Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

XII

Quinze dias depois, Procópio Dias apareceu em casa de Jorge com luto no vestuário e no rosto. De Buenos Aires chegara-lhe na véspera, à tarde, a notícia da morte de um irmão, seu último parente, notícia que o obrigava a embarcar no dia seguinte e demorar-se no rio da Prata cinco a seis semanas. Não se pode dizer que ele estivesse triste; estava sério, sério e preocupado. A viagem a Buenos Aires não tinha por fim o cadáver do irmão, mas a herança, que posto não fosse grande, valia alguma cousa.

Procópio Dias ofereceu seus serviços ao filho de Valéria, que de sua parte prometeu-lhe algumas cartas de apresentação, se precisasse. Procópio Dias aceitou uma. Jorge levou-lha no dia seguinte. Ele recebeu-a com demonstrações de agradecido e quase terno. E depois de um momento de silêncio:

- Já agora entrego-lhe pessoalmente esta carta, que devia ser levada amanhã por um portador.

Jorge quis abrir:

- Não - acudiu o outro -; prometa-me que só a abrirá amanhã.

- Por que não hoje de noite?

- Podia ser hoje de noite; mas é bom que entre a impressão da despedida e a leitura desse papel decorra o espaço da noite e o sono. Talvez seu juízo seja diferente.

Jorge prometeu. Procópio Dias partiu. No dia seguinte abriu a carta e leu estas poucas palavras: "Seja o meu anjo de guarda durante a minha ausência."

"Por que não?" - disse ele consigo.

De tarde, saiu a cavalo, costeando o aqueduto, segundo costumava, e ia pensando seriamente na conveniência de casar os dous. Naquelas duas semanas tivera tempo de apreciar um pouco as qualidades da moça, que lhe pareceram boas, conquanto lhe achasse também alguma cousa original, misteriosa, ou romanesca, muito acima da compreensão ou do sentimento de Procópio Dias. Jorge não se iludia acerca da paixão do pretendente; supunha-a sincera, mas não lhe atribuía a virgindade das primeiras ou das segundas comoções: era uma paixão da última hora, um ocaso ardente e abraseado entre o dia que lá ia, e a noite que não tardava a sombrear tudo. Ainda assim a aliança lhe parecia conveniente. Iaiá possuía decerto a força necessária para dominar desde logo o marido; e o titão encadeado teria ao pé de si, em vez de um abutre a picar-lhe o fígado, uma formosa rola destinada a prolongar-lhe as ilusões da juventude.

Se eram boas as impressões que Iaiá lhe deixara nos últimos dias, não eram ainda assim isentas de algum enfado, aliás passageiro. Uma ou duas vezes, Iaiá lhe pareceu singularmente áspera, e sem motivo nem duração. Esses assomos, porém, eram logo compensados por uma afabilidade, que parecia mais viva, mais ruidosa, talvez um pouco importuna. Ocasião houve em que Estela disse à enteada, com um sorriso de repreensão:

- Não amofines o Sr. doutor Jorge.

Não compreendeu Jorge por que motivo essa palavra simples, dita em tom brando, deu ao rosto de Iaiá uma expressão indignada; lembrava-se porém que a expressão foi passageira e que ela passou do singular amuo à habitual alegria:

- Bem vê - replicou Estela -, bem vê que é uma criança.

Jorge ia assim a refletir, e já de volta, quando ouviu uma voz que dizia o seu nome. Era Iaiá que descia da casa da velha ama. Jorge parou o cavalo.

- Em que vai pensando? - disse ela.

- Na senhora - respondeu o moço afoutamente, depois de verificar que ninguém os podia ouvir.

Iaiá caminhou até à rua, acompanhada de um homem velho, o irmão de Maria das Dores.

- Que anda fazendo aqui? - continuou Jorge inclinando o busto sobre o pescoço do cavalo.

- Vim visitar a Maria das Dores. Coitada! Está tão abatida!

- Bem; eu logo lhe direi o que é; vá ver a doente.

- Já a vi; volto agora para casa. O Sr. João vai acompanhar-me.

Jorge apeou-se.

- Deixa-me acompanhá-la também? - perguntou.

- Deixo; mas é só por ser curiosa. Quero saber o que ia pensando a meu respeito. Vamos, Sr. João?

Jorge enfiou a rédea no braço e colocou-se ao lado dela; Iaiá tomou-lhe afoutamente o outro braço.

- Vá, conte-me tudo.

- O Procópio Dias embarcou hoje...

Iaiá, que já havia dado os primeiros passos, estacou.

- Para onde? - disse.

- Para o rio da Prata; morreu-lhe um irmão em Buenos Aires

- Mas sem se despedir de nós!

- Naturalmente, custava-lhe fazê-lo, e quis poupar-se à dor da separação. Esteve porém comigo, e prometeu-me que a demora seria curta. Vi-o muito aflito com a viagem, tão aflito que não sei se lhe diga que era... era, decerto, era maior a dor da viagem do que a da morte do irmão. Talvez lhe faça injúria nisto, mas parecia.

- Por quê? - perguntou a moça erguendo os olhos para ele.

- Não sei se lhe deva dizer por quê - acudiu Jorge -. E daí, não se tratando de nenhuma cousa do outro mundo... É verdade que as moças bonitas, como a senhora, costumam ser cruéis... Não sei... Há situações um pouco...

- Ridículas - concluiu Iaiá.

- Como ridículas?

- Por exemplo, a sua.

Jorge enfiou um pouco; mas a um homem de sociedade, Iaiá não parecia de força a fazer perder o equilíbrio. Sorriu levemente e retorquiu sem azedume:

- Não é ridículo ser afetuoso; eu cuidava responder à linguagem de seu coração.

- Supunha que a ausência de Procópio Dias me deixava saudades...

- Supunha.

- Que tem o senhor com isso?

A resposta de Jorge foi um simples gesto negativo. Contudo, não pôde zangar-se, porque sentia tremer o braço da moça, e olhando de esguelha para ela via-a pálida e com os olhos no chão. Se a palidez e o tremor eram de cólera, não chegou a sabê-lo; mas provavelmente não era outra cousa, porque, ao cabo de três a quatro minutos, Iaiá ergueu os olhos e estendeu-lhe a mão, dizendo:

- Façamos as pazes.

- Nunca estivemos em guerra, acho eu.

- Talvez em véspera de guerra.

- Não por culpa minha...

- Nem minha - acudiu a moça. E erguendo o chapelinho de sol para o céu: - Talvez por culpa daquele - disse ela suspirando.

Após o suspiro, veio uma risadinha seca e forçada, mas longa ainda assim como o som de um golpe no cristal. Tinham andado poucos minutos, e esses poucos eram já de sobra para espertar a curiosidade de Jorge, e para lhe dar direito a pedir uma explicação. Jorge pediu-lha em termos afetuosos, perguntando por que razão era o céu culpado em uma guerra que devia romper entre ambos, e sobretudo qual seria o pretexto dessa guerra. Iaiá refletiu um instante, e começou a falar com os olhos baixos.

- O motivo é o senhor mesmo - disse ela.

- Eu?

- O senhor, que é meu inimigo, que me detesta. Não me dirá que mal lhe fiz eu? - continuou ela erguendo subitamente os olhos -. Escusa fazer esse gesto de espanto; sei que o senhor me detesta, e por mais que pergunte a mim mesma - não sei, não me recordo... Diga, fale com franqueza.

- Tanto melhor! - exclamou Jorge -. Vejo que havia entre nós um equívoco e é chegada a ocasião de o desfazer. Quer que lhe fale com franqueza? O inimigo não sou eu, é a senhora; é a senhora, ou antes, era ou parecia ser. Agora compreendo; retribuía-me a aversão que supunha haver em mim. Tanto melhor! Façamos as pazes de uma vez.

Iaiá apertou a mão que ele lhe ofereceu e chegaram alegremente a casa. Jorge quis retirar-se logo, mas a moça ordenou a Raimundo que conduzisse o cavalo, e Jorge foi compelido a entrar por alguns minutos. Luís Garcia não estava em casa. Estava o Sr. Antunes. Iaiá mal deu tempo aos primeiros cumprimentos.

- Ande jogar comigo, disse ela.

- Em boa paz?

- Em boa paz.

Iaiá preparou o xadrez, no gabinete contíguo à sala; Jorge sentou-se pacientemente diante da adversária, retificou a posição de duas peças, excluiu as que lhe dava de partido e adiantou o primeiro peão.

- Vá - disse -, é a sua vez.

Iaiá não obedeceu ao convite. Olhava para ele, com ar inquieto.

- Dá-me sua palavra de honra de que me não negará o que lhe vou perguntar? - disse ela ao cabo de alguns instantes de silêncio.

Jorge hesitou um pouco.

- Conforme.

- Exijo.

"Que me pedirá ela que lhe não possa afirmar?", pensou Jorge. E em voz alta respondeu:

- Dou.

- Foi ele quem lhe encomendou...

- O sermão? - interrompeu Jorge sorrindo -. Serei franco; foi ele mesmo.

Iaiá baixou os olhos ao tabuleiro, cavalgou a torre com o bispo, como distraída, e em voz ainda mais baixa do que lhe falara, perguntou:

- O senhor é homem de segredo?

- Sou - redarguiu afoutamente Jorge.

- Pois bem - continuou Iaiá -, eu gosto dele, gosto muito, mas não desejo que ele saiba.

- Deveras? Não está gracejando?

- Não estou.

Jorge estendeu-lhe a mão:

- Magnífico - disse ele alegre -; não é preciso mais. Uma vez que se amam, virão naturalmente a...

Não pôde acabar, porque a moça, erguendo-se de súbito, afastou-se da mesa, com um arremesso, e dirigiu-se à janela, que dava para o jardim. Jorge ficou espantado. Não entendia o que estava vendo. Inclinou-se sobre o tabuleiro e começou a mover as peças, sozinho, sem plano, maquinalmente. Assim jogando, ouvia o som do tacão de Iaiá que feria o ladrilho do chão, com um movimento precipitado e nervoso. Durou isto cinco minutos. Iaiá voltou-se para dentro, saiu da janela e aproximou-se da mesa. Jorge ergueu então a cabeça para ela e sorriu.

- Não me dirá que lhe fiz eu, para ficar tão zangada comigo? - perguntou com benevolência.

- Nada; eu é que fui estouvada e não sei se mais alguma cousa.

Jorge protestou que não.

- Foi ríspida somente - disse ele -; e se o foi sem querer, não foi sem motivo. Não me dirá que motivo é esse? Parece-me que não a tratei mal...

- Não.

- Nesse caso, o motivo está na senhora mesma; e se eu não tivesse medo de que se zangasse outra vez comigo, atrevia-me a pedir-lhe que me dissesse tudo - ou pelo menos alguma cousa.

- Para quê? Vamos jogar.

- Está escurecendo.

- Mando vir luzes.

Vieram luzes; começaram a jogar. Entre eles o xadrez não podia oferecer interesse, mas, dado que o pudesse, não seria naquela ocasião. Um e outro estavam distraídos e preocupados. A primeira partida foi concluída, em pouco tempo, quase sem cálculo.

- Outra? - perguntou Iaiá.

- Vamos.

- Antes de começar - disse ela colocando as peças, e sem olhar para Jorge -, quero dizer que tem um meio seguro de nunca brigar comigo.

- Qual é?

- É ser meu confidente.

- Senhor de seus segredos?

- Todos.

- O meio é fácil; só eu ganho na troca.

- Nisso dou prova de grande coração.

Já não era a menina ríspida de alguns instantes; dissera as últimas palavras com muita graça e placidez. Ao mesmo tempo, continuava a arranjar metodicamente as peças. Acabou e reclinou-se no dorso da cadeira.

- Não me declarou ainda se aceitava - disse ela.

Jorge hesitou um instante. Era gracejo ou proposta séria? A um gracejo responde-se com outro, a uma proposta responde-se com seriedade. Jorge hesitava em tomar sobre os ombros uma parte de responsabilidade dos sentimentos da moça. Quais seriam eles? Que projetos despertariam naquele cérebro provavelmente indomável? Não podiam ser outros senão os de casamento com Procópio Dias, visto que ela confessava amá-lo. Esta reflexão fê-lo declarar afoutamente que aceitava a confidência.

- Sabe o que aceita? - perguntou Iaiá.

- Farejo.

- Toque! - disse ela estendendo-lhe a mão.

Jorge deu-lhe a sua.

- Não se trata em todo caso de nenhum assassinato? - perguntou rindo.

- Não.

A segunda partida foi mais animada, mas só por parte de Iaiá. A moça ria às vezes, mas a maior parte do tempo fazia convergir toda a sua atenção para o jogo. Quando falava, era moderada e dócil. Essa alternativa e contraste de maneiras interessava naquele momento o espírito de Jorge. Que espécie de mulher fosse, imperiosa como uma matrona, travessa como uma criança, incoerente e enigmática, era cousa que ele não podia em tão pouco tempo descobrir; mas o enigma aguçava-lhe a atenção. Enquanto ela tinha os olhos no tabuleiro, Jorge buscava ler-lhe a alma na fronte lisa e cândida; mas não via a alma, via só uns fiapos castanhos do cabelo, que lhe caíam sobre a testa e esvoaçavam levemente ao sopro da aragem que entrava pela janela, e lhe davam um ar de puerícia. A boca fina e pensativa corrigia aquela expressão da cabeça; era a primeira vez que ele lhe descobria um forte indício de energia e tenacidade.

Quando era a vez de Jorge, Iaiá afastava o busto, reclinava-se no espaldar da cadeira e ficava a olhar para ele, como ele havia olhado para ela. Mas nesse olhar não cintilava curiosidade; era uma luz velada e baça, como alheia ao mundo exterior. Encontravam-se assim os olhos de um e de outro, e a partida continuava, até chegar ao fim sem novo incidente.

Prestes a acabar, Estela entrou no gabinete, sem os interromper. Sentou-se caladamente a um canto da janela. O jogo cessou no momento em que entrou Luís Garcia.

- Perdi duas partidas, papai - disse a moça -; mas por um triz não ganhei a segunda.

Jorge quis sair logo depois; foi obrigado a demorar-se, porque Iaiá lembrou-se de ir tocar piano. Era a primeira vez que Jorge conseguia ouvi-la. A moça escolheu uma página de Meyerbeer; Jorge confessara uma vez que era esse o autor de sua predileção.

No dia seguinte a impressão deste era um tanto complexa e perplexa. Aquela mistura de franqueza e reticência, de agressão e meiguice dava à filha de Luís Garcia uma fisionomia própria, fazia dela uma personalidade; mas a fisionomia era ainda confusa e a personalidade, vaga. Jorge sentia-se empuxado e retido, ao mesmo tempo, por dous sentimentos contrários; tinha curiosidade e repugnância de penetrar o caráter da moça, e conhecer e distinguir os elementos que o compunham. O que lhe parecia claro e definitivo era que as primeiras palavras de Iaiá, tão duras e tão secas, não passavam de uma expressão de despeito, por supor da parte dele a aversão que não existia; e, se as palavras em si o magoavam, a explicação lisonjeava-lhe o amor próprio. O resto era inexplicável. Jorge resolveu, entretanto, não lhe falar mais de Procópio Dias, apesar da confissão, aliás contrastada ou diminuída pelo gesto que se lhe seguiu.

Iaiá pareceu perder a disposição agressiva; à força de afabilidade, apagou inteiramente os vestígios da antiga rispidez. A alma não se lhe tornou mais transparente, nem o caráter menos complexo; mas a esquisita urbanidade dos modos fazia suportáveis os saltos mortais do espírito, e aumentava o interesse do que havia nela obscuro ou irregular; finalmente, era um corretivo à tenacidade com que a moça confiscava literalmente o filho de Valéria. Jorge estimou, sobre todas, esta circunstância, porque lhe tornou mais fácil a frequência da casa. Ele pertencia ao pai ou à filha - muitas vezes aos dous. Iaiá atirou-se ao xadrez com um ardor incompreensível, e dizendo-lhe Jorge que era preciso ler alguns tratados, ela pediu-lhe um, e porque ele só os tivesse em inglês, Iaiá pediu que lhe ensinasse inglês.

- Mas eu sou um mestre muito ríspido - observou ele.

- A discípula é muito pior.

Estela assistia algumas vezes às lições do idioma e do jogo; duas cousas que lhe pareciam incompatíveis com o espírito da enteada. Verdade é que Iaiá mudara tanto naquelas últimas semanas! Não lhe supusera nunca tão longa paciência, nem tão repousada atenção. Iaiá gastava uma a duas horas por dia a decorar os verbos e os substantivos da nova língua, e essa paixão recente tinha o condão singular de irritar a madrasta. Jorge, pelo contrário, sentia em si os júbilos do pedagogo. O professor é o pai intelectual do discípulo; Jorge contemplava paternalmente aquela inteligência fina, paciente e tenaz, servida por dous olhos de pomba e duas mãos de arcanjo.

No meado de fevereiro tornaram a falar de Procópio Dias, a propósito de uma carta que Luís Garcia recebera.

- Veja lá - disse a moça -; ele escreveu a papai e nem uma palavra especial para mim. "Lembranças a D. Estela e a Iaiá." Nada mais. Ele escreveu-lhe?

- Até agora, não.

- Não há nada como a ausência para fazer esquecer tudo - isto é, esquecer os que ficam. Talvez já não pense em casar comigo. Foi um capricho que passou, como todos os caprichos; foi como a chuva de ontem, que deu apenas alguns salpicos de nada. E contudo parecia que vinha abaixo o céu. Não é? A paixão dele não é como a trovoada? Ameaçou no Rio de Janeiro e foi cair em Buenos Aires. Aposto que vem de lá casado. Verá que não é outra cousa. Que me diz a isso? Vamos; diga alguma cousa.

- Não posso - redarguiu Jorge -. A senhora deu-me o cargo de confidente e não de conselheiro; limito-me a ouvi-la. Verdade é que o tal cargo até agora parece simples sinecura.

- Que é sinecura?

Jorge sorriu e definiu-lhe a palavra.

- Não é sinecura - acudiu Iaiá -; pelo contrário, é um cargo muito espinhoso.

- Não creio. A confidência única até hoje não me pareceu sincera. A senhora não ama o Procópio Dias.

Iaiá franziu a testa.

- Por que me diz isso?

- Porque, se o amasse, falaria de outro modo, e sobretudo não falaria tanto. O amor, nessa idade, vive de reticências, não de frases e menos ainda de frases tão compostas.

- Cale-se! - interrompeu ela batendo-lhe com a gramática na ponta dos dedos. E depois de uma pausa -: Se ele lhe escrever, mostra-me a carta?

Como Jorge lhe dissesse que sim, Iaiá fez um movimento para rasgar o volume em dous pedaços. Jorge perguntou-lhe o que tinha.

- Nervoso! - respondeu a moça, sacudindo os ombros com um calefrio. Depois, como a amparar-se, lançou-lhe a mão a um dos pulsos. Jorge sentiu a pressão de uns dedos de ferro; e parece que outros dedos invisíveis também comprimiam as faces da moça, vermelhas como se vertessem sangue.

XIII

Jorge achou em casa, nessa mesma noite, uma carta de Buenos Aires. Procópio Dias narrava-lhe a viagem e os primeiros passos, e dizia ter toda a esperança de se demorar pouco tempo. Tudo isso era a terça parte da carta. As duas outras terças partes eram saudades, protestos, expressões de sentimento, e um nome no fim, um nome único, e que era a chave do escrito. Jorge leu atentamente essas confidências, e na mesma noite esboçou uma resposta. Não era fácil combinar a discrição que quisera conservar em suas relações com Procópio Dias e a necessidade de lhe mandar algumas esperanças. Embora com esforço, redigiu a resposta conveniente, contando-lhe as boas impressões que tinha; só as boas, não lhe disse as duvidosas; sobretudo não desceu a nenhuma realidade, a nenhum nome próprio; nada mais que uma extensa série de locuções igualmente animadoras e vagas.

No dia seguinte não foi à casa de Luís Garcia; choveu torrencialmente. Mas no outro dia foi, logo depois do jantar. Achou reunida a família.

- Good evening, my dear mestre! - bradou Iaiá logo que o viu entrar na sala.

- Faltava mais uma língua a esta tagarela - disse Luís Garcia rindo -; daqui a pouco tempo ninguém a poderá aturar.

Jorge não esperava, decerto, encontrar na moça a mesma expressão que lhe deixara na antevéspera, quando de um gesto nervoso lhe comprimira o pulso. Tinham passado quarenta e oito horas, e para que ela se restabelecesse bastariam apenas quarenta e oito minutos. Contava com a mudança; não obstante, procurou ler-lha nos olhos, e achou-os tão alegres como o tom em que ela o saudara. A lição isolou-os, e foi também o pretexto mais favorável para lhe mostrar a carta de Procópio Dias. Iaiá viu-a selada e compreendeu tudo; arrebatou-a às mãos de Jorge.

- Ah! - disse este -. Seu gesto vale um discurso.

- Posso ler?

- Pode.

Iaiá desdobrou a carta e leu-a para si. Enquanto lia, Jorge fitava-a. Não lhe via nenhuma confusão, alvoroço ou alegria; os olhos seguiam lentamente de uma linha a outra, e a mão firme voltava a página. No fim, quando leu o próprio nome, teve um movimento de tédio, e inconscientemente amarrotou o papel; mas emendou-se logo, alisou a carta com a mão e restituiu-a silenciosamente. Durante alguns segundos ocupou-se em traçar com um lápis alguns círculos na margem da folha aberta da gramática; ergueu enfim os olhos e perguntou sem rir:

- Acredita no que diz essa carta?

- Acredito; tudo o que está aí escrito, já o ouvi de viva voz, e com a mesma sinceridade e calor. Quem sabe? Pode ser que seja o primeiro amor desse homem.

- O primeiro... o primeiro... - repetiu ela entre dentes.

- Talvez o primeiro - insistiu Jorge -; e para uma moça, acho que deve ter algum encanto ser amada por um homem considerado superior às paixões. A vida de Procópio Dias teve sempre outra ordem de interesses...

- Conhece-o há muitos anos?

- Há muitos, não; conheço-o desde o Paraguai.

- Acha que eu fazia bem em me casar com ele?

- Bem ou mal, conforme o amor que lhe tiver. Esse é o ponto necessário, e em meu conceito, o ponto duvidoso. Receio que a senhora o não ame deveras; já tive ocasião de o dizer.

- Preciso de alguns esclarecimentos. O senhor amou decerto alguma vez...

- Nunca.

- Nunca? Nunca teve um amor, um só que fosse? Não creio. Um coronel! Nada; não creio; só se me jurasse; era capaz de jurar?

- Juro.

- Em nome de sua mãe? - concluiu ela fitando-lhe uns olhos cuja expressão imperativa contrastava com o tom submisso da palavra.

Jorge hesitou um instante. Tinha cepticismo bastante para proferir uma fórmula vaga de juramento; mas recuou diante da fórmula positiva. Hesitou e ladeou a pergunta.

- Esse nome resume justamente o meu único amor - disse ele -; amei a minha mãe.

Iaiá sorriu com ar de dúvida; depois olhou para ele comovida.

- Eu amo meu pai - redarguiu ela -, nossos corações podem entender-se.

A esta palavra não havia que replicar; pareceu-lhe a condenação do pretendente. Apertou a mão que a moça lhe estendeu, e sentiu-a fria. Após uma curta pausa, abanou a cabeça, murmurando:

- Assim pois, nenhuma sombra de esperança...

- Faça o que entender - disse a moça no fim de outra pausa -, em todo o caso desejo ler a resposta que lhe der.

Jorge abriu a carteira, e tirou de lá o rascunho da carta que pretendia mandar a Procópio Dias.

- A resposta - disse ele - já está escrita. Não querendo matá-lo, pus aqui algumas gotas de esperança; não ousaria contudo mandar o remédio, sem ouvi-la.

Iaiá recebeu o papel dobrado, olhou um instante para ele, outro para Jorge.

- Leia - disse este.

Iaiá não obedeceu: pegou do lápis, e sobre a folha do papel dobrado começou a lançar os traços de um desenho. Posto que a luz batesse em cheio no papel, Jorge não pôde ver desde logo o que era; mas esperava, em frente da moça, que ela rematasse o capricho. Nessa ocasião, Estela foi ter com eles.

- Já acabou a lição? - perguntou.

- Agora é uma lição de desenho, ao que parece - disse Jorge.

Estela pôs a mão no ombro da enteada.

- É o Procópio Dias! - disse ela olhando para o desenho.

Era, mas o desenho frisava com a caricatura; a fealdade de Procópio Dias excedia as proporções verdadeiras, o nariz era enormemente triangular, as rugas da testa, grossas e infinitas: um monstro cômico. Estela sorriu da travessura, mas repreendeu-a.

- Deixe ver - disse Jorge quando ela acabou.

- Para quê? - retorquiu Iaiá com indiferença.

E levando o papel à chama, queimou-o. Jorge interrogou-a com os olhos; ela encarou-o sem se perturbar. Depois folheou a gramática lentamente.

- Continuemos a lição - disse ela -. Y Love. Vá; onde estávamos? Aqui, era aqui.

Estela assistiu à lição toda, com a paciência da curiosidade. Não olhava nunca para o mestre, dividia a atenção entre a discípula e o livro. A lição foi longa, mais longa do que era necessário, porque o próprio mestre não acompanhava pontualmente o texto e a leitura. Iaiá tinha diante de si dous juízes, cada um dos quais buscava decifrar-lhe na fronte a inscrição que lá lhe teria posto o seu destino. Percebia-o, e não se enfadava. Ia de um tempo a outro, e do indicativo ao imperativo, voltando ao começo logo que chegava ao fim, fitando os dous inquisidores com um olhar em que pareciam dormir todas as ignorâncias da terra.

A tranquilidade era aparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a moça deu largas a dous sentimentos opostos. Entrou ali prostrada.

"Que estou eu fazendo?" - disse ela apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a veneziana da janela e interrogou o céu. O céu não lhe respondeu nada; esse imenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrelas que cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da terra. Duas delas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse. Iaiá teve a superstição de crer que também ela mergulharia ali dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao grande mudo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao céu que se não vê, mas de que há uma parcela ou um raio no coração dos símplices. Esse ouviu-a e confortou-a; ali achou ela apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe: "Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica". Restaurada a alma, ergueu-se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para interrogar, mas para afirmar, para dizer à noite que naquele corpo franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.

Tarde conciliou o sono. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de um abismo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos à cinta e a levantava ao ar como uma pluma. Pálida, com o olhar desvairado, a boca irônica, essa mulher sorria, de um sorriso triunfante e mau; murmurava algumas frases truncadas que ela não entendia. Iaiá bradou-lhe em alta voz: "Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava!" Mas a mulher, sacudindo a cabeça com um gesto trágico, e colando-lhe os lábios nos lábios, soprou ali um beijo convulso e frio como a morte. Iaiá sentiu-se desfalecer e rolou ao abismo. Acordou agitada e deu com a madrasta a contemplá-la, ao pé da cama. No primeiro instante, fechou os olhos e recuou até a parede, mas logo depois voltou a si.

- Tive um pesadelo horrível - disse ela respirando largamente -, rolei no fundo de um abismo, empurrada por duas mãos de ferro. Ainda estou fria. Veja as minhas mãos. Tenho o peito oprimido. Felizmente passou. Está aqui há muito tempo? Eu agitei-me muito?

- Falaste em voz bem alta.

- Que foi?

-"Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava." Não sei que estas palavras se possam dizer no fundo de um abismo. Tu confundes os sonhos...

- Talvez, não me lembra outra cousa. Só me lembro do abismo, que felizmente não passou da minha imaginação. É muito tarde, não é?

- Nove horas.

- Nove horas!

Estela foi à janela, e, abrindo a veneziana, mostrou-lhe o sol. Depois encostou-se ali a olhar para fora. Entrara alguns minutos antes, admirada do prolongado sono da enteada, e ia pousar-lhe a mão no ombro quando ouviu aquela palavra balbuciada no meio de grande agitação; palavra misteriosa e vaga, mas que se lhe embebeu no coração como um espinho. De sua parte, Iaiá não estava menos inquieta. Receava que houvesse dito alguma cousa mais - um nome ou uma circunstância precisa -; em todo caso, era bastante o que ouvira a madrasta, para imaginar que o sonho lhe escancarara as portas da consciência. Uma e outra espreitavam-se desconfiadas e medrosas. A madrasta deixou a janela e foi sentar-se na beira da cama. Ambas sorriam com esforço e nenhuma conseguia falar primeiro. Correram assim três longos minutos de acanhamento e observação recíproca. Estela foi a primeira que rompeu o silêncio.

- O teu pesadelo foi um castigo - disse ela -; foi o castigo da caricatura que ontem fizeste. Aquilo não é bonito. Todos sabem que o Procópio Dias é bem recebido em nossa casa. Que se há de pensar de nós, quando virem que se tratam assim as pessoas ausentes?

Iaiá refletiu um instante.

- Era preciso - disse ela -; era uma maneira de desenganar de uma vez as pretensões desse senhor.

- Mas quem te falou nelas?

- O Dr. Jorge, que parece protegê-lo. Não é possível que haja ninguém mais feliz do que aquele homem. Bastou gostar de mim para que todos se empenhem em aprová-lo e aconselhar-me que não devo tomar outro marido. Parece-lhe que eu...

- A que propósito te falou nisso o Dr. Jorge?

- A propósito de cousa nenhuma; falou porque é amigo dele. Não lhe disse eu uma vez que um dia, se todos teimarem, serei obrigada a casar com Procópio Dias? Receio muito que assim aconteça.

- Não - disse Estela vivamente -; não há de acontecer assim, primeiramente porque eu não o consentirei nunca; depois, porque tu amas a outro...

- Eu?

- O teu amor de colégio, aos doze anos e meio.

- Ah! - disse Iaiá. E depois de alguns instantes continuou, com um gesto de grande vergonha: - Fiz mal em lhe dizer aquilo; peço-lhe que não repita a ninguém.

Estela não ouviu as últimas palavras. Erguera-se outra vez para dissimular a comoção, que parecia crescer. Entretanto, Iaiá enfiou um roupão e enterrou o pé na chinelinha matinal. Quando, cinco minutos depois, encontrou os olhos de Estela, achou-os sombrios, como os da figura do pesadelo, e insensivelmente buscou ver se teria um abismo ao pé de si.

- Iaiá - disse Estela em tom seco -, tu amas, tu confessas que amas a alguém; quero que me digas o nome desse homem, ouves? Exijo sabê-lo para avaliar o que te convém. Sabes que tenho autoridade de mãe.

Iaiá sentiu ferver-lhe o sangue nas veias.

- Minha mãe morreu - redarguiu com igual sequidão -; estou pronta a obedecer a meu pai.

Estela apenas disfarçou a sensação interior; após alguns instantes de silêncio, saiu.

Longe da enteada, a madrasta deu inteira expansão aos sentimentos que a combaliam. Fechou-se no gabinete do marido; depois evocou o passado, como uma força contra o presente, porque era o presente que ameaçava tragá-la. Um instante abalada pela leitura da carta de 1867, buscou recobrar a antiga quietação, mas a interferência de Iaiá perturbou essa obra de sinceridade. O procedimento da enteada, a súbita conversão às atenções de Jorge, toda aquela intimidade visível e recente, acordara no coração de Estela um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciúme ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma brasa. Suspeitou a rivalidade da outra, e não foi preciso mais para que o grito de rebelião fizesse estremecer aquela alma solitária e virgem. O pensamento perdeu a habitual placidez. O coração começou de bater com a celeridade e a violência das grandes febres.

Eram as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como uma cratera que acaso fechasse uma abóbada de gelo; pior que tudo, tinha a fatalidade de um longo constrangimento, a luta de duas forças igualmente pujantes, indomáveis e cegas. O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante os anos de jugo e compressão, criara músculos e saía a combater de novo. A vitória seria uma catástrofe, porque Estela não dispunha da arte de combinar a paixão espúria com a tranquilidade doméstica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direito ao mal.

Ora, no meio desse duelo, já doloroso, embora ainda curto, ouviu Estela a última palavra da enteada, comentário da que lhe escapara na agitação do pesadelo. Saiu dali aterrada, tateando as sombras, e desviando os olhos quando algum clarão de realidade se lhe acendia ao longe. Não podia crer na rivalidade consciente e declarada de Iaiá; era inverossímil, seria a sua própria vergonha e condenação. Mas as palavras retiniam-lhe ao ouvido, e o gesto frio e duro da enteada parecia clarear o que havia obscuro nelas.

Não podia durar muitas horas a situação em que a fatalidade das circunstâncias havia posto as duas mulheres. Iaiá era a mais dúctil, e, outrossim, a mais interessada. Logo que Estela a deixou só, caiu em si e compreendeu que, além de ferir cruelmente a mulher que lhe servia de mãe, levantara uma ponta do véu em que trazia envolto o pensamento; ao demais, a injúria produzira a reação do amor - do amor que lhe tinha e não perdera de todo, apesar dos acontecimentos últimos. Na seguinte manhã foi ter com a madrasta.

- Confesso que fui excessiva e desobediente - disse ela -; não o devia ser, mas a senhora falou com um modo tão seco! Tão duro! Pareceu-me que duvidava de mim; fosse o que fosse, não era o seu modo do costume. Sempre a respeitei como minha mãe; não nego, não poderia negar nunca os seus direitos, assim como não desconheço a sua amizade; mas a senhora mesma tem um bocadinho de culpa; sempre me tratou antes como irmã do que como filha. Daí veio alguma confiança, alguma liberdade, e foi por isso que ontem cheguei a esquecer quem éramos, para a tratar como não devia. Foi isso somente; foi um excesso, uma leviandade, nada mais. Consulte o seu próprio coração e ele lhe responderá que não foi mais do que isso. Vá; pergunte-lhe, ele me conhece.

Estela escutou-a silenciosamente, sem vergar a altivez da fronte, mas também sem nenhuma expressão de despeito ou desafio. Luzia-lhe nos olhos alguma cousa que espreitava a alma da outra por baixo das pálpebras descidas. Iaiá falara de um jacto, mas não de um só tom; simplicidade, timidez, faceirice - havia de tudo na maneira por que se exprimiu durante aqueles poucos segundos. A explicação era a um tempo sincera e hábil, mas de tal modo se confundiam os dous caracteres, que a própria habilidade não tinha consciência de si: era antes um instinto do que um cálculo.

- Que me pedes tu? - disse Estela no fim de alguns instantes -. Que te perdoe? Que esqueça a tua imprudência? Uma cousa é mais fácil do que a outra. Estás absolvida; faze agora com que eu esqueça.

- Por que não? Eu consegui fazer com que me amasse, quando a senhora não sabia ainda se eu era má ou boa.

- Era fácil. Tua mãe era tua mãe, mas não te amou mais do que eu. Se alguma vez o reconheceste, não foi ontem; ontem cedeste a um mau preconceito contra as madrastas, e levantaste entre mim e ti um espectro, que se pudesse falar seria para te condenar também. Não me queixo, nunca me queixei de cousa nenhuma: quando estimo alguém, perdoo; quando não estimo, esqueço. Perdoar e esquecer é raro, mas não é impossível; está nas tuas mãos.

Subjugada pelo tom com que a madrasta falara, simples, severo e levemente repassado de tristeza, Iaiá cedeu a um nobre impulso de submissão. Pegou-lhe nas mãos e beijou-as. A madrasta sentiu nelas uma lágrima. Não recusou esse testemunho do coração, e tê-la-ia apertado ao seio se lho permitisse a inflexibilidade do espírito. Limitou-se a contemplá-la com os olhos amoráveis de outro tempo.

Quando se separaram daí a alguns minutos, alguma cousa dizia à consciência de ambas que não vinham de fundar a paz, mas simples tréguas. Essa persuasão cresceu nos demais dias, porque uma e outra sentiam-se mutuamente observadas. Como houvesse entre elas um acordo tácito para não turbar a paz doméstica, Luís Garcia não percebeu essa situação nova; Jorge, ainda menos do que ele. Iaiá não alterou os hábitos dos últimos dias, conquanto usasse mais alguma cautela; as relações dos dous eram, aliás, tão frequentes e familiares como dantes. Uma vez, como a ausência de Jorge se houvesse prolongado além do costume, Iaiá mostrou-se-lhe um pouco retraída; e, perguntando-lhe ele o que tinha, respondeu afoutamente que a ausência a magoara muito.

- Quatro dias apenas - observou ele.

No primeiro domingo de março, Jorge foi ali às onze horas da manhã, e só achou Luís Garcia e Estela. Iaiá tinha ido à casa de Maria das Dores. Quando a moça voltou, Jorge e Estela estavam no jardim, ao pé da porta da sala; entre ambos havia uma cadeira vaga, a de Luís Garcia, que fora dentro algum minutos antes. Nenhum dos dous falava nessa ocasião; Estela estalava as unhas, Jorge batia na testa com o castão da bengala. Era constrangimento? Era dissimulação? Iaiá não soube decidir; mas o aspecto dos dous deixou-a sem pinga de sangue.

No dia seguinte voltou à casa de Maria das Dores; sabia do passeio usual de Jorge; queria vê-lo, falar-lhe. A doente não contava com a visita tão próxima da outra. Iaiá esteve com ela apenas alguns minutos, e saiu fora, a pretexto de que fazia calor e queria ver a tarde. A tarde era bela; o céu tinha todos os tons, desde o escarlate até o opala; ao nascente, algumas nuvens, raras e finas, manchavam de branco o fundo azul.

A casa ficava numa pequena elevação; Iaiá sentou-se numa pedra lisa, que servia de banco, e dali circulou um olhar pelo horizonte; depois desceu os olhos à cidade e ao mar, e esse espetáculo, tão saído deles, levou-a aos tempos, não mui remotos, em que entre ela e o pai nenhum coração viera interpor-se. No meio das reflexões, viu parar um homem, ao longe; era Jorge; vinha a pé, em atitude de quem medita. Passaria ele sem a ver? Ergueu-se; viu-o aproximar-se, parar de novo e olhar na direção da casa. Cortejou-o de longe e fez-lhe sinal para que subisse. Jorge obedeceu sem dificuldade.

Maria das Dores, doente de uma paralisia, ficou estupefacta quando viu entrar um desconhecido pela mão de Iaiá, interrogou a moça com os olhos, e Iaiá, depois de um instante de acanhado silêncio, respondeu com desgarre:

- É meu noivo, que vem vê-la. Quero que o conheça e não diga nada a ninguém, ouviu?

Dizendo isto, aproximou-o mais da paralítica. A boa velha contemplou-o alguns instantes, disse-lhe algumas palavras de conselho, pediu-lhe que fizesse feliz a sua filha de criação, e não obteve dele uma palavra ou um gesto de assentimento. Supô-lo comovido; mas ele estava simplesmente atônito.

Saindo fora da casa, assentaram-se à porta, na mesma pedra, assaz larga e extensa para dous.

- Foi preciso dizer-lhe aquilo - explicou Iaiá - porque eu desejo conversar com o senhor, e os noivos conversam mais à vontade. De mais, ela não é só paralítica; tem a vista fraca; amanhã posso substituí-lo, sem que ela dê pela mudança. Agora falemos de nós e daquela carta... E antes da carta, diga-me, sabia que eu estava aqui?

- Não; mas não vim até estes lados sem esperança de a encontrar. Já que fala na carta, deixe-me dar-lhe uma explicação; se a não dei até hoje, é porque não quisera voltar a um assunto, aborrecido para a senhora e para mim.

- Para o senhor?

- Para mim.

Iaiá apertou-lhe a mão com força.

- Vá - disse -; também tenho de lhe dizer alguma cousa grave; mas ouçamos primeiro a sua explicação.

- Oh! Custa pouco - acudiu Jorge -. Escrevi o esboço da carta por me parecer que podia ser-lhe agradável. Lembra-se que uma vez me havia falado naquele sentido? Duvidei mais tarde, e disse-lho. Contudo, havia tanta incerteza e contradição entre suas palavras e ações, que não era difícil supor alguma cousa; há paixões que começam assim caprichosamente. A carta era um meio de dizer ao pretendente que seus suspiros podiam não ser inúteis. Era isso; só isso. Confesso que adotei o papel mais passivo, desinteressado, e não sei até se... creio que a senhora já o qualificou de ridículo. A forma podia não ser grave, mas a intenção era afetuosa, e se merecia um riso, também merecia um aperto de mão. Esboçada a carta, não a mandaria sem mostrá-la; foi o que fiz; mas sua reprovação foi tão eloquente que me fez cair em mim e reconhecer que a carta era demais.

- Era de menos.

- Queria então que fosse eu próprio a Buenos Aires? - perguntou Jorge sorrindo.

- Queria, se ao chegar lhe dissesse: "Pense em outra cousa; Iaiá não o ama."

- Para isso, basta que lhe não diga nada.

- Não o ama - repetiu a moça -: não o ama, não o ama.

- Desta vez é sério e definitivo?

- Que admira? - replicou a moça com gravidade -. Não lhe parece a cousa mais natural do mundo que uma moça não ame o Procópio Dias? Não sei o que são os outros homens; poucos tenho visto; nossa vida é tão retirada! Mas, enfim, não me parece que o Procópio Dias seja homem de se ficar morrendo por ele. E contudo ele morre por mim. Meu coração perdoa-lhe; é o mais que pode fazer. Aceitá-lo seria impossível. Já reparou nos olhos dele? Tem às vezes uma expressão esquisita, que não vejo nos olhos de papai nem nos seus. Não gosto dele; não poderia gostar nunca.

Desta vez foi Jorge que lhe apertou a mão.

- Tem razão - disse ele -; se o não ama deveras está tudo acabado. Não lhe digo que ele fosse um noivo perfeito; não podia ser; mas aceitável era. Hoje percebo que entre a senhora e ele há alguns contrastes; mas o que é que não concilia o tempo? Esqueça o que lhe disse a tal respeito; e assentemos não falar mais de semelhante assunto. Provavelmente não escreverei nada; é duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vãs.

- A paz do meu espírito não valerá esse sacrifício?

- Vale mais; posso fazê-lo.

Iaiá refletiu.

- Não, não é preciso; não lhe diga nada; ele há de entender tudo.

Como fizessem uma pausa longa, viram duas ou três pessoas, que passavam embaixo, olharem para cima com certo ar curioso e indiscreto. Jorge ergueu-se.

- Estamos dando na vista - disse ele -; hão de supor que somos dous namorados.

- Sente-se - disse Iaiá em tom intimativo. E continuou: - Que perde o senhor com isso? Dirão que não tem mau gosto em amar uma moça bonita.

- Se dissessem que éramos dous namorados, erravam decerto, porque eu sei... eu suspeito que a senhora ama a outro. Uso dos meus direitos de confidente, exigindo que me diga a verdade.

- Toda - respondeu Iaiá -, e era esse o ponto grave de que lhe queria falar. Ainda uma vez, o senhor estima-me? Tem-me amizade sincera?

- Pois duvida?

- Eu duvido de tudo e de todos; até de mim. Mas, enfim, preciso de alguém que me ouça, a quem eu conte o que penso e o que sinto, e até o que receio, porque também receio, e há horas em que tremo sem saber de quê. É verdade, há ocasiões em que me parece que uma grande infelicidade vai cair sobre mim, e daí a nada penso justamente o contrário; penso que vou receber a maior felicidade do mundo, e fico alegre como um passarinho. Cousas de criança, não é?

- Não, cousas de moça. É certo que ama? A quem?

Iaiá olhou para ele algum tempo, satisfeita da impaciência que parecia ler-lhe na fronte.

- Respondo que sim e que não - disse ela -. Se me pergunta a quem amo, digo-lhe que não sei, não amo ninguém; mas sinto alguma cousa misteriosa e esquisita, e não sei... desconfio... não sei que seja. Por que é que as mesmas cousas, que me eram indiferentes, agora me parecem interessantes, e até chego a supor que me falam? Ainda há pouco, antes de o ver, estava a olhar embebida para o céu, quase sem pensar, mas ainda assim curiosa ou ansiosa; olhava para o céu e para o mar; o coração apertou-se-me; depois alargou-se-me como se quisesse devorar tudo. Há dias em que me levanto alegre e viva como uma criança; papai diz que são os meus dias azuis. Há outros em que tenho vontade de quebrar tudo, e não digo mais de duas palavras em cada hora; são os meus dias negros. Ouço às vezes uma voz que me fala; penso que é alguém e reconheço que a voz é a da minha própria imaginação. Tudo será imaginação, creio; mas é tão novo e tão bom! Em todo caso, parece-me extraordinário, e se não é loucura... É verdade, às vezes penso que vou ficar douda, e nessas ocasiões tenho medo. Será isso?

- Não - acudiu Jorge -, não é loucura, é sabedoria, é a grande sabedoria da natureza. Isso que sente não será amor; mas é a necessidade de amar, é o rebate que lhe dá o coração. Alguém virá um dia e a voz anônima que a senhora costuma ouvir lhe falará então pela boca do homem que o coração lhe apontar.

Iaiá escutava-o como encantada, mas sem olhar para ele. Quando Jorge acabou, fez-se entre ambos uma longa pausa. A moça tinha os olhos no horizonte onde as cores da tarde desmaiavam rapidamente. Jorge contemplava-a tomado de interesse e até de inveja; compreendia os primeiros sobressaltos desse coração em flor, e dizia a si mesmo que há sensações que o tempo leva para não restituir mais.

Iaiá acordou de suas reflexões.

- Francamente - disse ela -; o senhor não se ri de mim?

- Rir? A senhora não me conhece. Não há que rir de sentimentos sinceros; e seria pagar muito mal a confiança de que me dá prova. Não me julgue um espírito vulgar...

- Papai faz-lhe muitos elogios.

- Há de saber, ou fica sabendo que minha natureza simpatiza com o que está acima do comum. A senhora vale muito; posso dizer que há dous meses eu ainda a não conhecia...

- Não tente a minha vaidade - interrompeu Iaiá -; prefiro que me dê um bom conselho.

- Dou-lhe um - disse Jorge depois de curta pausa -; resista um pouco a essas sensações, cujo excesso pode perturbar-lhe a existência. Não é só o coração que lhe fala, é também a imaginação, e a imaginação, se é boa amiga, tem seus dias de infidelidade. Dê um pouco de poesia à vida, mas não caia no romanesco; o romanesco é pérfido. Eu, que lhe falo, lastimo não ter já essa ordem de sentimentos em flor, e contudo não sei se ganharia com eles.

- Quê! Não seria capaz de amar?

- Meu coração não envelheceu ainda.

- Entendo; amaria hoje de outro modo...

- De outro modo, e tão sinceramente como dantes; um amor de olhos abertos.

- Penso que o amor verdadeiro, ou ao menos o melhor, é o que não vê nada em volta de si, e caminha direito, resoluto e feliz aonde o leva o coração. Para que servem os olhos abertos?

- A senhora quer saber muita cousa - disse Jorge sorrindo -. Não basta que o coração lhe diga: ame a este; é preciso que os olhos aprovem a escolha do coração. Admira-se? Ouça-me até o fim; eu desejo preservá-la de alguma escolha má. Eleja um marido digno, um espírito que a entenda, que a admire, um homem que a possa honrar; não se deixe levar dos primeiros olhos que pareçam responder aos seus...

Iaiá abaixou a cabeça.

- Não acharei nenhuns - disse ela -; eu creio que este amor morrerá comigo...

Como essa ideia parecesse entristecê-la, Jorge sentiu-se tomado de compaixão, ao ver que persistia naquela aurora pura uma sombra de superstição romanesca. Pegou-lhe na mão, viu-a estremecer, recusar-lha e cruzar os braços.

- Tem medo de mim? - disse ele ao cabo de um instante.

- Tenho.

Jorge calou-se. Com a bengala entrou a reproduzir no chão umas reminiscências de geometria. Sentia-se atalhado, curioso, e tanto desejava como lhe custava sair dali. Não chegava a entendê-la claramente; a verdade, quando ia a tocá-la, parecia inverossímil. Entretanto, Iaiá não rompia o silêncio; tinha a fronte pendida e meditava. Talvez meditava na palavra que acabava de proferir, fruto da situação violenta em que ela própria ou os acontecimentos a haviam colocado. Era a rebelião do pudor. De quando em quando, sacudia a fronte como a expelir uma ideia enfadonha ou cruel. Numa dessas vezes, Jorge disse com brandura:

- Para que negá-lo? A senhora padece; não sei se com razão ou sem ela, mas parece padecer muito?

- Oh! Muito!

E dessa vez a palavra era tão angustiosa, tão sincera, tão vinda do coração, que ele cedeu antes a um impulso de generosidade do que à conveniência de não ser repelido segunda vez. Pegou-lhe nas mãos e pediu-lhe que fosse até o fim da confiança, dizendo-lhe a causa de seus males. Talvez ele pudesse removê-los.

Iaiá inclinou o rosto sobre as mãos de Jorge. Este sentiu nelas algumas lágrimas, vertidas sem soluços. Não passava ninguém; mas ele nem teve tempo de refletir na possibilidade de um estranho. Inclinou-se também e perguntou-lhe afetuosamente o que tinha. Iaiá ergueu a cabeça, e enxugou os olhos, mas não respondeu nada.

- A senhora não tem confiança em mim - disse Jorge.

- Há cousas que se não fazem, outras que se não dizem; algumas ficarão entre mim e Deus - retorquiu ela como se fizesse uma reflexão para si. Depois fitou-o e pediu-lhe a promessa de que não diria nada do que acabava de ver e ouvir.

- Essa promessa não se faz; está feita por si. Quanto ao seu segredo, não quero violentá-lo, mas tenho esperança de que a senhora mesma o há de dizer um dia; eu saberei obter-lhe esse resto de confiança que ainda me nega.

- Já! - exclamou a moça vendo Jorge levantar-se.

-Repare que a noite vem caindo; não posso ficar nem mais um minuto. Um confidente tem limites. Olhe; não peço muita cousa, mas desejo alguma cousa mais. Confidente é pouco, mestre é ainda menos. Dê-me outro título ou cargo; deixe-me ser seu... seu quê? Seu... seu irmão. Sim?

- Não! - disse ela energicamente.

Jorge empalideceu, como se acabasse de ver o fundo da alma da moça. A negativa era alguma cousa mais do que um capricho. Não retorquiu; estendeu-lhe a mão.

- Até quando? - disse ela.

- Até amanhã.

Três minutos depois, Jorge estava na rua. A noite descia rapidamente. Ele não olhou para trás; se olhasse veria a figura de Iaiá envolta já na meia sombra do crepúsculo. Veria mais; vê-la-ia refletir um pouco e espalmar a mão no ar, como uma ameaça, na direção em que ele ia.

Iaiá entrou na casa da doente.

- Seu noivo? - disse esta.

- Já foi.

- Quando é o casamento?

- O dia não sei - e depois de uma pausa -: mas que se há de fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.

A+
A-