de simplicidade e confiança.

Jorge recebeu-as nas suas, e a linguagem que a alma não quis confiar do lábio do homem, eles a disseram com os olhos, durante alguns minutos largos. Jorge perguntou finalmente:

-É certo? Ama-me?

Iaiá cingiu-lhe o pescoço com os braços e inclinou a cabeça com um gesto de submissão. Jorge inclinou-se também, e nos cabelos, nos fios de cabelo que lhe pendiam na testa pousou o mais puro e fugitivo dos beijos. Ao contacto daquele lábio, Iaiá enrubesceu e estremeceu toda; mas não fugiu, não retirou os braços; deixou-se ficar subjugada e feliz.

Homero conta que Vênus, descendo ao campo da batalha entre gregos e troianos, saiu dali ferida e ensanguentada. Iaiá teve a sorte da diva homérica; interpondo-se entre Jorge e Estela trouxe dali ferido o coração. Naquele espaço de alguns meses, obra de paciência e luta, de violência e simulação, para o qual fizera convergir todas as forças morais, não suspeitou que, vencendo ao outro, podia vencer-se a si mesma. Queria ser uma barreira entre o passado e o presente, sem cogitar na dificuldade do plano, nem nas consequências possíveis dele. Sobretudo, não pensou na moralidade da ação. Que podia ela saber disto? A suspeita ia até admitir a persistência do amor no coração da madrasta, mas não lhe atribuía mais do que uma aspiração ou saudade silenciosa; não sabia mais. Para combater esse inimigo inerte, é que pôs em campo a porção de astúcia que a natureza lhe dera, as graças do rosto e a rara penetração de espírito.

Iaiá transpôs a soleira e saiu; precisava de ar, de espaço, de luz; a alma cobiçava um imenso banho de azul e ouro, e a tarde esperava-a trajada de suas púrpuras mais belas. Jorge acompanhou-a; a comoção dele era sincera e forte, mas menos intensa, menos desvairada que a de Iaiá, cujos olhos pareciam dizer a tudo o que a rodeava, desde o sol poente até ao último grelo de capim: "olhai, vede as bodas do meu coração; este é o meu amado".

Perto da noite, Raimundo veio buscá-la; Jorge acompanhou-a. Iaiá lembrou-se de traçar com um grampo, no musgo que reveste o aqueduto, o nome de Jorge e a data; instando com ele, Jorge escreveu também o nome dela. Raimundo sorria entre dentes. Em caminho falaram do presente e do futuro; e, num intervalo, tocaram levemente no passado.

- Sabe que eu tinha um desgostozinho? - disse Iaiá.

Jorge interrogou-a com os olhos.

- É verdade, um capricho - continuou ela -. Quisera que o senhor nunca tivesse gostado de outra pessoa, e é bem possível que não seja este o primeiro amor de seu coração.

- Não é - respondeu Jorge depois de um instante de reflexão -. Amei uma vez, há muito tempo; mas todo esse passado acabou.

- Está certo de que acabou?

- Criança! Que noiva receou nunca de um amor antigo, começado e acabado, antes dela ser amada também? Que o novo amor seja sincero e fiel, eis o que se deve pedir e exigir. Quanto ao passado, é como os defuntos; reza-se por ele, quando se reza.

- Tenho medo de almas do outro mundo - tornou Iaiá sorrindo.

Iaiá mostrou-se tão expansiva naquela noite e nos seguintes dias, derramou de tal modo a vida que a enchia, que Estela compreendeu tudo o que se passava entre a enteada e Jorge. Há uns amores, aliás verdadeiros, a que precedem muitas contrafações; primeiro que a alma os sinta, tem despendido a virgindade em sensações ínfimas. Iaiá ignorava tudo; não soletrara o amor, aprendera-o de um lance. Trazia o coração intacto. Seu acordar foi uma aurora súbita, mas rutilante e límpida. No meio da embriaguez que lhe dava o novo sentimento, não cogitou nas possíveis consequências dele; não perguntou a si própria se era verdade que no coração da madrasta havia uma saudade ou uma esperança silenciosa, e se isso podia ser a raiz de largos ódios e dissensões domésticas. Não interrogou o futuro. Fenômeno curioso! A lembrança do pai foi por um instante esquecida; o egoísmo do amor devorou-a.

XV

A fronte de Estela não tinha a tristeza dos vencidos. O amor persistia no coração, como um mau hóspede; e o espetáculo daqueles últimos meses não fizera mais do que irritá-lo. Mas a força moral de Estela subjugou-o. A luta fora longa, violenta e cruel; a consciência do dever e o respeito de si própria acabaram vencendo. Talvez não fosse difícil perceber, por baixo da serenidade do rosto, o cansaço que deixam as grandes tempestades morais. A tempestade, ninguém lha viu.

Não obstante, no dia em que a paixão dos dous lhe pareceu evidente, Estela sentiu rugir-lhe no coração um vento de cólera; vento forte e instantâneo. Dessa vez, o olhar penetrante de Iaiá não pôde ler no fundo da alma da madrasta; e porventura lhe diminuiu a suspeita, quando a viu contemplar sem irritação nem abatimento a situação nascida de seu esforço único.

Entretanto, a moléstia, que solapava a existência de Luís Garcia, agravou-se por aquele tempo, e o enfermo foi compelido a pedir alguns meses de licença. Chamado a vê-lo, o médico reconheceu que a enfermidade tocava ao desenlace, e com a enfermidade a vida. Não o disse à família, mas não o escondeu de Jorge, quando este diretamente lho perguntou.

- Está condenado à morte - disse ele -; a moléstia devorou-o lentamente, mas com segurança. Pode viver dous a três meses.

Jorge ficou aterrado. Os acontecimentos tinham tomado tal feição, que ele já pedia a vida de Luís Garcia. Quem lho dissera alguns anos antes? Não somente padeceria com a morte do enfermo, mas teria de ver padecer Iaiá, de cuja adoração filial era testemunha, e chegava a recear que o golpe lhe fosse fatal. Nada disse; afetou tranquilidade e indiferença, mas entendeu que os sucessos o designavam a proteger a família e dispunha-se a assumir esse papel, quando fosse ocasião.

Estela não receou menos do que na moléstia anterior; mas dessa vez não interrogou Jorge, conquanto o visse falar ao médico. Nos últimos tempos, o seu silêncio era mais contínuo e habitual. Parecia desinteressada de tudo, menos do marido. Suspeitou da gravidade da moléstia, interrogou o médico, e ouviu deste palavras de esperança.

- Não lhe peço esperanças ilusórias - disse Estela -; peço-lhe que me diga toda a verdade.

- A verdade é cruel de dizer.

- Perdido? - disse ela com voz surda.

O silêncio do médico foi a confirmação daquela palavra. Estela sentiu fugir-lhe todo o sangue; mas não soltou uma lágrima. Pôde refletir no perigo de ser vista essa denúncia do mal, e dominou-se. Quando se achou só consigo, deu livre campo às angústias; encarou a catástrofe e pensou nas consequências da morte e no incerto futuro que a aguardava dentro de poucos dias. O futuro trouxe-a ao presente, o presente levou-a ao passado. A vida só lhe dera alegrias médias e dores máximas. Não foi a paixão que a levou ao casamento, mas somente a conveniência e o raciocínio.

No casamento achara os sentimentos de apreço, a mútua consideração, a brandura das relações domésticas; esse fogo, porém, cuja intensidade não dura, mas que é o férvido sol dos primeiros dias, precursor necessário da tarde repousada e da noite tranquila, esse fogo, essa fusão de duas existências, esse ardor expansivo, condição de sua natureza moral, não os conheceu Estela. Ou o destino ou o orgulho privou-a de achar no casamento a paixão santificada. Pois bem, se alguma cousa podia compensar-lhe a falta, era a longa duração de uma felicidade segura, embora tíbia; era envelhecer sob a monotonia de um horizonte sem sol nem tempestade. O destino negava-lhe a compensação.

Não tinha Estela ao pé de si com quem repartisse as tristezas. O pai seria o último de todos. A viuvez deixá-la-ia sem família. Esta ideia trouxe outra - a de apressar o casamento da enteada, de modo que nenhum vínculo moral lhe sobrevivesse ao marido. Uma noite, tendo Luís Garcia adormecido, Estela deu a perceber à enteada que o estado do pai era grave. Iaiá empalideceu. Jorge fez um gesto de reprovação.

- A moléstia não é leve decerto - disse este -; mas não se segue daí que se deva...

- Tudo se deve prever - tornou Estela -. Pela minha parte, entendo que prevenir um caso fatal não é fazer com que ele se dê. Iaiá sabe o amor que lhe tem seu pai; seria para ele uma fortuna poder abençoá-la. Vamos lá, continuou ela, pegando nas mãos de um e de outro, por que é que se não casam?

Momentaneamente acanhados, nenhum deles assentiu nem recusou. Iaiá olhava espantada para a madrasta.

- O silêncio é uma maneira de responder - continuou esta -; querem dizer que concordam comigo, não é? Nesse caso, seremos três para fazer a cousa mais simples do mundo, que é casar duas criaturas, que se amam... Por que não a pede o senhor amanhã? O casamento pode ser feito dentro de poucos dias, à capucha, cousa simples...

Iaiá tinha enfim saído do primeiro instante de estupefação.

- Mas papai está mal? - disse ela.

- Todos nós estamos mal, apesar de termos saúde - respondeu Estela -; num dia cai a casa. A doença dele é grave, é coração...

- Tem razão - interveio Jorge -; podemos concluir tudo em poucos dias, duas semanas, quando muito, ou três.

Jorge não ficou pouco impressionado da intervenção de Estela. Conhecendo os sentimentos que a distinguiam, admirava essa impassibilidade moral, que esquecia ou fingia esquecer. Depois examinou-se a si próprio; sentiu que o amor que o dominava agora, posto fosse profundo, não era violento, não lhe queimava o coração. Comparou-se ao que tinha sido, e esse cotejo, no primeiro instante, não foi importuno; foi antes lição e filosofia. Mentalmente sorriu. Era ele o mesmo homem? Outrora caminhara resoluto às soluções trágicas; agora, com igual sinceridade, entregava o coração a outra mulher. Na fronte desta mal ousara roçar um ósculo medroso e casto, ele, que fizera a cena da Tijuca. O homem não era o mesmo. Embora a isenção presente, Jorge experimentou um pouco da nostalgia do passado; sorria sem amargura, mas com um travo de melancolia.

- Aquele orgulho é ainda maior do que eu pensava - dizia ele.

No dia seguinte, Procópio Dias veio acordá-lo em casa.

- Quando chegou? - perguntou Jorge.

- Ontem de tarde, e a primeira visita que faço é esta. Demorei-me mais do que queria; mas enfim cá estou - cá estou, e mais magro. O senhor é que me parece mais gordo.

Procópio Dias falou compridamente da política argentina e da magistratura de Buenos Aires; falou também um pouco das mulheres platinas. De quando em quando abria um claro, como para deixar que o outro intercalasse alguma cousa menos estrangeira; Jorge, porém, falava pouco e sem apetite; o constrangimento dele foi visível quando Procópio Dias o interrogou acerca da família de Luís Garcia; respondeu-lhe sem interesse. Procópio Dias fitou-o durante alguns segundos; as rugas da testa engrossaram-se-lhe extraordinariamente.

- E Iaiá? - disse ele -. Parece-lhe então que nenhuma esperança...

Fez uma pausa; Jorge preencheu-a com um sorriso descorado, mas assaz explicativo. Procópio Dias começou a farejar a realidade, mas nenhuma das linhas do rosto denunciou a impressão que esta lhe causara. Após um silêncio largo, entrou a rir de bom humor.

- Quer que lhe diga um cousa? - perguntou ele -. Saiba que volto curado. Quando penso na moléstia tenho vergonha; é verdade, tenho vergonha da figura que fiz. Já sou muito maduro para cavalarias altas. A doença ainda me durou algum tempo; sarei com a mudança de clima; o amor, ao menos na minha idade, é uma espécie de beribéri... Há de ter-se rido de mim; é justo, porque eu não faço hoje outra cousa.

Jorge contestou com um simples gesto; mas Procópio Dias falava com tanta naturalidade, ria com tamanha franqueza, que a explicação deu à conversa a vida que ela tendia a perder. Jorge foi mais expansivo, mais alegre; não lhe confiou a nova situação, mas o segredo parecia debruçar-se-lhe das pálpebras e dos cantos da boca. Essa alegria era um respiro da consciência, que se sentia um pouco vexada em presença daquele homem, cuja confiança fora a origem de seu recente amor; era também a satisfação de não ter conseguido ligá-lo à filha de Luís Garcia; consórcio repugnante, híbrido, cujo resultado seria dar à moça uma longa amargura sem certeza de resgate.

Quando Procópio Dias saiu dali ia suspeitoso da realidade.

"Mas a outra?" - dizia ele consigo.

Sacudiu os ombros, e não ficou mais tranquilo. Levava já no peito um pouco de impaciência e irritação; tinha a fronte obscurecida por uma nuvem. Mais tarde alumiou-a um clarão súbito, ainda que frouxo; era um reflexo de esperança. Talvez houvesse julgado com precipitação: era possível atribuir a reserva de Jorge não à competência pessoal, mas a uma maneira de entender as máximas do decoro. Quem sabe? Ele podia ter-se arrependido de haver prometido tanto. Essa reflexão arejou um pouco o espírito, sem lhe tirar de lá o miasma corruptor. Era força conhecer a verdade. Nesse mesmo dia, foi ele a Santa Teresa.

Luís Garcia concedera naquela manhã a mão da filha. Na ocasião em que Procópio Dias ali entrou, tinha-a ele ao pé de si, e contemplava-a com amor e saudade - duas vezes saudade, porque também a morte os viria desunir. Entre si recordava os tempos em que ele e ela eram, um para o outro, toda a terra e todo o céu; e perguntava à natureza se era justo sobrepor ao primeiro vínculo outro vínculo estranho, e a natureza lhe respondia que não somente era justo, mas até necessário. Então o pai sentia-se feliz com a felicidade da filha, cujo egoísmo lhe ensinava a abnegação. Se ela devia amar a outrem, que faria ele mais do que ceder? Quanto ao noivo eleito, merecia-lhe todas as aprovações; era o único estranho que lhe penetrara um pouco mais na intimidade; amante, benquisto e opulento, podia dar à moça, além da felicidade do coração, todas as vantagens sociais, ainda as mais sólidas, ainda as mais frívolas: - e esse homem obscuro, enfastiado e céptico, saboreava a ventura que a filha iria achar no turbilhão das cousas, que ele não cobiçara nunca.

Uma noite bastou a Procópio Dias para conhecer a situação. Não obstante as declarações do pretendente, que aceitou como sinceras, Jorge buscou dissimulá-la. Se Procópio Dias não tornasse a ver a moça, é possível que o tempo lhe abafasse a paixão. Mas viu-a, e viu-a mais bela do que a deixara.

"E a outra?" - dizia ele.

Dessa vez a pergunta não passou vagamente; trouxe uma ideia consigo, diante da qual Procópio Dias chegou a recuar. Essa ideia era envenenar na própria origem a afeição recente; nada menos que denunciar a madrasta à enteada. Se alguma cousa pudesse atenuar a perversidade de semelhante recurso, era a persuasão que ele tinha de que diria a verdade. Cria deveras no amor secreto dos dous; com algum esforço poderia fazer supor que o casamento da filha de Luís Garcia era uma sugestão da madrasta. Ele próprio achava essa combinação verossímil, conveniente, reparadora.

"Maganão! A duas amarras!" - dizia o pretendente em tom surdo.

A ocasião veio. Um pouco irritada com a assiduidade de Procópio Dias e a confiança que parecia renascer nele, Iaiá assentou de lhe dizer francamente que estava prestes a casar. Procópio Dias empalideceu. Supunha apenas provável o que era já definitivo. Olhou longamente para ela; a extinção da esperança não implicava a extinção do desejo; pelo contrário, vinha pungi-lo e açulá-lo. Seus olhos mostraram então duas expressões diversas; a primeira involuntária, a mesma com que os dous velhos de Israel espreitavam a filha de Helcias, um olhar terreno e mau; a segunda voluntária, não de queixa, não de súplica, mas de lástima. A ideia ruim tornava a arder-lhe no cérebro.

- Não sabia - disse ele, depois de curta pausa. Com quem?

- Com o Dr. Jorge.

- Ah!

Procópio Dias riu com a testa, e tornou a deitar-lhe um olhar de lástima.

- Pobre moça! - murmurou ele entre dentes.

Iaiá fitou-o severamente; depois sorriu e perguntou com alguma ironia:

- Não aprova a escolha?

- A escolha é excelente - disse ele -; mas há circunstâncias que fazem do ótimo péssimo. Ouça-me; a senhora sabe que eu a amei; supõe talvez que já não a amo e engana-se; amo-a como no primeiro dia. Tive ideia de casar com a senhora; perdi a ideia mas guardei o sentimento. Talvez isso lhe diminua a sinceridade das minhas palavras; mas eu cedo à voz da consciência, sem calcular com a sua aprovação...

Fez uma pausa.

- Acabe - disse a moça.

- Há cousas que um coração inexperiente não pode entender; cousas que talvez se lhe não devam referir. Quer um conselho? Não aceite o casamento; desfaça-o, não para casar comigo, mas desfaça-o.

Iaiá fez-se pálida. Procópio Dias, pasmado do próprio arrojo, compreendeu que havia ido muito longe naquelas poucas palavras; mas já não havia meio de as explicar de modo verossímil. Como se fizesse um monólogo interior, abanava a cabeça ou levantava a ponta do lábio, enquanto os olhos, perdidos no ar, tinham o aspecto vítreo das fortes concentrações. Iaiá olhou para ele atônita e confusa: não sabia o que pensasse, não podia ou não queria entender. Afinal, coligindo todas as forças, perguntou audazmente por que motivo lhe cumpria desfazer o casamento.

- Qualquer que seja o motivo - disse ele -, não lhe aconselho que o aceite logo como decisivo. Reflita antes de resolver; a responsabilidade será sua, do mesmo modo que o benefício há de ser seu. Meu conselho é que o desfaça.

- Mas por quê?

- Porque muitas vezes o casamento é... é uma máscara, uma... Seu noivo ama a outra pessoa... Que tem?

Iaiá fizera-se lívida. Terror, indignação, abatimento, sua alma passou por todos esses estados, padeceu-os até simultaneamente, sem que a boca achasse uma só palavra de resposta ou de protesto. A delação fulminara-a; nunca Procópio Dias chegou a compreender o motivo de tamanho e tão súbito efeito. O efeito aterrou-o em parte, e em parte o consternou; alguma fibra lhe ficara intacta, no meio da decomposição moral de todo o seu ser, e essa bastou a ressentir o golpe que ele mesmo vibrara.

- Outra... Que outra? - balbuciou Iaiá segurando-lhe um dos braços.

Procópio Dias abanou a cabeça solenemente, como a dizer que não podia ir mais longe. A esse gesto seguiu-se um silêncio largo, durante o qual a moça pôde vencer a primeira comoção e refletir sobre o que lhe convinha entender.

- Ama a outra? - disse ela -. Quem quer que seja essa rival, já agora o noivo é meu; e é natural que me ame mais do que a ela, visto que prefere casar comigo...

Não obstante a firmeza que procurava dar à palavra, a palavra era difícil e a voz parecia morrer-lhe na garganta. Procópio Dias compreendeu que a comoção estava apenas dominada, e que o veneno penetrara abaixo da epiderme. Era a primeira vez que lhe via esse aspecto dolorido; antes de embarcar, conhecia-a menina caprichosa; depois do regresso, achou-a senhora refletida; naquela ocasião, a dor, oculta embora, como que lhe dava um encanto mais. Efetivamente o rosto de Iaiá traía o estado do coração; os olhos não correspondiam ao esforço que ela fazia para os fixar.

- Se lhe parece, esqueça o meu conselho - disse ele - e não me leve a mal se lhe preguei um susto. Talvez o susto haja passado. Não importa; creia que há casamentos impossíveis; casamentos destinados a... não sei a quê... pode ser que a cousa nenhuma... ou a cousa muito grave, muito grave.

- Cale-se! - rugiu surdamente a moça.

Procópio Dias continuou:

- Uma só palavra - disse ele -. Há de atribuir ao despeito o aviso que lhe dei. É verdade; há uma grande porção de despeito em mim. Por que lhe falaria eu, se não tivesse um motivo pessoal? Esse homem traiu-me; eu tinha-lhe confiado o depósito do meu amor; ele abusou da confiança: fez-se amado em meu lugar. Não me queixo da senhora. A senhora não me devia nada - um pouco de simpatia, talvez -; no futuro, pode ser que me deva também um pouco de gratidão.

Procópio Dias saiu logo depois destas palavras. Estava satisfeito; desde que pôde formular em um ou dous raciocínios o sentimento oculto que o fazia agir, achou nele a legitimidade de tudo o que acabava de dizer. Era um duelo; recebera um golpe na espádua, respondia com outro no coração, mais certeiro e provavelmente mortal; e se não era duelo, era emboscada por emboscada; direito de represália.

Prostrada com o golpe que acabava de receber, Iaiá não teve sequer as lágrimas do desespero nem as da indignação. Há dores secas, como há cóleras mudas. A suspeita, que o tempo devia carcomer de todo, e que o amor de Jorge ia já tornando problemática, essa ruim suspeita renascia tão vivaz e pertinaz como alguns meses antes, quando arrancou aos olhos de Iaiá as primeiras lágrimas de mulher. Não podia crer que o amor de Jorge não fosse sincero; era-o; parecia-o, ao menos. Mas a existência do outro amor, não era já o coração que lho dizia, era uma voz estranha que a vinha delatar: circunstância nova, que fazia convalescer a dúvida anterior, até o ponto de lhe dar todos os visos da realidade. Iaiá sentia-se arrojada outra vez ao vasto e escuro espaço de suas antigas cogitações; - erma, desamparada de toda proteção humana, não lhe restava mais que duvidar e gemer, até achar na própria ductilidade de seu espírito a força que lhe não podia dar nenhuma origem exterior.

A madrasta foi ter com ela meia hora depois de sair Procópio Dias. Pouco antes, o marido tivera tamanha aflição, que Estela chegou a recear o último golpe; agora ficava prostrado. Estela apareceu à enteada com o olhar ainda assustado e o passo mal seguro; Iaiá não viu essa mudança, nem ouviu as primeiras palavras com que ela lhe falou do pai. Olhava só, enquanto o coração parecia querer despedaçar-lhe a arca do peito.

- Iaiá, ande ter com seu pai; seu pai está hoje muito doente.

Vendo que a moça não se movia, Estela lançou-lhe o braço à roda da cintura.

- Vamos - disse.

Iaiá estremeceu toda; depois metendo-lhe as mãos nos ombros, empurrou-a violentamente e caminhou para a porta.

- Iaiá! - bradou a madrasta.

A enteada voltou-se, e, estendendo o dedo sobre os lábios, impôs-lhe silêncio. O olhar desvairado e incônscio parecia antes de loucura que de indignação. Estela ficou estupefacta.

Luís Garcia foi o laço que ainda pôde conservar atadas essas duas existências, já agora antipáticas uma à outra. A vida dele era necessária a ambas. Uma punha nela todas as esperanças de um coração crédulo; outra apenas lhe dava aquela porção última, que não desampara os necessitados. Tréguas houve, mas sombrias e violentas. Não se falavam as duas, não trocavam um só olhar na ausência de Luís Garcia; diante dele, mostravam-se como dantes. Esta situação incomportável parecia, aliás, definitiva.

Jorge percebeu-a; ele próprio sentiu a princípio o efeito de um acontecimento, que não podia adivinhar e necessariamente era grave. Iaiá, porém, venceu-se depressa em relação a ele. A alma, se o vento lha fizera dobrar, para logo retomou a posição dos outros dias; mostrou-se terna com ele, afável, impaciente de concluir o casamento. Um só pensamento influía nela: confiscar aquele homem, arrastá-lo consigo, dominá-lo depois, despedaçar de uma vez o laço que supunha atá-lo ao coração da madrasta.

Marcou-se um sábado para o casamento; mas os primeiros dias da semana foram de tão mau agouro, que a família resolveu diferi-lo para melhor ocasião. O enfermo piorou rapidamente. A moléstia entrou no último período.

Iaiá viu morrer tristemente o sol de sábado, e não viu nascer mais aprazivelmente o de domingo. Não pensava ainda na morte do pai, mas alguma cousa lhe fazia tremer o coração. A presença de Jorge é que lhe dava ânimo e conforto, posto que ele próprio se sentisse apreensivo com o desenlace próximo da enfermidade de Luís Garcia.

Lenta e caprichosa nos primeiros tempos, a enfermidade teve rápido e inflexível o período último. No fim de poucos dias a morte foi declarada iminente. Estela, não obstante achar-se preparada para o golpe, mal pôde resistir ao primeiro abalo. Iaiá ficou como douda. O pai fora a sua primeira e contínua adoração. Durante alguns anos não conheceu outro mundo, outro afeto, outra família, além daquele homem grave e terno, cujos olhos a protegiam e alumiavam. No primeiro instante não pôde crer na triste nova. Mas a realidade avultou a seus olhos, e foi então que a alma tentou romper todos os elos e voar, antes dele, a esperá-lo na imensa vastidão azul, para empreenderem juntos a derradeira viagem. Não chorou nas primeiras horas; a dor trancara-lhe as lágrimas; mas estas vieram logo depois, e ela as verteu em silêncio, sufocando os soluços, estorcendo-se na solidão da alcova.

Luís Garcia reiterou a Jorge o pedido que lhe fizera uma vez, em relação à família; mas agora restringia-o a Estela.

- Peço-lhe que não desampare os meus. Sei que morro, e quero ter a certeza de que só deixo algumas saudades. O senhor vai casar com minha filha; nada me inquieta a este respeito. Mas Estela, que não é mãe de Iaiá, ou é somente mãe de coração, Estela vai ficar só, e eu não quisera morrer com a ideia de que a deixo infeliz. Promete-me que não a desamparará nunca?

Jorge prometeu. Estela, que estava presente, procurou tranquilizar o enfermo, e pediu-lhe que não falasse tanto. Luís Garcia não atendeu; exaltou as virtudes da mulher, a dedicação, o zelo, a afeição que lhe tinha.

- Digo-lhe que fui feliz - concluiu ele -; minha alma era já velha, quando a dela se lhe uniu, e contudo... sim, minha alma rejuvenesceu um pouco...

- Já tem falado muito - interrompeu Estela -, descanse, não quero que diga mais nada.

Luís Garcia pediu ainda à mulher e à filha que se amassem como até ali. Tinha falado excessivamente; ficara abatido. Dali em diante, a morte não fez mais do que apoderar-se, trecho a trecho, da sua vítima. Já a noite desse dia foi mais cruel que as anteriores; todo o seguinte dia foi de angústia para as duas mulheres. Na manhã do outro começou a agonia dele, que durou algumas horas.

Ao vê-lo morrer, as duas mulheres ficaram longo tempo prostradas. Era a primeira vez que contemplavam a morte. Nenhuma delas vira nunca expirar uma só criatura humana, e a primeira que a seus olhos se despedia da vida representava para elas largos anos de afeição terna e profunda, e o mais forte laço moral que as ligava uma à outra. Nesse instante solene, abraçaram-se sem reflexão; a dor impeliu-as com a mão de ferro, e madrasta e enteada confundiram ali suas nobres, tristes e inúteis lágrimas.

Aos pés da cama, com o gesto dolorido, Jorge via a aflição das duas mulheres, sem lhes poder nem querer valer. Quanto a Raimundo, não pôde ver expirar o senhor; correu ao jardim, onde ficou longo tempo sentado no chão, com a cabeça encanecida entre os joelhos, sacudido pela violência dos soluços.

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