Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

XIII

Jorge achou em casa, nessa mesma noite, uma carta de Buenos Aires. Procópio Dias narrava-lhe a viagem e os primeiros passos, e dizia ter toda a esperança de se demorar pouco tempo. Tudo isso era a terça parte da carta. As duas outras terças partes eram saudades, protestos, expressões de sentimento, e um nome no fim, um nome único, e que era a chave do escrito. Jorge leu atentamente essas confidências, e na mesma noite esboçou uma resposta. Não era fácil combinar a discrição que quisera conservar em suas relações com Procópio Dias e a necessidade de lhe mandar algumas esperanças. Embora com esforço, redigiu a resposta conveniente, contando-lhe as boas impressões que tinha; só as boas, não lhe disse as duvidosas; sobretudo não desceu a nenhuma realidade, a nenhum nome próprio; nada mais que uma extensa série de locuções igualmente animadoras e vagas.

No dia seguinte não foi à casa de Luís Garcia; choveu torrencialmente. Mas no outro dia foi, logo depois do jantar. Achou reunida a família.

- Good evening, my dear mestre! - bradou Iaiá logo que o viu entrar na sala.

- Faltava mais uma língua a esta tagarela - disse Luís Garcia rindo -; daqui a pouco tempo ninguém a poderá aturar.

Jorge não esperava, decerto, encontrar na moça a mesma expressão que lhe deixara na antevéspera, quando de um gesto nervoso lhe comprimira o pulso. Tinham passado quarenta e oito horas, e para que ela se restabelecesse bastariam apenas quarenta e oito minutos. Contava com a mudança; não obstante, procurou ler-lha nos olhos, e achou-os tão alegres como o tom em que ela o saudara. A lição isolou-os, e foi também o pretexto mais favorável para lhe mostrar a carta de Procópio Dias. Iaiá viu-a selada e compreendeu tudo; arrebatou-a às mãos de Jorge.

- Ah! - disse este -. Seu gesto vale um discurso.

- Posso ler?

- Pode.

Iaiá desdobrou a carta e leu-a para si. Enquanto lia, Jorge fitava-a. Não lhe via nenhuma confusão, alvoroço ou alegria; os olhos seguiam lentamente de uma linha a outra, e a mão firme voltava a página. No fim, quando leu o próprio nome, teve um movimento de tédio, e inconscientemente amarrotou o papel; mas emendou-se logo, alisou a carta com a mão e restituiu-a silenciosamente. Durante alguns segundos ocupou-se em traçar com um lápis alguns círculos na margem da folha aberta da gramática; ergueu enfim os olhos e perguntou sem rir:

- Acredita no que diz essa carta?

- Acredito; tudo o que está aí escrito, já o ouvi de viva voz, e com a mesma sinceridade e calor. Quem sabe? Pode ser que seja o primeiro amor desse homem.

- O primeiro... o primeiro... - repetiu ela entre dentes.

- Talvez o primeiro - insistiu Jorge -; e para uma moça, acho que deve ter algum encanto ser amada por um homem considerado superior às paixões. A vida de Procópio Dias teve sempre outra ordem de interesses...

- Conhece-o há muitos anos?

- Há muitos, não; conheço-o desde o Paraguai.

- Acha que eu fazia bem em me casar com ele?

- Bem ou mal, conforme o amor que lhe tiver. Esse é o ponto necessário, e em meu conceito, o ponto duvidoso. Receio que a senhora o não ame deveras; já tive ocasião de o dizer.

- Preciso de alguns esclarecimentos. O senhor amou decerto alguma vez...

- Nunca.

- Nunca? Nunca teve um amor, um só que fosse? Não creio. Um coronel! Nada; não creio; só se me jurasse; era capaz de jurar?

- Juro.

- Em nome de sua mãe? - concluiu ela fitando-lhe uns olhos cuja expressão imperativa contrastava com o tom submisso da palavra.

Jorge hesitou um instante. Tinha cepticismo bastante para proferir uma fórmula vaga de juramento; mas recuou diante da fórmula positiva. Hesitou e ladeou a pergunta.

- Esse nome resume justamente o meu único amor - disse ele -; amei a minha mãe.

Iaiá sorriu com ar de dúvida; depois olhou para ele comovida.

- Eu amo meu pai - redarguiu ela -, nossos corações podem entender-se.

A esta palavra não havia que replicar; pareceu-lhe a condenação do pretendente. Apertou a mão que a moça lhe estendeu, e sentiu-a fria. Após uma curta pausa, abanou a cabeça, murmurando:

- Assim pois, nenhuma sombra de esperança...

- Faça o que entender - disse a moça no fim de outra pausa -, em todo o caso desejo ler a resposta que lhe der.

Jorge abriu a carteira, e tirou de lá o rascunho da carta que pretendia mandar a Procópio Dias.

- A resposta - disse ele - já está escrita. Não querendo matá-lo, pus aqui algumas gotas de esperança; não ousaria contudo mandar o remédio, sem ouvi-la.

Iaiá recebeu o papel dobrado, olhou um instante para ele, outro para Jorge.

- Leia - disse este.

Iaiá não obedeceu: pegou do lápis, e sobre a folha do papel dobrado começou a lançar os traços de um desenho. Posto que a luz batesse em cheio no papel, Jorge não pôde ver desde logo o que era; mas esperava, em frente da moça, que ela rematasse o capricho. Nessa ocasião, Estela foi ter com eles.

- Já acabou a lição? - perguntou.

- Agora é uma lição de desenho, ao que parece - disse Jorge.

Estela pôs a mão no ombro da enteada.

- É o Procópio Dias! - disse ela olhando para o desenho.

Era, mas o desenho frisava com a caricatura; a fealdade de Procópio Dias excedia as proporções verdadeiras, o nariz era enormemente triangular, as rugas da testa, grossas e infinitas: um monstro cômico. Estela sorriu da travessura, mas repreendeu-a.

- Deixe ver - disse Jorge quando ela acabou.

- Para quê? - retorquiu Iaiá com indiferença.

E levando o papel à chama, queimou-o. Jorge interrogou-a com os olhos; ela encarou-o sem se perturbar. Depois folheou a gramática lentamente.

- Continuemos a lição - disse ela -. Y Love. Vá; onde estávamos? Aqui, era aqui.

Estela assistiu à lição toda, com a paciência da curiosidade. Não olhava nunca para o mestre, dividia a atenção entre a discípula e o livro. A lição foi longa, mais longa do que era necessário, porque o próprio mestre não acompanhava pontualmente o texto e a leitura. Iaiá tinha diante de si dous juízes, cada um dos quais buscava decifrar-lhe na fronte a inscrição que lá lhe teria posto o seu destino. Percebia-o, e não se enfadava. Ia de um tempo a outro, e do indicativo ao imperativo, voltando ao começo logo que chegava ao fim, fitando os dous inquisidores com um olhar em que pareciam dormir todas as ignorâncias da terra.

A tranquilidade era aparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a moça deu largas a dous sentimentos opostos. Entrou ali prostrada.

"Que estou eu fazendo?" - disse ela apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a veneziana da janela e interrogou o céu. O céu não lhe respondeu nada; esse imenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrelas que cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da terra. Duas delas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse. Iaiá teve a superstição de crer que também ela mergulharia ali dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao grande mudo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao céu que se não vê, mas de que há uma parcela ou um raio no coração dos símplices. Esse ouviu-a e confortou-a; ali achou ela apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe: "Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica". Restaurada a alma, ergueu-se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para interrogar, mas para afirmar, para dizer à noite que naquele corpo franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.

Tarde conciliou o sono. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de um abismo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos à cinta e a levantava ao ar como uma pluma. Pálida, com o olhar desvairado, a boca irônica, essa mulher sorria, de um sorriso triunfante e mau; murmurava algumas frases truncadas que ela não entendia. Iaiá bradou-lhe em alta voz: "Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava!" Mas a mulher, sacudindo a cabeça com um gesto trágico, e colando-lhe os lábios nos lábios, soprou ali um beijo convulso e frio como a morte. Iaiá sentiu-se desfalecer e rolou ao abismo. Acordou agitada e deu com a madrasta a contemplá-la, ao pé da cama. No primeiro instante, fechou os olhos e recuou até a parede, mas logo depois voltou a si.

- Tive um pesadelo horrível - disse ela respirando largamente -, rolei no fundo de um abismo, empurrada por duas mãos de ferro. Ainda estou fria. Veja as minhas mãos. Tenho o peito oprimido. Felizmente passou. Está aqui há muito tempo? Eu agitei-me muito?

- Falaste em voz bem alta.

- Que foi?

-"Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava." Não sei que estas palavras se possam dizer no fundo de um abismo. Tu confundes os sonhos...

- Talvez, não me lembra outra cousa. Só me lembro do abismo, que felizmente não passou da minha imaginação. É muito tarde, não é?

- Nove horas.

- Nove horas!

Estela foi à janela, e, abrindo a veneziana, mostrou-lhe o sol. Depois encostou-se ali a olhar para fora. Entrara alguns minutos antes, admirada do prolongado sono da enteada, e ia pousar-lhe a mão no ombro quando ouviu aquela palavra balbuciada no meio de grande agitação; palavra misteriosa e vaga, mas que se lhe embebeu no coração como um espinho. De sua parte, Iaiá não estava menos inquieta. Receava que houvesse dito alguma cousa mais - um nome ou uma circunstância precisa -; em todo caso, era bastante o que ouvira a madrasta, para imaginar que o sonho lhe escancarara as portas da consciência. Uma e outra espreitavam-se desconfiadas e medrosas. A madrasta deixou a janela e foi sentar-se na beira da cama. Ambas sorriam com esforço e nenhuma conseguia falar primeiro. Correram assim três longos minutos de acanhamento e observação recíproca. Estela foi a primeira que rompeu o silêncio.

- O teu pesadelo foi um castigo - disse ela -; foi o castigo da caricatura que ontem fizeste. Aquilo não é bonito. Todos sabem que o Procópio Dias é bem recebido em nossa casa. Que se há de pensar de nós, quando virem que se tratam assim as pessoas ausentes?

Iaiá refletiu um instante.

- Era preciso - disse ela -; era uma maneira de desenganar de uma vez as pretensões desse senhor.

- Mas quem te falou nelas?

- O Dr. Jorge, que parece protegê-lo. Não é possível que haja ninguém mais feliz do que aquele homem. Bastou gostar de mim para que todos se empenhem em aprová-lo e aconselhar-me que não devo tomar outro marido. Parece-lhe que eu...

- A que propósito te falou nisso o Dr. Jorge?

- A propósito de cousa nenhuma; falou porque é amigo dele. Não lhe disse eu uma vez que um dia, se todos teimarem, serei obrigada a casar com Procópio Dias? Receio muito que assim aconteça.

- Não - disse Estela vivamente -; não há de acontecer assim, primeiramente porque eu não o consentirei nunca; depois, porque tu amas a outro...

- Eu?

- O teu amor de colégio, aos doze anos e meio.

- Ah! - disse Iaiá. E depois de alguns instantes continuou, com um gesto de grande vergonha: - Fiz mal em lhe dizer aquilo; peço-lhe que não repita a ninguém.

Estela não ouviu as últimas palavras. Erguera-se outra vez para dissimular a comoção, que parecia crescer. Entretanto, Iaiá enfiou um roupão e enterrou o pé na chinelinha matinal. Quando, cinco minutos depois, encontrou os olhos de Estela, achou-os sombrios, como os da figura do pesadelo, e insensivelmente buscou ver se teria um abismo ao pé de si.

- Iaiá - disse Estela em tom seco -, tu amas, tu confessas que amas a alguém; quero que me digas o nome desse homem, ouves? Exijo sabê-lo para avaliar o que te convém. Sabes que tenho autoridade de mãe.

Iaiá sentiu ferver-lhe o sangue nas veias.

- Minha mãe morreu - redarguiu com igual sequidão -; estou pronta a obedecer a meu pai.

Estela apenas disfarçou a sensação interior; após alguns instantes de silêncio, saiu.

Longe da enteada, a madrasta deu inteira expansão aos sentimentos que a combaliam. Fechou-se no gabinete do marido; depois evocou o passado, como uma força contra o presente, porque era o presente que ameaçava tragá-la. Um instante abalada pela leitura da carta de 1867, buscou recobrar a antiga quietação, mas a interferência de Iaiá perturbou essa obra de sinceridade. O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. Suspeitou a rivalidade da outra, e não foi preciso mais para que o grito de rebelião fizesse estremecer aquela alma solitária e virgem. O pensamento perdeu a habitual placidez. O coração começou de bater com a celeridade e a violência das grandes febres.

Eram as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como uma cratera que acaso fechasse uma abóbada de gelo; pior que tudo, tinha a fatalidade de um longo constrangimento, a luta de duas forças igualmente pujantes, indomáveis e cegas. O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante os anos de jugo e compressão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranquilidade doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direito ao mal.

Ora, no meio desse duelo, já doloroso, embora ainda curto, ouviu Estela a última palavra da enteada, comentário da que lhe escapara na agitação do pesadelo. Saiu dali aterrada, tateando as sombras, e desviando os olhos quando algum clarão de realidade se lhe acendia ao longe. Não podia crer na rivalidade consciente e declarada de Iaiá; era inverossímil, seria a sua própria vergonha e condenação. Mas as palavras retiniam-lhe ao ouvido, e o gesto frio e duro da enteada parecia clarear o que havia obscuro nelas.

Não podia durar muitas horas a situação em que a fatalidade das circunstâncias havia posto as duas mulheres. Iaiá era a mais dúctil, e, outrossim, a mais interessada. Logo que Estela a deixou só, caiu em si e compreendeu que, além de ferir cruelmente a mulher que lhe servia de mãe, levantara uma ponta do véu em que trazia envolto o pensamento; ao demais, a injúria produzira a reação do amor - do amor que lhe tinha e não perdera de todo, apesar dos acontecimentos últimos. Na seguinte manhã foi ter com a madrasta.

- Confesso que fui excessiva e desobediente - disse ela -; não o devia ser, mas a senhora falou com um modo tão seco! Tão duro! Pareceu-me que duvidava de mim; fosse o que fosse, não era o seu modo do costume. Sempre a respeitei como minha mãe; não nego, não poderia negar nunca os seus direitos, assim como não desconheço a sua amizade; mas a senhora mesma tem um bocadinho de culpa; sempre me tratou antes como irmã do que como filha. Daí veio alguma confiança, alguma liberdade, e foi por isso que ontem cheguei a esquecer quem éramos, para a tratar como não devia. Foi isso somente; foi um excesso, uma leviandade, nada mais. Consulte o seu próprio coração e ele lhe responderá que não foi mais do que isso. Vá; pergunte-lhe, ele me conhece.

Estela escutou-a silenciosamente, sem vergar a altivez da fronte, mas também sem nenhuma expressão de despeito ou desafio. Luzia-lhe nos olhos alguma cousa que espreitava a alma da outra por baixo das pálpebras descidas. Iaiá falara de um jacto, mas não de um só tom; simplicidade, timidez, faceirice - havia de tudo na maneira por que se exprimiu durante aqueles poucos segundos. A explicação era a um tempo sincera e hábil, mas de tal modo se confundiam os dous caracteres, que a própria habilidade não tinha consciência de si: era antes um instinto do que um cálculo.

- Que me pedes tu? - disse Estela no fim de alguns instantes -. Que te perdoe? Que esqueça a tua imprudência? Uma cousa é mais fácil do que a outra. Estás absolvida; faze agora com que eu esqueça.

- Por que não? Eu consegui fazer com que me amasse, quando a senhora não sabia ainda se eu era má ou boa.

- Era fácil. Tua mãe era tua mãe, mas não te amou mais do que eu. Se alguma vez o reconheceste, não foi ontem; ontem cedeste a um mau preconceito contra as madrastas, e levantaste entre mim e ti um espectro, que se pudesse falar seria para te condenar também. Não me queixo, nunca me queixei de cousa nenhuma: quando estimo alguém, perdoo; quando não estimo, esqueço. Perdoar e esquecer é raro, mas não é impossível; está nas tuas mãos.

Subjugada pelo tom com que a madrasta falara, simples, severo e levemente repassado de tristeza, Iaiá cedeu a um nobre impulso de submissão. Pegou-lhe nas mãos e beijou-as. A madrasta sentiu nelas uma lágrima. Não recusou esse testemunho do coração, e tê-la-ia apertado ao seio se lho permitisse a inflexibilidade do espírito. Limitou-se a contemplá-la com os olhos amoráveis de outro tempo.

Quando se separaram daí a alguns minutos, alguma cousa dizia à consciência de ambas que não vinham de fundar a paz, mas simples tréguas. Essa persuasão cresceu nos demais dias, porque uma e outra sentiam-se mutuamente observadas. Como houvesse entre elas um acordo tácito para não turbar a paz doméstica, Luís Garcia não percebeu essa situação nova; Jorge, ainda menos do que ele. Iaiá não alterou os hábitos dos últimos dias, conquanto usasse mais alguma cautela; as relações dos dous eram, aliás, tão frequentes e familiares como dantes. Uma vez, como a ausência de Jorge se houvesse prolongado além do costume, Iaiá mostrou-se-lhe um pouco retraída; e, perguntando-lhe ele o que tinha, respondeu afoutamente que a ausência a magoara muito.

- Quatro dias apenas - observou ele.

No primeiro domingo de março, Jorge foi ali às onze horas da manhã, e só achou Luís Garcia e Estela. Iaiá tinha ido à casa de Maria das Dores. Quando a moça voltou, Jorge e Estela estavam no jardim, ao pé da porta da sala; entre ambos havia uma cadeira vaga, a de Luís Garcia, que fora dentro algum minutos antes. Nenhum dos dous falava nessa ocasião; Estela estalava as unhas, Jorge batia na testa com o castão da bengala. Era constrangimento? Era dissimulação? Iaiá não soube decidir; mas o aspecto dos dous deixou-a sem pinga de sangue.

No dia seguinte voltou à casa de Maria das Dores; sabia do passeio usual de Jorge; queria vê-lo, falar-lhe. A doente não contava com a visita tão próxima da outra. Iaiá esteve com ela apenas alguns minutos, e saiu fora, a pretexto de que fazia calor e queria ver a tarde. A tarde era bela; o céu tinha todos os tons, desde o escarlate até o opala; ao nascente, algumas nuvens, raras e finas, manchavam de branco o fundo azul.

A casa ficava numa pequena elevação; Iaiá sentou-se numa pedra lisa, que servia de banco, e dali circulou um olhar pelo horizonte; depois desceu os olhos à cidade e ao mar, e esse espetáculo, tão saído deles, levou-a aos tempos, não mui remotos, em que entre ela e o pai nenhum coração viera interpor-se. No meio das reflexões, viu parar um homem, ao longe; era Jorge; vinha a pé, em atitude de quem medita. Passaria ele sem a ver? Ergueu-se; viu-o aproximar-se, parar de novo e olhar na direção da casa. Cortejou-o de longe e fez-lhe sinal para que subisse. Jorge obedeceu sem dificuldade.

Maria das Dores, doente de uma paralisia, ficou estupefacta quando viu entrar um desconhecido pela mão de Iaiá, interrogou a moça com os olhos, e Iaiá, depois de um instante de acanhado silêncio, respondeu com desgarre:

- É meu noivo, que vem vê-la. Quero que o conheça e não diga nada a ninguém, ouviu?

Dizendo isto, aproximou-o mais da paralítica. A boa velha contemplou-o alguns instantes, disse-lhe algumas palavras de conselho, pediu-lhe que fizesse feliz a sua filha de criação, e não obteve dele uma palavra ou um gesto de assentimento. Supô-lo comovido; mas ele estava simplesmente atônito.

Saindo fora da casa, assentaram-se à porta, na mesma pedra, assaz larga e extensa para dous.

- Foi preciso dizer-lhe aquilo - explicou Iaiá - porque eu desejo conversar com o senhor, e os noivos conversam mais à vontade. De mais, ela não é só paralítica; tem a vista fraca; amanhã posso substituí-lo, sem que ela dê pela mudança. Agora falemos de nós e daquela carta... E antes da carta, diga-me, sabia que eu estava aqui?

- Não; mas não vim até estes lados sem esperança de a encontrar. Já que fala na carta, deixe-me dar-lhe uma explicação; se a não dei até hoje, é porque não quisera voltar a um assunto, aborrecido para a senhora e para mim.

- Para o senhor?

- Para mim.

Iaiá apertou-lhe a mão com força.

- Vá - disse -; também tenho de lhe dizer alguma cousa grave; mas ouçamos primeiro a sua explicação.

- Oh! Custa pouco - acudiu Jorge -. Escrevi o esboço da carta por me parecer que podia ser-lhe agradável. Lembra-se que uma vez me havia falado naquele sentido? Duvidei mais tarde, e disse-lho. Contudo, havia tanta incerteza e contradição entre suas palavras e ações, que não era difícil supor alguma cousa; há paixões que começam assim caprichosamente. A carta era um meio de dizer ao pretendente que seus suspiros podiam não ser inúteis. Era isso; só isso. Confesso que adotei o papel mais passivo, desinteressado, e não sei até se... creio que a senhora já o qualificou de ridículo. A forma podia não ser grave, mas a intenção era afetuosa, e se merecia um riso, também merecia um aperto de mão. Esboçada a carta, não a mandaria sem mostrá-la; foi o que fiz; mas sua reprovação foi tão eloquente que me fez cair em mim e reconhecer que a carta era demais.

- Era de menos.

- Queria então que fosse eu próprio a Buenos Aires? - perguntou Jorge sorrindo.

- Queria, se ao chegar lhe dissesse: "Pense em outra cousa; Iaiá não o ama."

- Para isso, basta que lhe não diga nada.

- Não o ama - repetiu a moça -: não o ama, não o ama.

- Desta vez é sério e definitivo?

- Que admira? - replicou a moça com gravidade -. Não lhe parece a cousa mais natural do mundo que uma moça não ame o Procópio Dias? Não sei o que são os outros homens; poucos tenho visto; nossa vida é tão retirada! Mas, enfim, não me parece que o Procópio Dias seja homem de se ficar morrendo por ele. E contudo ele morre por mim. Meu coração perdoa-lhe; é o mais que pode fazer. Aceitá-lo seria impossível. Já reparou nos olhos dele? Tem às vezes uma expressão esquisita, que não vejo nos olhos de papai nem nos seus. Não gosto dele; não poderia gostar nunca.

Desta vez foi Jorge que lhe apertou a mão.

- Tem razão - disse ele -; se o não ama deveras está tudo acabado. Não lhe digo que ele fosse um noivo perfeito; não podia ser; mas aceitável era. Hoje percebo que entre a senhora e ele há alguns contrastes; mas o que é que não concilia o tempo? Esqueça o que lhe disse a tal respeito; e assentemos não falar mais de semelhante assunto. Provavelmente não escreverei nada; é duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vãs.

- A paz do meu espírito não valerá esse sacrifício?

- Vale mais; posso fazê-lo.

Iaiá refletiu.

- Não, não é preciso; não lhe diga nada; ele há de entender tudo.

Como fizessem uma pausa longa, viram duas ou três pessoas, que passavam embaixo, olharem para cima com certo ar curioso e indiscreto. Jorge ergueu-se.

- Estamos dando na vista - disse ele -; hão de supor que somos dous namorados.

- Sente-se - disse Iaiá em tom intimativo. E continuou: - Que perde o senhor com isso? Dirão que não tem mau gosto em amar uma moça bonita.

- Se dissessem que éramos dous namorados, erravam decerto, porque eu sei... eu suspeito que a senhora ama a outro. Uso dos meus direitos de confidente, exigindo que me diga a verdade.

- Toda - respondeu Iaiá -, e era esse o ponto grave de que lhe queria falar. Ainda uma vez, o senhor estima-me? Tem-me amizade sincera?

- Pois duvida?

- Eu duvido de tudo e de todos; até de mim. Mas, enfim, preciso de alguém que me ouça, a quem eu conte o que penso e o que sinto, e até o que receio, porque também receio, e há horas em que tremo sem saber de quê. É verdade, há ocasiões em que me parece que uma grande infelicidade vai cair sobre mim, e daí a nada penso justamente o contrário; penso que vou receber a maior felicidade do mundo, e fico alegre como um passarinho. Cousas de criança, não é?

- Não, cousas de moça. É certo que ama? A quem?

Iaiá olhou para ele algum tempo, satisfeita da impaciência que parecia ler-lhe na fronte.

- Respondo que sim e que não - disse ela -. Se me pergunta a quem amo, digo-lhe que não sei, não amo ninguém; mas sinto alguma cousa misteriosa e esquisita, e não sei... desconfio... não sei que seja. Por que é que as mesmas cousas, que me eram indiferentes, agora me parecem interessantes, e até chego a supor que me falam? Ainda há pouco, antes de o ver, estava a olhar embebida para o céu, quase sem pensar, mas ainda assim curiosa ou ansiosa; olhava para o céu e para o mar; o coração apertou-se-me; depois alargou-se-me como se quisesse devorar tudo. Há dias em que me levanto alegre e viva como uma criança; papai diz que são os meus dias azuis. Há outros em que tenho vontade de quebrar tudo, e não digo mais de duas palavras em cada hora; são os meus dias negros. Ouço às vezes uma voz que me fala; penso que é alguém e reconheço que a voz é a da minha própria imaginação. Tudo será imaginação, creio; mas é tão novo e tão bom! Em todo caso, parece-me extraordinário, e se não é loucura... É verdade, às vezes penso que vou ficar douda, e nessas ocasiões tenho medo. Será isso?

- Não - acudiu Jorge -, não é loucura, é sabedoria, é a grande sabedoria da natureza. Isso que sente não será amor; mas é a necessidade de amar, é o rebate que lhe dá o coração. Alguém virá um dia e a voz anônima que a senhora costuma ouvir lhe falará então pela boca do homem que o coração lhe apontar.

Iaiá escutava-o como encantada, mas sem olhar para ele. Quando Jorge acabou, fez-se entre ambos uma longa pausa. A moça tinha os olhos no horizonte onde as cores da tarde desmaiavam rapidamente. Jorge contemplava-a tomado de interesse e até de inveja; compreendia os primeiros sobressaltos desse coração em flor, e dizia a si mesmo que há sensações que o tempo leva para não restituir mais.

Iaiá acordou de suas reflexões.

- Francamente - disse ela -; o senhor não se ri de mim?

- Rir? A senhora não me conhece. Não há que rir de sentimentos sinceros; e seria pagar muito mal a confiança de que me dá prova. Não me julgue um espírito vulgar...

- Papai faz-lhe muitos elogios.

- Há de saber, ou fica sabendo que minha natureza simpatiza com o que está acima do comum. A senhora vale muito; posso dizer que há dous meses eu ainda a não conhecia...

- Não tente a minha vaidade - interrompeu Iaiá -; prefiro que me dê um bom conselho.

- Dou-lhe um - disse Jorge depois de curta pausa -; resista um pouco a essas sensações, cujo excesso pode perturbar-lhe a existência. Não é só o coração que lhe fala, é também a imaginação, e a imaginação, se é boa amiga, tem seus dias de infidelidade. Dê um pouco de poesia à vida, mas não caia no romanesco; o romanesco é pérfido. Eu, que lhe falo, lastimo não ter já essa ordem de sentimentos em flor, e contudo não sei se ganharia com eles.

- Quê! Não seria capaz de amar?

- Meu coração não envelheceu ainda.

- Entendo; amaria hoje de outro modo...

- De outro modo, e tão sinceramente como dantes; um amor de olhos abertos.

- Penso que o amor verdadeiro, ou ao menos o melhor, é o que não vê nada em volta de si, e caminha direito, resoluto e feliz aonde o leva o coração. Para que servem os olhos abertos?

- A senhora quer saber muita cousa - disse Jorge sorrindo -. Não basta que o coração lhe diga: ame a este; é preciso que os olhos aprovem a escolha do coração. Admira-se? Ouça-me até o fim; eu desejo preservá-la de alguma escolha má. Eleja um marido digno, um espírito que a entenda, que a admire, um homem que a possa honrar; não se deixe levar dos primeiros olhos que pareçam responder aos seus...

Iaiá abaixou a cabeça.

- Não acharei nenhuns - disse ela -; eu creio que este amor morrerá comigo...

Como essa ideia parecesse entristecê-la, Jorge sentiu-se tomado de compaixão, ao ver que persistia naquela aurora pura uma sombra de superstição romanesca. Pegou-lhe na mão, viu-a estremecer, recusar-lha e cruzar os braços.

- Tem medo de mim? - disse ele ao cabo de um instante.

- Tenho.

Jorge calou-se. Com a bengala entrou a reproduzir no chão umas reminiscências de geometria. Sentia-se atalhado, curioso, e tanto desejava como lhe custava sair dali. Não chegava a entendê-la claramente; a verdade, quando ia a tocá-la, parecia inverossímil. Entretanto, Iaiá não rompia o silêncio; tinha a fronte pendida e meditava. Talvez meditava na palavra que acabava de proferir, fruto da situação violenta em que ela própria ou os acontecimentos a haviam colocado. Era a rebelião do pudor. De quando em quando, sacudia a fronte como a expelir uma ideia enfadonha ou cruel. Numa dessas vezes, Jorge disse com brandura:

- Para que negá-lo? A senhora padece; não sei se com razão ou sem ela, mas parece padecer muito?

- Oh! Muito!

E dessa vez a palavra era tão angustiosa, tão sincera, tão vinda do coração, que ele cedeu antes a um impulso de generosidade do que à conveniência de não ser repelido segunda vez. Pegou-lhe nas mãos e pediu-lhe que fosse até o fim da confiança, dizendo-lhe a causa de seus males. Talvez ele pudesse removê-los.

Iaiá inclinou o rosto sobre as mãos de Jorge. Este sentiu nelas algumas lágrimas, vertidas sem soluços. Não passava ninguém; mas ele nem teve tempo de refletir na possibilidade de um estranho. Inclinou-se também e perguntou-lhe afetuosamente o que tinha. Iaiá ergueu a cabeça, e enxugou os olhos, mas não respondeu nada.

- A senhora não tem confiança em mim - disse Jorge.

- Há cousas que se não fazem, outras que se não dizem; algumas ficarão entre mim e Deus - retorquiu ela como se fizesse uma reflexão para si. Depois fitou-o e pediu-lhe a promessa de que não diria nada do que acabava de ver e ouvir.

- Essa promessa não se faz; está feita por si. Quanto ao seu segredo, não quero violentá-lo, mas tenho esperança de que a senhora mesma o há de dizer um dia; eu saberei obter-lhe esse resto de confiança que ainda me nega.

- Já! - exclamou a moça vendo Jorge levantar-se.

-Repare que a noite vem caindo; não posso ficar nem mais um minuto. Um confidente tem limites. Olhe; não peço muita cousa, mas desejo alguma cousa mais. Confidente é pouco, mestre é ainda menos. Dê-me outro título ou cargo; deixe-me ser seu... seu quê? Seu... seu irmão. Sim?

- Não! - disse ela energicamente.

Jorge empalideceu, como se acabasse de ver o fundo da alma da moça. A negativa era alguma cousa mais do que um capricho. Não retorquiu; estendeu-lhe a mão.

- Até quando? - disse ela.

- Até amanhã.

Três minutos depois, Jorge estava na rua. A noite descia rapidamente. Ele não olhou para trás; se olhasse veria a figura de Iaiá envolta já na meia sombra do crepúsculo. Veria mais; vê-la-ia refletir um pouco e espalmar a mão no ar, como uma ameaça, na direção em que ele ia.

Iaiá entrou na casa da doente.

- Seu noivo? - disse esta.

- Já foi.

- Quando é o casamento?

- O dia não sei - e depois de uma pausa -: mas que se há de fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.

XIV

Guiando para casa, Jorge ia agitado e inquieto; recapitulava a conversação que acabava de ter com a filha de Luís Garcia. O acaso propusera-lhe um enigma; o tempo dava-lhe a decifração. Seria a decifração? O espírito do moço recuava, não dava crédito à realidade, pelo menos à realidade aparente; mas esta impunha-se-lhe de quando em quando, e Jorge recompunha todas as circunstâncias daquelas últimas semanas e ainda dos meses anteriores. Que era a esquivança, a rispidez, a hostilidade de Iaiá, senão a máscara de um sentimento contrário, a vingança de um coração atordoado pelo suposto desdém de outro? Esta reflexão vinha tão de molde com os fatos dos últimos tempos, que era difícil achar mais ajustada explicação. Logo depois, considerava que seria absurdo atribuir à moça uma ligeireza e um desgarre inconciliáveis com a prudência que reconhecia nela, a despeito dos assomos de travessura intermitente.

- Impossível! - disse ele sacudindo o ombro.

Mas esse impossível tornava a descer às regiões da probabilidade, até galgar os limites da certeza. A observação lhe mostrava que Iaiá tinha a audácia no sangue, e a razão lhe dizia que um amor sem freio possui todas as imprudências e vertigens; que umas naturezas são estoicas, outras, rebeldes; finalmente, que há situações morais incomportáveis, e que a uma candura de dezessete anos é lícito não distinguir entre o sentimento que fala e a conveniência que restringe. Esta era a interpretação benévola; depois vinha a interpretação pessimista. Podia ser que todos aqueles atrevimentos encobrissem um cálculo - o cálculo da ambição, que intentasse trocar a beleza pelo benefício de uma posição ostensiva e superior. Quando essa suspeita lhe brotou no espírito, Jorge não sentiu diminuir a admiração nem a estima; porquanto, a ambição, se ambição havia, parecia ser de boa raça. Mas era impossível combinar o cálculo com as lágrimas daquela tarde, e ele as sentira quentes, silenciosas, e não podia crer que uma vida quase adolescente possuísse já a arte da hipocrisia.

Não há vida tão física ou tão alheia ao sentimento da personalidade, que em tal situação não padecesse, ao menos, trinta minutos de insônia. A insônia de Jorge durou mais algum tempo. De envolta com as conjecturas havia um pouco de satisfação pessoal. A certeza ou a probabilidade de que, sem nenhuma ação própria, iniciara nos mistérios do amor uma alma ainda nova e ingênua, dava ao coração dele alguma cousa da volúpia do egoísmo; sensação que, aliás, diminuiu quando lhe ocorreu que talvez esse amor obscuro lhe houvesse já custado lágrimas e desesperos. Ele tinha razão quando dizia não ser espírito vulgar. Afrouxara-se-lhe o ardor dos primeiros tempos, a imaginação tinha o voo mais curto; mas a generosidade juvenil ficara intacta, e com ela, a faculdade de ressentir as dores alheias.

"Pobre menina!" - dizia consigo.

No dia seguinte, Jorge examinou detidamente se lhe convinha tornar à casa de Luís Garcia, ao menos com a assiduidade do costume. A situação moral de Iaiá tendia a agravar-se com a presença contínua dele; em tais casos, a ausência era um ato de critério e até de misericórdia. Misericórdia foi o que ele disse consigo, e sorriu logo depois, com um sorriso de modéstia envergonhada. A verdade é que Jorge ansiava por lá voltar; tinha curiosidade de contemplar a sua obra, agora que a descobria ou presumia havê-la descoberto; se não é que a noite lhe trouxera uma sombra de dúvida, e ele queria verificar definitivamente a realidade.

De noite foi. Luís Garcia estava um pouso ansiado e abatido.

- Venha, doutor! - disse ele quando viu entrar o filho de Valéria -; este coração é o meu importuno.

A mulher procurava animá-lo; a filha tinha o terror nos olhos. Jorge auxiliou a família no trabalho de o confortar; três quartos de hora depois a moléstia cedia, e tornava ao trabalho surdo da destruição. Luís Garcia era outro, logo que passava uma dessas crises; tornava-se gárrulo e risonho, com o fim de reanimar ele próprio a família, e comunicar-lhe a esperança que lhe começava a faltar. Jorge não se deixou contaminar da ilusão; recordou a sentença do médico e sentiu a próxima extinção daquele homem. Iaiá não conhecia a sentença do médico; mas o espetáculo da aflição do pai tinha-a prostrado muito. Aparentemente não se lembrava da entrevista da véspera; podia até supor-se que, de quando em quando, não se lembrava da presença de Jorge.

Jorge achou-a nos subsequentes dias, tal qual era nos outros, menos travessa, porém, e muito mais senhora. Ao cabo de uma semana, trazia todos os elementos de convicção: "Ama-me!", pensava ele ao sair dali uma noite. A convicção, por mais que a suspeita o houvesse prevenido, atordoou o espírito de Jorge, que nessa mesma noite resolveu não voltar lá; resolução varonil, que durou quarenta e oito horas.

Alguns dias, três semanas, decorreram assim na mais aprazível familiaridade. Jorge, se não obtivera o título, exercia realmente as funções de irmão mais velho; era um guia, um conselheiro, uma autoridade. Escutava-a com interesse; recebia a confidência dos sentimentos da moça e as ambições de um coração cuja sede parecia contentar-se da água que pudesse conter a própria mão, no primeiro arroio do caminho. Ao mesmo tempo, buscava temperar-lhe o romanesco com uma forte dose de realidade.

Durante esse tempo, nenhuma frase igual às daquela tarde veio sacudir o espírito de Jorge; nenhuma lágrima lhe caiu nas mãos. Mas, se a palavra não vinha, a voz era insinuante e comovida, às vezes; se os olhos não choravam, luziam ou quebravam-se de um modo pouco comum. Jorge fingia não compreender; mais do que isso, forcejou por se persuadir a si próprio que não compreendia: resultado útil, que lhe dava a vantagem de saborear em silêncio o gozo de se saber amado, sem perder o de contemplar uma natureza original, moralmente exuberante e forte, que, além de tudo, tinha para ele a fascinação do mistério.

No fim daquelas três semanas encontraram-se em casa da paralítica. Não houve acordo, mas nada foi casual.

- Vou amanhã à casa de Maria das Dores - disse Iaiá uma noite, prestes a despedir-se dele.

E no outro dia de tarde, Jorge, que havia rareado os passeios daqueles últimos tempos, acertou de caminhar para ali, e com tão boa fortuna, que achou a moça sentada no mesmo banco de pedra em que lhe falara da primeira vez.

Outra vez, quando Iaiá ali voltou, já encontrou Jorge, ao pé da enferma. Maria das Dores estava ainda mais contente com a honra da visita do que com a esmola que ele dissimuladamente lhe levara envolvida em um lenço de ramagens. Jorge animava-a, dizia-lhe que ainda iriam à Penha naquele ano. Iaiá parou à porta, espantada e contente.

- Venha - disse a enferma -, ande ver como seu noivo está caçoando com a velha.

- Agradeço-lhe - disse Iaiá -; creia que ela merece todas as consolações.

Na noite desse dia, quando Jorge entrou em casa, um pouco inebriado da entrevista, achou uma carta de Procópio Dias, que o encheu de contentamento. Procópio Dias tinha necessidade de se demorar ainda uns dous meses. Dous meses! Era a eternidade. Jorge sentiu-se confortado com a notícia de tão longa ausência. Que importava a presença, se ela o não amava? Essa reflexão não a fez Jorge, mas a filha de Luís Garcia, quando ele lhe deu a notícia da carta:

- Que tenho eu que ele esteja ausente ou presente? Ele ou um estranho é a mesma cousa.

A eternidade foi um minuto; os dous meses voaram como um tufão. Um dia, no último desses dous meses, Iaiá disse ao filho de Valéria que achara enfim um marido.

- Um marido? - repetiu Jorge empalidecendo.

- Parece que um marido. Não me aprova?

- Se ainda o não conheço.

- Não sei se é um marido - continuou Iaiá depois de um instante -; mas achei o homem a quem amo.

- É a mesma cousa.

- Ou quase.

Houve entre ambos uma longa pausa, durante a qual Iaiá tinha os olhos fitos no moço, enquanto este não tinha os seus em parte nenhuma; vagavam de um ponto a outro. Iaiá repetiu que achara um marido.

- É a segunda vez que me diz isso - redarguiu Jorge com a voz trêmula e irritada -; se o achou, tanto melhor; casará com ele.

- Não me disse uma vez que não me deixasse ir com os primeiros olhos que parecessem responder aos meus? Não me disse que era conveniente escolher um homem...

- O que eu disse foram palavras sem sentido - tornou Jorge -; não se dão conselhos ao coração que ama. O casamento vem talhado do céu, segundo diz o povo; outros dirão que vem do acaso, ou é o destino de cada um, ou é uma loteria. A senhora não me pede certamente que lhe diga o número em que há de sair a sorte grande? Compre o bilhete e deixe correr a roda. Alguns dias de paciência e nada mais...

A excitação de Jorge era extraordinária, mas não foi longa. Alguns instantes de silêncio bastaram a aplacá-la ou diminuí-la; pelo menos o gesto não traiu a agitação interior. Pálido, sim, estava pálido; mas a voz, se não era firme, perdera a aspereza do primeiro instante.

- Refleti depois da nossa conversa - disse ele -, e não desejo tomar nenhuma responsabilidade em um ato de que depende a felicidade de sua vida.

- Então, não me estima, é o que é - disse Iaiá em voz queixosa.

Jorge respondeu com um olhar, e a resposta que ele quisera fosse um simples protesto, transgrediu esse limite: foi um protesto, uma queixa e acaso uma interrogação. Iaiá abaixou os olhos; uma onda de sangue lhe avermelhou a face; Jorge viu-a ofegante e acanhada durante alguns segundos. Não indagou o motivo; ergueu-se para sair. Iaiá reteve-o pela aba do fraque.

- Nega-me então todo o auxílio? - disse ela -. Depois de alguns meses de uma vida em que me acostumei a ouvir seus conselhos, o senhor recusa-me este. Que lhe fiz eu?

- Nada.

Jorge saiu. "Que tenho eu que ela ame, que se case ou não se case? Sou eu seu pai? Seu tutor?" Quando assim falava, sentia dentro de si uma resposta; a consciência desvendava-lhe a realidade. "Sim, tu amas" - dizia-lhe ela, - "tu não fazes outra cousa há dous meses; deixaste-te envolver nos fios invisíveis; não sentiste que essa intimidade de todos os dias era a gota d'água que te cavava o coração. Ah! Tu querias saciar a curiosidade e sair dali sem deixar alguma cousa, sem receber também alguma outra cousa? Não se brinca com um inimigo; e ela o era, e continuará a sê-lo, porque tu estás definitivamente atado."

A esta voz importuna e verdadeira, Jorge erguia os ombros. Tentou refugiar-se no sono. O sono rejeitou-o de si. Então fumou, desceu à chácara, fatigou o corpo para melhor adormecer o espírito; mas a lua que batia no repuxo mostrava-lhe ora um casebre de Santa Teresa, ora uma varanda da Tijuca, como se fossem o verso e o anverso da medalha de seu coração, toda a história da vida que ele vivera até ali. A diferença entre uma e outra dessas duas fases é que presentemente o desengano não o levaria à guerra, nem lhe daria os desesperos do primeiro dia. Não; Jorge levantou-se na manhã seguinte um pouco atordoado, mas não inteiramente abatido. Sentia alguma opressão moral, um desejo de saber quem era o adversário preferido. Merecê-la-ia? Que a merecesse, embora; ele tinha um direito anterior e superior; desde que a amava, excluía todos os outros.

À força de pensar naquilo, chegou a entrever a realidade; perguntou a si mesmo se a declaração da moça não seria antes um estratagema. Podia ser; tinha-a visto corar, inclinar o colo, ficar por algum tempo acanhada e comovida. Essa conjectura desabafou-lhe um pouco o espírito, e, por isso que era a conjectura da esperança, não tardou em transferir-se a evidência. Relembrou todas as ações de Iaiá, suas palavras, as circunstâncias e os termos de reconciliação, as lágrimas sem motivo, a paciência, o interesse, o gosto de o conversar; finalmente, esse quê misterioso que divulga a uma alma a preferência de outra. Quando pouco a pouco lhe penetrou no coração essa ideia, Jorge reconheceu que havia sido precipitado. Queria escrever-lhe e recuou; queria lá voltar, mas resolveu o contrário.

"Se é um estratagema", pensou ele, "ela terá nisto o seu castigo; se verdadeiramente ama a outro, que vou lá fazer agora?"

Pensou isto; pensou mais; só não pensou em Estela.

Iaiá não se pôde conter. Ao cabo de sete dias de ausência determinou ir ao lugar onde mais de uma vez encontrara o filho de Valéria.

- Vai chover - disse Luís Garcia -; guarda a visita para amanhã.

Iaiá teimou na resolução.

- É uma nuvem que passa - disse ela -; em saindo a lua verá como o tempo fica limpo.

Estava inquieta, preocupada, tinha estremecimentos nervosos; não atendeu à segunda observação do pai. O pai dizia-lhe que não havia necessidade de desobedecer para realizar um capricho. Como repetisse a expressão, Iaiá ficou pálida e não ousou responder; mas Estela, que assistia calada aos conselhos de um e à resistência de outro, disse sorrindo à enteada:

- Vá, seu pai deixa-a ir.

Iaiá ia agradecer a intervenção; mas, quando os olhos das duas mulheres se encontraram, detiveram-se por um instante longo. Poucos minutos depois chegava a moça à casa de Maria das Dores. Despediu Raimundo; a porta estava aberta; entrou. Da sala, onde se deteve, ouviu noutra sala interior a voz de Jorge.

- Não se esqueça; há de entregar-lhe isto, quando ela vier; não mande lá à casa; é um livro.

Iaiá entrou.

- Não contava comigo? - disse ela.

- Não; por isso deixava-lho este livro - respondeu Jorge tirando o embrulho à doente e entregando-o à moça -; é um romance, creio que lhe falei nele uma vez.

Iaiá tomou-lhe o livro, abriu-o, folheou-o com sofreguidão, como certa de achar uma página marcada. Estava marcada uma página e a marca era um bilhete. Abriu-o; dizia assim:

A senhora deu-me uma vez um título que eu esperei viesse a ser verdadeiro. Diga se me enganei, se o céu lhe destinou outro noivo, ou se meu coração pode ter ainda uma esperança. Não lhe custará muito; não custa muito uma simples palavra.

Enquanto ela lia rapidamente estas linhas, e tornava-as a ler, Jorge afastou-se até à sala da frente. A carta era das que não permitem a presença do autor; precisam do prestígio da ausência; são, para assim dizer, expressões truncadas que a imaginação perfaz e amplia. Jorge ia a sair, quando ouviu o rumor dos passos de Iaiá; deteve-se a esperar a resposta. A moça parou diante dele, e entre ambos houve um momento de silêncio e hesitação.

- Cego! - disse enfim Iaiá estendendo-lhe as mãos com um ar de simplicidade e confiança.

Jorge recebeu-as nas suas, e a linguagem que a alma não quis confiar do lábio do homem, eles a disseram com os olhos, durante alguns minutos largos. Jorge perguntou finalmente:

-É certo? Ama-me?

Iaiá cingiu-lhe o pescoço com os braços e inclinou a cabeça com um gesto de submissão. Jorge inclinou-se também, e nos cabelos, nos fios de cabelo que lhe pendiam na testa pousou o mais puro e fugitivo dos beijos. Ao contacto daquele lábio, Iaiá enrubesceu e estremeceu toda; mas não fugiu, não retirou os braços; deixou-se ficar subjugada e feliz.

Homero conta que Vênus, descendo ao campo da batalha entre gregos e troianos, saiu dali ferida e ensanguentada. Iaiá teve a sorte da diva homérica; interpondo-se entre Jorge e Estela trouxe dali ferido o coração. Naquele espaço de alguns meses, obra de paciência e luta, de violência e simulação, para o qual fizera convergir todas as forças morais, não suspeitou que, vencendo ao outro, podia vencer-se a si mesma. Queria ser uma barreira entre o passado e o presente, sem cogitar na dificuldade do plano, nem nas consequências possíveis dele. Sobretudo, não pensou na moralidade da ação. Que podia ela saber disto? A suspeita ia até admitir a persistência do amor no coração da madrasta, mas não lhe atribuía mais do que uma aspiração ou saudade silenciosa; não sabia mais. Para combater esse inimigo inerte, é que pôs em campo a porção de astúcia que a natureza lhe dera, as graças do rosto e a rara penetração de espírito.

Iaiá transpôs a soleira e saiu; precisava de ar, de espaço, de luz; a alma cobiçava um imenso banho de azul e ouro, e a tarde esperava-a trajada de suas púrpuras mais belas. Jorge acompanhou-a; a comoção dele era sincera e forte, mas menos intensa, menos desvairada que a de Iaiá, cujos olhos pareciam dizer a tudo o que a rodeava, desde o sol poente até ao último grelo de capim: "olhai, vede as bodas do meu coração; este é o meu amado".

Perto da noite, Raimundo veio buscá-la; Jorge acompanhou-a. Iaiá lembrou-se de traçar com um grampo, no musgo que reveste o aqueduto, o nome de Jorge e a data; instando com ele, Jorge escreveu também o nome dela. Raimundo sorria entre dentes. Em caminho falaram do presente e do futuro; e, num intervalo, tocaram levemente no passado.

- Sabe que eu tinha um desgostozinho? - disse Iaiá.

Jorge interrogou-a com os olhos.

- É verdade, um capricho - continuou ela -. Quisera que o senhor nunca tivesse gostado de outra pessoa, e é bem possível que não seja este o primeiro amor de seu coração.

- Não é - respondeu Jorge depois de um instante de reflexão -. Amei uma vez, há muito tempo; mas todo esse passado acabou.

- Está certo de que acabou?

- Criança! Que noiva receou nunca de um amor antigo, começado e acabado, antes dela ser amada também? Que o novo amor seja sincero e fiel, eis o que se deve pedir e exigir. Quanto ao passado, é como os defuntos; reza-se por ele, quando se reza.

- Tenho medo de almas do outro mundo - tornou Iaiá sorrindo.

Iaiá mostrou-se tão expansiva naquela noite e nos seguintes dias, derramou de tal modo a vida que a enchia, que Estela compreendeu tudo o que se passava entre a enteada e Jorge. Há uns amores, aliás verdadeiros, a que precedem muitas contrafações; primeiro que a alma os sinta, tem despendido a virgindade em sensações ínfimas. Iaiá ignorava tudo; não soletrara o amor, aprendera-o de um lance. Trazia o coração intacto. Seu acordar foi uma aurora súbita, mas rutilante e límpida. No meio da embriaguez que lhe dava o novo sentimento, não cogitou nas possíveis consequências dele; não perguntou a si própria se era verdade que no coração da madrasta havia uma saudade ou uma esperança silenciosa, e se isso podia ser a raiz de largos ódios e dissensões domésticas. Não interrogou o futuro. Fenômeno curioso! A lembrança do pai foi por um instante esquecida; o egoísmo do amor devorou-a.

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