Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

XI

Entrados em casa, Procópio Dias não se apressou a dar ou pedir a explicação. Ceou primeiro, porque confessou haver adquirido esse costume, e Jorge não se demorou em obsequiá-lo. A ceia improvisada, composta de viandas frias e dous ou três cálices de vinho puro, deixou-o em paz com a natureza. Satisfeita esta, era a hora da explicação.

Não veio ela com facilidade. Indolentemente reclinado numa otomana, Procópio Dias fumava com volúpia e falava com precaução, usando a voz pausada e avara de um homem para quem o digerir é meditar. Se alguma ideia lhe avoaçava lá dentro, era difícil percebê-lo através do olhar exausto e mórbido. Entretanto, a curiosidade de Jorge não lhe permitiu mais longa dilação e Procópio Dias foi compelido a satisfazê-la, quando o moço, parando diante dele, francamente lho pediu.

- Parecia-me mais fácil do que é - disse ele -, sobretudo porque apesar de nos conhecermos há algum tempo, não estou certo da opinião que o senhor forma de mim. Boa?

- Boa.

- Dê-me sua mão. Promete-me ser franco?

- Prometo.

- Qual das duas o leva à casa de Luís Garcia?

Sobressaltado, Jorge retirou vivamente a mão.

- Bem vê - tornou Procópio Dias -; é uma delas.

Passada a primeira impressão, Jorge sentou-se tranquilamente, menos contudo do que afetava estar.

- Na verdade, a sua pergunta é das mais esquisitas que eu esperava ouvir. Ignora as relações de amizade que me prendem àquela casa, relações que herdei de minha família, e que eu apenas continuo? Qual das duas! Não há ali duas; há uma, uma somente, uma... e...

- Não é essa? Não é Iaiá?

Jorge fez um gesto negativo.

- Acredite que me restitui a tranquilidade ao coração - disse Procópio Dias sentando-se de todo -. Não é meu rival? Não tem nenhuma ideia?... Nenhuma ideia vaga?... É isso o que preciso saber... É só isso, e é tudo.

- O senhor gosta de Iaiá?

Procópio Dias fez primeiro um gesto afirmativo; depois balbuciou a confissão plena de seus sentimentos, mas com um ar de envergonhado, meio sincero e meio fingido, e tão a ponto e natural, que era difícil saber onde acabava a sinceridade e onde começava a simulação. Animou-se a pouco e pouco, e não lhe escondeu nada. Confessou que a filha de Luís Garcia lhe transtornara de todo o espírito e que ele estava resoluto aos maiores sacrifícios para obter-lhe a mão.

- Às vezes supunha que o senhor andava nas minhas fronteiras - concluiu ele -, ideia que me afligia, porque o senhor tem sobre mim vantagens incontestáveis. A suspeita desvanecia-se e eu tranquilizava-me. Hoje, porém, confesso-lhe que a suspeita reapareceu e entrou a devorar-me o coração; e ainda assim, tinha intervalos, porque ora me parecia que o seu objeto era Iaiá, ora que era a outra...

- Perdão - interrompeu Jorge -; eu já lhe disse o que devia, e não posso consentir que voltemos ao mesmo ponto. Uma de suas suspeitas é injuriosa para mim.

- Tem razão; eu devia tê-lo pensado - assentiu Procópio Dias -. Mas que quer? Nada se deve imputar aos dementes e aos namorados. Perdoa-me? Em todo caso, pode crer que a minha índole não é tão tolerante com o vício que me fizesse desejar haver dado em balda certa. Não sou rigoroso; sei que as paixões governam os homens, e que a força de as reger não é vulgar. Por isso mesmo é que se estima a virtude. No dia em que a natureza se fizer comunista e distribuir igualmente as boas qualidades morais, a virtude deixa de ser uma riqueza; fica sendo cousa nenhuma.

- Deixe-me falar-lhe com franqueza - disse Jorge, rindo -; eu desconfio que o senhor é ainda menos rigoroso do que diz. Parece-me que se a sua suspeita, em relação à outra, tivesse fundamento, o senhor não me ouviria com indignação.

- Talvez estimasse.

Jorge não disse nada; olhou somente para o interlocutor, com um ar de estupefação, a que o outro sorriu benevolamente. Fez-se uma curta pausa. Procópio Dias rompeu enfim o silêncio:

- Talvez estimasse, sem deixar de indignar-me depois; isto é, a indignação no momento seria abafada pelo interesse. Atenda-me, doutor; sejamos justos com a natureza humana. Virtudes inteiriças são invenções de poetas. Não me fazia bom cabelo que o senhor gostasse da outra, e menos ainda que ela lhe correspondesse, porque, em suma, ambicionando entrar na família, não desejaria que a família tivesse a menor mácula. Esta é a realidade. Mas, eu amo, doutor; e por mais ridícula que pareça esta confissão, por mais grosseira que seja a minha casca, a verdade é que amo a enteada apaixonadamente; é o meu pensamento de todos os dias. Ora, dado que o senhor amasse a outra, qual era o primeiro movimento do meu coração? Ligá-los ao meu interesse. Desde que entre os dous houvesse um segredo, e que esse segredo fosse descoberto ou suspeitado por mim, o senhor e ela eram os meus melhores aliados, e a resistência daquela menina, e a vontade do pai, tudo cedia em meu favor.

Procópio Dias proferiu estas palavras com simplicidade e convicção. Seus olhos plúmbeos pareciam duas portas abertas sobre a consciência. A expressão do rosto era a de um cinismo cândido. Jorge contemplou-o alguns instantes sem dizer palavra, ao parecer subjugado pelo raciocínio. Ouvira-o pasmado e satisfeito. Tanta franqueza não mostrava que Procópio Dias já não suspeitava nada? Jorge sorriu e replicou:

- O que o senhor acaba de dizer não será animador, mas persuado-me que é a realidade pura. Admira-me somente que tenha tanta penetração e superioridade para ver e confessar os vícios da natureza humana...

- Sou prático - tornou o outro sorrindo -. Raras vezes me irrito, conquanto lastime sempre o que é fraqueza ou perversão. Assim, por exemplo, eu não lhe ficaria querendo mal se o senhor me houvesse iludido agora acerca de seus sentimentos, porque o seu interesse e o seu dever é negá-los.

- Perdão; já lhe dei minha palavra.

- Não deu, nem eu lha pedi, nem pediria, porque a palavra de honra não obriga a consciência, quando é dada para salvar uma questão de honra. O senhor poderia dá-la sem sinceridade nem remorso. Já não é a mesma cousa se me jurasse, porque o juramento, invocando o testemunho de um ente superior, esse obriga a consciência que não está pervertida.

- Não exige de mim que jure, espero eu? - disse Jorge.

- Há ainda uma raiz de dúvida, em meu coração - replicou Procópio Dias sorrindo.

- Pois juro-lhe...

Procópio Dias levantou-se de súbito.

- Não precisa mais - exclamou ele apertando-lhe as mãos. Agora creio; creio de todo. Não é meu rival, nem corrompe a família a que pretendo unir-me. Se soubesse o prazer que me deu com a sua última palavra! Obrigado! Agora creio. Ria-se de mim, ria-se; eu creio que esta expansão pode ter um lado grotesco - há de ter decerto. O que lhe afianço é que se minha felicidade não é completa depende somente da fortuna, não dos homens...

Sentou-se depois destas palavras, proferidas quase sem respirar.

Jorge acompanhou-o nessa expansão de felicidade. Pareciam satisfeitos um do outro. Procópio Dias confessou que era a primeira pessoa a quem falava de seus sentimentos, e não se vexava de dizer que, ao cabo de alguns meses, nada podia saber do coração da moça. Às vezes supunha ser aceito; outras, e eram as mais numerosas, tinha a persuasão contrária.

- O senhor naturalmente conhece-a e sabe que obra de contradição é aquela mocinha - disse ele -. Há ocasiões em que sua familiaridade comigo chega quase à sedução. Talvez exagero; mas que hei de pensar de uma moça que me pede instantemente que vá lá, em certo dia, com um modo grave e cheio de promessas? Digo-lhe sim; vou, recebe-me com um epigrama, ri-se de mim, abusa da complacência e não sei se do amor, porque, conquanto não lhe haja dito nada, acho natural que ela o tenha descoberto nos meus olhos. Se fico despeitado e resolvido a não voltar lá, ela torna-se mansa, como uma pomba, carinhosa, macia, e o meu despeito evapora-se, e eu continuo a minha viagem interminável.

- Nunca lhe deu a entender nada, ao menos por alusão?

- Nunca; receio que não me deixasse acabar.

- Não creia; eu suponho que ela gosta do senhor.

- Sabe disso?

- Não; mas é o que concluo do que me contou. As mulheres têm às vezes caprichos; e demais há naquela uns restos de criança, que a faz ainda mais caprichosa. Meu raciocínio é este: se ela percebeu, e não o repele absolutamente, é porque o senhor ainda pode ter esperanças...

Procópio Dias não pôde exprimir a alegria que estas palavras de Jorge lhe entornaram na alma; seus olhos brilharam de uma luz estranha, depois fecharam-se, enquanto a cabeça pendeu para trás, de um jeito lânguido. Durante essa pausa de alguns minutos, Jorge pode analisar as feições de Procópio Dias, pouco próprias a fascinar uns olhos de dezesseis anos, e achou natural que Iaiá não se sentisse tomada de cego entusiasmo. Contudo, não era impossível corresponder-lhe de algum modo, se a razão tomasse as rédeas ao coração. Jorge supunha até que houvesse em Iaiá uma semente de simpatia, que bastava fazer germinar.

Entrando no quarto que lhe fora destinado, Procópio Dias estava longe de ter sono; a excitação trazia-o esperto. Entrou, abriu a janela e olhou ao largo. O aroma vivo das plantas da chácara ainda mais lhe apurou o sistema. Não era homem de contemplar estrelas nem de fazer filosofias acerca da solidão noturna e do sono das cousas; limitou-se a pensar no que acabava de ouvir.

"Gosta da Estela" - murmurou ele -; "antes de jurar podia ser duvidoso; depois do juramento é positivo. Se ela não gosta dele faz mal; é um rapaz de espavento".

Depois, abriu as asas ao pensamento e foi direito a Iaiá, galgando o espaço e derrubando paredes; foi e contemplou o seu sono de virgem, que ele supunha ser quieto e puro, mas que a essa mesma hora era turbado e já complicado das ideias do mal. Procópio Dias deixou-se ir ao sabor da paixão, que era viva e sincera, uma conspiração surda e misteriosa de todas as forças sensuais.

A figura terna e virginal de Iaiá aparecera-lhe um dia, subitamente, como uma visão não sonhada. Se ele a visse em algum salão aristocrático pensaria nela numa noite, talvez uma semana, até esquecê-la ou substituí-la. Mas o que o prendeu a Iaiá Garcia foi justamente a mediocridade do nascimento. Possuí-la era fazer-lhe um favor. Quantas outras lhe não levaram os olhos de sátiro, ao descer de uma carruagem, ou ao resvalar indolentemente o seu talhe na contradança de bom-tom? Ele via-as passar ou estar, com os ombros nus ou cingidos da caxemira elegante, risonhas umas, outras sérias, todas altivas e compassadas, e sentia que os anos, feições e maneiras o distanciavam delas; não era difícil apagá-las da memória.

Iaiá teria antes de agradecer a escolha; era a sua convicção, e foi o que mais o ligou à filha de Luís Garcia.

Quando a moça refletisse que acharia no marido a satisfação de todas as veleidades do luxo, o gozo das cousas superfinas, elegantes e raras, devia ceder por força e preferi-lo a quem lhe desse apenas coração, trabalho e necessidades. Uma vez brotada a ideia, cresceu e tomou-lhe o cérebro todo. Iaiá era então a figura presente a seus olhos, ora divina e casta, ora ardente e lúbrica - lúbrica, porque ele em sua imaginação conspurcava-a antes mesmo de a possuir.

No dia seguinte acordaram tarde e almoçaram juntos, sem tornar no assunto da véspera. No fim do almoço, Procópio Dias referiu-se a ele, dizendo que fora excessivo na noite anterior, e pedindo a Jorge que o não levasse a mal; porquanto era tudo filho de um sentimento que não peca por moderado na suspeita, nem equitativo na apreciação.

- Não podia atribuir-lhe outro motivo - redarguiu Jorge sorrindo.

- Não ficou mal comigo?

- Mal? A prova é que se dependesse de mim casá-lo, casava-o amanhã mesmo.

Procópio Dias agradeceu-lhe a simpatia e o obséquio, e saiu. Jorge foi dali vestir-se para ir passar alguns minutos no escritório. Enquanto se vestia, pensava na situação do ex-fornecedor do exército. Não eram amigos, mas o caso de Procópio Dias interessava-o; era simpático a seus olhos. Não indagou se essa simpatia brotava do medo; persuadia-se ingenuamente do contrário. Um marido apaixonado e opulento! Duas vantagens que uma moça nas condições de Iaiá devia aceitar com ambas as mãos. Talvez Procópio Dias não fosse mal aceito ao coração da moça; somente, havia nesta uns vestígios de criança, que o tempo devia apagar.

"Naquela idade um pretendente é uma espécie de boneca" - dizia Jorge atando a gravata -; "o que é preciso, a todo trance, é fazer da boneca um esposo."

Chegando ao escritório, ao meio-dia, Jorge encontrou o Sr. Antunes consternado. Tinha dormido até onze horas, chegara tarde à casa em que trabalhava, o patrão convidara-o a fazer as contas. Era uma pequena casa de comércio, onde o Sr. Antunes, que entendia de escrituração mercantil, trabalhava desde algum tempo, graças ao obséquio de Jorge.

- Mas já foi despedido? - perguntou este.

- Devo fazer as minhas contas e retirar-me no fim do mês.

Jorge escreveu duas linhas ao patrão do Sr. Antunes. De tarde, foi este a Santa Teresa. Jorge ia sentar-se à mesa do jantar; o Sr. Antunes já tinha jantado, mas acompanhou-o.

- Venha, venha - disse o moço -; preciso ralhar-lhe.

Vexado e tímido, o Sr. Antunes sentou-se defronte de Jorge, que não lhe disse nada durante os primeiros minutos. Jorge falou enfim, repreendendo-o amigavelmente; disse-lhe que as exigências do comerciante não eram exageradas, e em todo caso não havia meio de opor-se a elas, salvo se quisesse deixar a casa.

- Isso mesmo - disse o pai de Estela.

- Não faça isso; não se ganha nada em andar de emprego em emprego. Demais, francamente, não vejo que entrar antes das dez horas seja cousa difícil. Seu genro faz isso há muitos anos.

- Meu genro!... Meu genro!... - disse o Sr. Antunes sacudindo a cabeça com um gesto de enfado.

Jorge fingiu não atender ao gesto e ao tom do pai de Estela, e tratou de o converter à pontualidade, obra que começava a ser difícil, porque o Sr. Antunes entrava já nas consequências lógicas e naturais de uma longa dependência; preferia o favor ao trabalho, e os anos contribuíam para esse amor da inércia e do benefício gratuito. A maior ambição que o animou, se a fortuna a houvera realizado, dar-lhe-ia todos os meios de envelhecer tranquilo. Agora tinha encanecido, e o corpo, embora lesto, começava a suspirar pela inação.

Jorge deixou o assunto para não vexar o antigo protegido do pai, e acabou o jantar alegremente. No fim recebeu um bilhetinho de Procópio Dias.

Não imagina, dizia este, que dia tenho passado, depois da nossa conversa de ontem. Teimo em dizer que fui excessivo, e ainda uma vez lhe peço me releve a falta. Poderia o senhor castigar um doido? O amor não tem imputação. Queime este bilhete; em todo caso não o revele a ninguém, sobretudo à pessoa de que se trata.

Jorge sorriu e releu o bilhete; depois fechou-o na secretária e escreveu esta simples resposta: "Ainda uma vez, não há que perdoar. O senhor foi apenas desconfiado, como todos os ciumentos; mas, como não inventou o ciúme, não lhe faço carga disso."

Entregue a resposta, Jorge olhou para o Sr. Antunes, que fumava discretamente um charuto do bacharel.

- Ouvi dizer hoje uma cousa - disse Jorge com ar indiferente -; ouvi dizer que Iaiá vai casar.

- Casar? - repetiu o Sr. Antunes com um sobressalto. E depois de um instante: - É possível; naquela casa o último que sabe das cousas sou eu.

- Talvez não passe de balela. Nem me disseram com quem. Provavelmente há algum namorado ou aparência disso, e então os noveleiros vão logo ao fim. Mas haverá deveras algum pretendente ou namoro?...

- Que eu saiba, nada - asseverou o Sr. Antunes -. E até, deixe-me dizer-lhe o que penso, duvido que ela cuide por ora de semelhante cousa. Aquela menina não tem cabeça.

- Oh! - exclamou Jorge rindo.

- Não tem, digo-lhe eu. Está ali, está no hospício. Não se pode dizer que seja travessura, porque não está em idade disso; é pancada. Se soubesse as cousas que ela faz às vezes!

- Não me parece; quando a vejo, é sempre com um modo comedido, e muitas vezes sério...

- Lá isso é porque ela não gosta do senhor.

- Não gosta de mim? - perguntou Jorge admirado.

- Não digo que absolutamente não goste - obtemperou o pai de Estela -; não lhe tem muita simpatia, é o que é.

- Como sabe você disso?

- Ouvi uma vez o pai repreendê-la, porque de propósito voltara as costas ao senhor; e então ela levantou os ombros, assim com um ar de pouco caso. O pai tornou a dizer que aquilo não era bonito, mas perdeu o tempo; Iaiá pregou os olhos nas unhas, com a testa franzida, e eu saí porque já não podia aturar nem um nem outro.

Jorge ficou alguns instantes pensativo. Era certo que Iaiá o tratara sempre com muito resguardo e frieza; mas, suposto que isso não significasse simpatia, e até lhe sentisse alguma hostilidade, estava longe de atribuir-lhe declarada aversão. Do gesto a que o Sr. Antunes aludira, não se lembrava absolutamente, mas era possível. Demais, pensou ele, o Sr. Antunes não o inventaria na ocasião; não era caluniador; faltava-lhe essa ferocidade. Mas, por que motivo não gostaria dele a filha de Luís Garcia? Era a segunda vez que Jorge fazia essa pergunta, sem lhe achar resposta plausível. Em seguida, recordou-se da noite anterior, e observou ao pai de Estela que Iaiá o tratara na véspera com alguma cordialidade.

- Milagre de ano-bom! - explicou o Sr. Antunes. Também lhe digo que não perde nada se ela não gostar do senhor; é uma fortuna. Porque ela, quando gosta de uma pessoa, é de fazer-lhe perder a paciência.

- Mas parece ter bom coração, e creio que gosta muito do pai.

- Também Estela gosta de mim.

Jorge fechou neste ponto a conversação. Seu pensamento voltou à revelação inopinada do Sr. Antunes. Por mais indiferente que Iaiá lhe fosse, Jorge sentia-se molestado com a certeza de que a moça não gostava dele. Por que seria? Simples antipatia ou outra cousa?

A preocupação desvaneceu-se na tarde do dia seguinte, quando Jorge apareceu em casa de Luís Garcia. Foi a própria Iaiá quem veio abrir-lhe a porta do jardim dizendo, alegremente:

- Entre, Sr. doutor, que já se fazia esperado.

Jorge não pôde esconder o assombro que lhe produzira aquela recepção; nem o assombro nem a alegria. Entrou e estendeu-lhe a mão.

- Não posso - tornou a moça, mostrando a sua, fechada -, só se adivinhar o que está aqui dentro.

- Não é uma estrela.

- Não, senhor; é um cavalo.

No fundo do jardim estava Luís Garcia, com o tabuleiro do xadrez: acabava de dar uma lição à filha, que lha pedira desde antes do jantar. Iaiá levou até lá o filho de Valéria. Pela primeira vez sentou-se ao pé dos dous para vê-los jogar; fincou os cotovelos na mesa e encostou o queixo nas mãos; queria aprender, dizia ela, em três semanas.

- Três semanas! - repetiu o pai a sorrir e a olhar para Jorge.

Das qualidades necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas essenciais: vista pronta e paciência beneditina; qualidades preciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas.

XII

Quinze dias depois, Procópio Dias apareceu em casa de Jorge com luto no vestuário e no rosto. De Buenos Aires chegara-lhe na véspera, à tarde, a notícia da morte de um irmão, seu último parente, notícia que o obrigava a embarcar no dia seguinte e demorar-se no rio da Prata cinco a seis semanas. Não se pode dizer que ele estivesse triste; estava sério, sério e preocupado. A viagem a Buenos Aires não tinha por fim o cadáver do irmão, mas a herança, que posto não fosse grande, valia alguma cousa.

Procópio Dias ofereceu seus serviços ao filho de Valéria, que de sua parte prometeu-lhe algumas cartas de apresentação, se precisasse. Procópio Dias aceitou uma. Jorge levou-lha no dia seguinte. Ele recebeu-a com demonstrações de agradecido e quase terno. E depois de um momento de silêncio:

- Já agora entrego-lhe pessoalmente esta carta, que devia ser levada amanhã por um portador.

Jorge quis abrir:

- Não - acudiu o outro -; prometa-me que só a abrirá amanhã.

- Por que não hoje de noite?

- Podia ser hoje de noite; mas é bom que entre a impressão da despedida e a leitura desse papel decorra o espaço da noite e o sono. Talvez seu juízo seja diferente.

Jorge prometeu. Procópio Dias partiu. No dia seguinte abriu a carta e leu estas poucas palavras: "Seja o meu anjo de guarda durante a minha ausência."

"Por que não?" - disse ele consigo.

De tarde, saiu a cavalo, costeando o aqueduto, segundo costumava, e ia pensando seriamente na conveniência de casar os dous. Naquelas duas semanas tivera tempo de apreciar um pouco as qualidades da moça, que lhe pareceram boas, conquanto lhe achasse também alguma cousa original, misteriosa, ou romanesca, muito acima da compreensão ou do sentimento de Procópio Dias. Jorge não se iludia acerca da paixão do pretendente; supunha-a sincera, mas não lhe atribuía a virgindade das primeiras ou das segundas comoções: era uma paixão da última hora, um ocaso ardente e abraseado entre o dia que lá ia, e a noite que não tardava a sombrear tudo. Ainda assim a aliança lhe parecia conveniente. Iaiá possuía decerto a força necessária para dominar desde logo o marido; e o titão encadeado teria ao pé de si, em vez de um abutre a picar-lhe o fígado, uma formosa rola destinada a prolongar-lhe as ilusões da juventude.

Se eram boas as impressões que Iaiá lhe deixara nos últimos dias, não eram ainda assim isentas de algum enfado, aliás passageiro. Uma ou duas vezes, Iaiá lhe pareceu singularmente áspera, e sem motivo nem duração. Esses assomos, porém, eram logo compensados por uma afabilidade, que parecia mais viva, mais ruidosa, talvez um pouco importuna. Ocasião houve em que Estela disse à enteada, com um sorriso de repreensão:

- Não amofines o Sr. doutor Jorge.

Não compreendeu Jorge por que motivo essa palavra simples, dita em tom brando, deu ao rosto de Iaiá uma expressão indignada; lembrava-se porém que a expressão foi passageira e que ela passou do singular amuo à habitual alegria:

- Bem vê - replicou Estela -, bem vê que é uma criança.

Jorge ia assim a refletir, e já de volta, quando ouviu uma voz que dizia o seu nome. Era Iaiá que descia da casa da velha ama. Jorge parou o cavalo.

- Em que vai pensando? - disse ela.

- Na senhora - respondeu o moço afoutamente, depois de verificar que ninguém os podia ouvir.

Iaiá caminhou até à rua, acompanhada de um homem velho, o irmão de Maria das Dores.

- Que anda fazendo aqui? - continuou Jorge inclinando o busto sobre o pescoço do cavalo.

- Vim visitar a Maria das Dores. Coitada! Está tão abatida!

- Bem; eu logo lhe direi o que é; vá ver a doente.

- Já a vi; volto agora para casa. O Sr. João vai acompanhar-me.

Jorge apeou-se.

- Deixa-me acompanhá-la também? - perguntou.

- Deixo; mas é só por ser curiosa. Quero saber o que ia pensando a meu respeito. Vamos, Sr. João?

Jorge enfiou a rédea no braço e colocou-se ao lado dela; Iaiá tomou-lhe afoutamente o outro braço.

- Vá, conte-me tudo.

- O Procópio Dias embarcou hoje...

Iaiá, que já havia dado os primeiros passos, estacou.

- Para onde? - disse.

- Para o rio da Prata; morreu-lhe um irmão em Buenos Aires

- Mas sem se despedir de nós!

- Naturalmente, custava-lhe fazê-lo, e quis poupar-se à dor da separação. Esteve porém comigo, e prometeu-me que a demora seria curta. Vi-o muito aflito com a viagem, tão aflito que não sei se lhe diga que era... era, decerto, era maior a dor da viagem do que a da morte do irmão. Talvez lhe faça injúria nisto, mas parecia.

- Por quê? - perguntou a moça erguendo os olhos para ele.

- Não sei se lhe deva dizer por quê - acudiu Jorge -. E daí, não se tratando de nenhuma cousa do outro mundo... É verdade que as moças bonitas, como a senhora, costumam ser cruéis... Não sei... Há situações um pouco...

- Ridículas - concluiu Iaiá.

- Como ridículas?

- Por exemplo, a sua.

Jorge enfiou um pouco; mas a um homem de sociedade, Iaiá não parecia de força a fazer perder o equilíbrio. Sorriu levemente e retorquiu sem azedume:

- Não é ridículo ser afetuoso; eu cuidava responder à linguagem de seu coração.

- Supunha que a ausência de Procópio Dias me deixava saudades...

- Supunha.

- Que tem o senhor com isso?

A resposta de Jorge foi um simples gesto negativo. Contudo, não pôde zangar-se, porque sentia tremer o braço da moça, e olhando de esguelha para ela via-a pálida e com os olhos no chão. Se a palidez e o tremor eram de cólera, não chegou a sabê-lo; mas provavelmente não era outra cousa, porque, ao cabo de três a quatro minutos, Iaiá ergueu os olhos e estendeu-lhe a mão, dizendo:

- Façamos as pazes.

- Nunca estivemos em guerra, acho eu.

- Talvez em véspera de guerra.

- Não por culpa minha...

- Nem minha - acudiu a moça. E erguendo o chapelinho de sol para o céu: - Talvez por culpa daquele - disse ela suspirando.

Após o suspiro, veio uma risadinha seca e forçada, mas longa ainda assim como o som de um golpe no cristal. Tinham andado poucos minutos, e esses poucos eram já de sobra para espertar a curiosidade de Jorge, e para lhe dar direito a pedir uma explicação. Jorge pediu-lha em termos afetuosos, perguntando por que razão era o céu culpado em uma guerra que devia romper entre ambos, e sobretudo qual seria o pretexto dessa guerra. Iaiá refletiu um instante, e começou a falar com os olhos baixos.

- O motivo é o senhor mesmo - disse ela.

- Eu?

- O senhor, que é meu inimigo, que me detesta. Não me dirá que mal lhe fiz eu? - continuou ela erguendo subitamente os olhos -. Escusa fazer esse gesto de espanto; sei que o senhor me detesta, e por mais que pergunte a mim mesma - não sei, não me recordo... Diga, fale com franqueza.

- Tanto melhor! - exclamou Jorge -. Vejo que havia entre nós um equívoco e é chegada a ocasião de o desfazer. Quer que lhe fale com franqueza? O inimigo não sou eu, é a senhora; é a senhora, ou antes, era ou parecia ser. Agora compreendo; retribuía-me a aversão que supunha haver em mim. Tanto melhor! Façamos as pazes de uma vez.

Iaiá apertou a mão que ele lhe ofereceu e chegaram alegremente a casa. Jorge quis retirar-se logo, mas a moça ordenou a Raimundo que conduzisse o cavalo, e Jorge foi compelido a entrar por alguns minutos. Luís Garcia não estava em casa. Estava o Sr. Antunes. Iaiá mal deu tempo aos primeiros cumprimentos.

- Ande jogar comigo, disse ela.

- Em boa paz?

- Em boa paz.

Iaiá preparou o xadrez, no gabinete contíguo à sala; Jorge sentou-se pacientemente diante da adversária, retificou a posição de duas peças, excluiu as que lhe dava de partido e adiantou o primeiro peão.

- Vá - disse -, é a sua vez.

Iaiá não obedeceu ao convite. Olhava para ele, com ar inquieto.

- Dá-me sua palavra de honra de que me não negará o que lhe vou perguntar? - disse ela ao cabo de alguns instantes de silêncio.

Jorge hesitou um pouco.

- Conforme.

- Exijo.

"Que me pedirá ela que lhe não possa afirmar?", pensou Jorge. E em voz alta respondeu:

- Dou.

- Foi ele quem lhe encomendou...

- O sermão? - interrompeu Jorge sorrindo -. Serei franco; foi ele mesmo.

Iaiá baixou os olhos ao tabuleiro, cavalgou a torre com o bispo, como distraída, e em voz ainda mais baixa do que lhe falara, perguntou:

- O senhor é homem de segredo?

- Sou - redarguiu afoutamente Jorge.

- Pois bem - continuou Iaiá -, eu gosto dele, gosto muito, mas não desejo que ele saiba.

- Deveras? Não está gracejando?

- Não estou.

Jorge estendeu-lhe a mão:

- Magnífico - disse ele alegre -; não é preciso mais. Uma vez que se amam, virão naturalmente a...

Não pôde acabar, porque a moça, erguendo-se de súbito, afastou-se da mesa, com um arremesso, e dirigiu-se à janela, que dava para o jardim. Jorge ficou espantado. Não entendia o que estava vendo. Inclinou-se sobre o tabuleiro e começou a mover as peças, sozinho, sem plano, maquinalmente. Assim jogando, ouvia o som do tacão de Iaiá que feria o ladrilho do chão, com um movimento precipitado e nervoso. Durou isto cinco minutos. Iaiá voltou-se para dentro, saiu da janela e aproximou-se da mesa. Jorge ergueu então a cabeça para ela e sorriu.

- Não me dirá que lhe fiz eu, para ficar tão zangada comigo? - perguntou com benevolência.

- Nada; eu é que fui estouvada e não sei se mais alguma cousa.

Jorge protestou que não.

- Foi ríspida somente - disse ele -; e se o foi sem querer, não foi sem motivo. Não me dirá que motivo é esse? Parece-me que não a tratei mal...

- Não.

- Nesse caso, o motivo está na senhora mesma; e se eu não tivesse medo de que se zangasse outra vez comigo, atrevia-me a pedir-lhe que me dissesse tudo - ou pelo menos alguma cousa.

- Para quê? Vamos jogar.

- Está escurecendo.

- Mando vir luzes.

Vieram luzes; começaram a jogar. Entre eles o xadrez não podia oferecer interesse, mas, dado que o pudesse, não seria naquela ocasião. Um e outro estavam distraídos e preocupados. A primeira partida foi concluída, em pouco tempo, quase sem cálculo.

- Outra? - perguntou Iaiá.

- Vamos.

- Antes de começar - disse ela colocando as peças, e sem olhar para Jorge -, quero dizer que tem um meio seguro de nunca brigar comigo.

- Qual é?

- É ser meu confidente.

- Senhor de seus segredos?

- Todos.

- O meio é fácil; só eu ganho na troca.

- Nisso dou prova de grande coração.

Já não era a menina ríspida de alguns instantes; dissera as últimas palavras com muita graça e placidez. Ao mesmo tempo, continuava a arranjar metodicamente as peças. Acabou e reclinou-se no dorso da cadeira.

- Não me declarou ainda se aceitava - disse ela.

Jorge hesitou um instante. Era gracejo ou proposta séria? A um gracejo responde-se com outro, a uma proposta responde-se com seriedade. Jorge hesitava em tomar sobre os ombros uma parte de responsabilidade dos sentimentos da moça. Quais seriam eles? Que projetos despertariam naquele cérebro provavelmente indomável? Não podiam ser outros senão os de casamento com Procópio Dias, visto que ela confessava amá-lo. Esta reflexão fê-lo declarar afoutamente que aceitava a confidência.

- Sabe o que aceita? - perguntou Iaiá.

- Farejo.

- Toque! - disse ela estendendo-lhe a mão.

Jorge deu-lhe a sua.

- Não se trata em todo caso de nenhum assassinato? - perguntou rindo.

- Não.

A segunda partida foi mais animada, mas só por parte de Iaiá. A moça ria às vezes, mas a maior parte do tempo fazia convergir toda a sua atenção para o jogo. Quando falava, era moderada e dócil. Essa alternativa e contraste de maneiras interessava naquele momento o espírito de Jorge. Que espécie de mulher fosse, imperiosa como uma matrona, travessa como uma criança, incoerente e enigmática, era cousa que ele não podia em tão pouco tempo descobrir; mas o enigma aguçava-lhe a atenção. Enquanto ela tinha os olhos no tabuleiro, Jorge buscava ler-lhe a alma na fronte lisa e cândida; mas não via a alma, via só uns fiapos castanhos do cabelo, que lhe caíam sobre a testa e esvoaçavam levemente ao sopro da aragem que entrava pela janela, e lhe davam um ar de puerícia. A boca fina e pensativa corrigia aquela expressão da cabeça; era a primeira vez que ele lhe descobria um forte indício de energia e tenacidade.

Quando era a vez de Jorge, Iaiá afastava o busto, reclinava-se no espaldar da cadeira e ficava a olhar para ele, como ele havia olhado para ela. Mas nesse olhar não cintilava curiosidade; era uma luz velada e baça, como alheia ao mundo exterior. Encontravam-se assim os olhos de um e de outro, e a partida continuava, até chegar ao fim sem novo incidente.

Prestes a acabar, Estela entrou no gabinete, sem os interromper. Sentou-se caladamente a um canto da janela. O jogo cessou no momento em que entrou Luís Garcia.

- Perdi duas partidas, papai - disse a moça -; mas por um triz não ganhei a segunda.

Jorge quis sair logo depois; foi obrigado a demorar-se, porque Iaiá lembrou-se de ir tocar piano. Era a primeira vez que Jorge conseguia ouvi-la. A moça escolheu uma página de Meyerbeer; Jorge confessara uma vez que era esse o autor de sua predileção.

No dia seguinte a impressão deste era um tanto complexa e perplexa. Aquela mistura de franqueza e reticência, de agressão e meiguice dava à filha de Luís Garcia uma fisionomia própria, fazia dela uma personalidade; mas a fisionomia era ainda confusa e a personalidade, vaga. Jorge sentia-se empuxado e retido, ao mesmo tempo, por dous sentimentos contrários; tinha curiosidade e repugnância de penetrar o caráter da moça, e conhecer e distinguir os elementos que o compunham. O que lhe parecia claro e definitivo era que as primeiras palavras de Iaiá, tão duras e tão secas, não passavam de uma expressão de despeito, por supor da parte dele a aversão que não existia; e, se as palavras em si o magoavam, a explicação lisonjeava-lhe o amor próprio. O resto era inexplicável. Jorge resolveu, entretanto, não lhe falar mais de Procópio Dias, apesar da confissão, aliás contrastada ou diminuída pelo gesto que se lhe seguiu.

Iaiá pareceu perder a disposição agressiva; à força de afabilidade, apagou inteiramente os vestígios da antiga rispidez. A alma não se lhe tornou mais transparente, nem o caráter menos complexo; mas a esquisita urbanidade dos modos fazia suportáveis os saltos mortais do espírito, e aumentava o interesse do que havia nela obscuro ou irregular; finalmente, era um corretivo à tenacidade com que a moça confiscava literalmente o filho de Valéria. Jorge estimou, sobre todas, esta circunstância, porque lhe tornou mais fácil a frequência da casa. Ele pertencia ao pai ou à filha - muitas vezes aos dous. Iaiá atirou-se ao xadrez com um ardor incompreensível, e dizendo-lhe Jorge que era preciso ler alguns tratados, ela pediu-lhe um, e porque ele só os tivesse em inglês, Iaiá pediu que lhe ensinasse inglês.

- Mas eu sou um mestre muito ríspido - observou ele.

- A discípula é muito pior.

Estela assistia algumas vezes às lições do idioma e do jogo; duas cousas que lhe pareciam incompatíveis com o espírito da enteada. Verdade é que Iaiá mudara tanto naquelas últimas semanas! Não lhe supusera nunca tão longa paciência, nem tão repousada atenção. Iaiá gastava uma a duas horas por dia a decorar os verbos e os substantivos da nova língua, e essa paixão recente tinha o condão singular de irritar a madrasta. Jorge, pelo contrário, sentia em si os júbilos do pedagogo. O professor é o pai intelectual do discípulo; Jorge contemplava paternalmente aquela inteligência fina, paciente e tenaz, servida por dous olhos de pomba e duas mãos de arcanjo.

No meado de fevereiro tornaram a falar de Procópio Dias, a propósito de uma carta que Luís Garcia recebera.

- Veja lá - disse a moça -; ele escreveu a papai e nem uma palavra especial para mim. "Lembranças a D. Estela e a Iaiá." Nada mais. Ele escreveu-lhe?

- Até agora, não.

- Não há nada como a ausência para fazer esquecer tudo - isto é, esquecer os que ficam. Talvez já não pense em casar comigo. Foi um capricho que passou, como todos os caprichos; foi como a chuva de ontem, que deu apenas alguns salpicos de nada. E contudo parecia que vinha abaixo o céu. Não é? A paixão dele não é como a trovoada? Ameaçou no Rio de Janeiro e foi cair em Buenos Aires. Aposto que vem de lá casado. Verá que não é outra cousa. Que me diz a isso? Vamos; diga alguma cousa.

- Não posso - redarguiu Jorge -. A senhora deu-me o cargo de confidente e não de conselheiro; limito-me a ouvi-la. Verdade é que o tal cargo até agora parece simples sinecura.

- Que é sinecura?

Jorge sorriu e definiu-lhe a palavra.

- Não é sinecura - acudiu Iaiá -; pelo contrário, é um cargo muito espinhoso.

- Não creio. A confidência única até hoje não me pareceu sincera. A senhora não ama o Procópio Dias.

Iaiá franziu a testa.

- Por que me diz isso?

- Porque, se o amasse, falaria de outro modo, e sobretudo não falaria tanto. O amor, nessa idade, vive de reticências, não de frases e menos ainda de frases tão compostas.

- Cale-se! - interrompeu ela batendo-lhe com a gramática na ponta dos dedos. E depois de uma pausa -: Se ele lhe escrever, mostra-me a carta?

Como Jorge lhe dissesse que sim, Iaiá fez um movimento para rasgar o volume em dous pedaços. Jorge perguntou-lhe o que tinha.

- Nervoso! - respondeu a moça, sacudindo os ombros com um calefrio. Depois, como a amparar-se, lançou-lhe a mão a um dos pulsos. Jorge sentiu a pressão de uns dedos de ferro; e parece que outros dedos invisíveis também comprimiam as faces da moça, vermelhas como se vertessem sangue.

A+
A-