Romance

Iaiá Garcia

1878

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Iaiá Garcia é o quarto romance de Machado de Assis e se se situa, na cronologia de sua obra, logo após aquele que talvez tenha sido o maior investimento romântico do escritor, Helena - com seu enredo ágil e seu desfecho trágico -, e imediatamente antes da revolução literária que seriam as Memórias póstumas de Brás Cubas. Ocupa, assim, um lugar privilegiado para a observação do desenvolvimento criativo do autor, nele convivendo motivações sentimentais de superfície e investigação profunda da alma humana; convencionalismo formal e mordacidade na crítica à sociedade de seu tempo.

Como de costume à época, o romance foi publicado primeiramente em partes, no jornal O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 02 de março de 1878, ano em que saiu em volume pela tipografia desse mesmo periódico. Ao que parece, o livro teve boa recepção entre seus contemporâneos, tanto que, em vida, Machado viu sucederem-se rapidamente uma segunda e uma terceira edições, em 1898 e 1899, respectivamente, já então impressas por Garnier, em Paris.

O texto da presente edição eletrônica foi estabelecido a partir da edição crítica elaborada pela Comissão Machado de Assis (Brasília; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro; Civilização Brasileira, 1975) e da edição preparada por Adriano da Gama Kury (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; Garnier, 1988), compulsada, em caso de discrepâncias ou dúvidas, a última edição acompanhada pelo autor em vida (1899) - e, portanto, autorizada por ele -, da qual há exemplar na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Na preparação deste texto, foram tomadas algumas decisões editoriais, das quais é preciso dar conta ao leitor. A ortografia foi atualizada - conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde 1o de janeiro de 2009 -, inclusive em relação aos nomes próprios. No entanto, nos casos em que os dicionários atuais consignam uma forma dupla de grafia (como em "conjectura"/"conjetura", "coisa"/"cousa"), preferimos aquela utilizada pelo autor, não obstante o arcaísmo. Nesses casos, foi mantido, ainda, o uso alternado que o autor por vezes faz dessas formas, uso tão representativo das variantes da época.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar dois exemplos: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("obedeça à disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe"); bem como as vírgulas separando o sujeito de seu verbo ("o que está feito, está feito."). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos).

Optamos por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado; nos diálogos, foi preservado o travessão. Quanto aos numerais, seguimos as normas editoriais da FCRB e os escrevemos por extenso no início de frases, quando eram inferiores a 11 ou múltiplos de dez; nos demais casos preferimos a notação em algarismos arábicos.

O confronto entre as três primeiras edições (todas em vida do autor) aponta para a necessidade urgente de uma edição crítico-genética, trabalho a que nossa equipe já começou a dedicar-se. Nossa expectativa é de que, findo o projeto de publicação de todos os romances em hipertexto (o que está previsto para fevereiro de 2011), possamos enriquecer o portal www.machadodeassis.net com uma edição rigorosamente anotada de Iaiá Garcia.

Nosso objetivo aqui foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Karen Nascimento e Victor Doblas Heringer, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ

março de 2009

Revisto em janeiro de 2011.

X

Ora, quatro ou cinco dias depois, Luís Garcia, que, na previsão de viagem, começara a arranjar alguns papéis esparsos e antigos, dispôs-se a concluir esse trabalho, não obstante haver sido dispensada a comissão. Era dia de ano-bom - uma bela manhã, fresca, límpida, azul. Tinham ido à missa na capela do convento; almoçaram em família, com a presença do Sr. Antunes, que inaugurara uma sobrecasaca, e trazia nessa manhã um aspecto, não somente venerador, mas até venerável.

Iaiá acordara extremamente alegre e buliçosa. O Sr. Antunes levara-lhe um ramalhete de cravos, dizendo que era para que ela recebesse outros ramalhetes durante todo o ano, e a menina, depois de o receber e agradecer com uma mesura, foi pô-lo num vaso, sobre o parapeito da janela da alcova. O Sr. Antunes despediu-se dela, meia hora depois de almoçado.

- Já vai?

- Vou jogar uma partida de bilhar com o Jorge - disse familiarmente o pai de Estela -. Viremos cedo.

- Ele vem jantar?

- Quero ver se o trago!

- Mas... papai não está prevenido - objetou Iaiá.

- Está; foi ele próprio que me autorizou a trazê-lo. Verdade é que fui eu que o pedi. Devemos muito àquele moço, e ao defunto pai e à mãe, a Sra. D. Valéria, que Deus tenha. Até logo.

Iaiá ficou só, e um instante pensativa; mas logo depois ergueu os ombros, pegou de um trabalho de agulha, inventado para matar o tempo, e caminhou para o gabinete do pai, onde o foi achar com Estela.

- Virgem Nossa Senhora! - disse a moça parando à porta.

Ao pé da secretária estava uma vasta cesta, transbordando de papéis; sobre a secretária, papéis; papéis na mão de Luís Garcia; outros na mão de Estela; alguns esparsos no chão. Era uma liquidação de seis anos. Luís Garcia tinha o costume de guardar tudo, cartas, exemplares de jornais em que havia alguma cousa de interesse, apontamentos, simples cópias. De longe em longe inventariava e liquidava o passado. Havia já alguns anos que não fazia a costumada operação. Começara quando supunha ter de deixar o Rio; agora tratava de concluir. Estela tinha entrado pouco antes da enteada; sentara-se em uma cadeira rasa, e entretinha-se a receber ou apanhar algum pedaço de jornal velho, e a ler algum trecho em que os olhos acertavam de cair.

- Que é? - disse Luís Garcia logo que a filha soltara a exclamação.

- Papai vai ficar afogado em papel - disse a moça.

Luís Garcia não respondeu; voltara os olhos para uma carta que tinha na mão, e que, sem dúvida, lhe trazia alguma recordação amarga, porque ele sorria tristemente. Leu-a toda; releu alguns trechos; depois fez um gesto de desdém, rasgou-a e deitou os pedaços à cesta.

Iaiá foi sentar-se do outro lado, a poucos passos do pai.

Na secretária, ao pé deste, havia um maço de cousas que serviam, um maço pequeno; a grande maioria era a dos destroços inúteis. Não é isso mesmo a imagem do passado? Luís Garcia desdobrava às vezes um jornal, avaramente guardado havia anos; duas cruzes ou alguns traços indicavam o trecho que nesse tempo lhe chamara a atenção. Relia-o agora; buscava o motivo da reserva e sorria. A impressão que comunicara algum interesse ao escrito desaparecera de todo; o escrito era um esqueleto. Também as cartas eram assim. Raras escapavam à destruição; as mais delas eram dilaceradas, umas em dous pedaços - as ínfimas -, outras em trinta, as que podiam ter alguma gravidade. Estela, que o ajudava, pegou casualmente em uma carta, cuja letra do sobrescrito lhe não pareceu estranha.

- Eu conheço esta letra - disse ela.

- Deixa ver.

Estela deu-lhe a carta.

- É do Dr. Jorge - disse o marido.

Abriu-a e, depois de ler algumas linhas, sorriu. Leu-a depois até o fim. Quando acabou, dobrou-a e ficou a olhar para a mulher; tornou a desdobrá-la maquinalmente.

- Vou restituí-la - disse ele depois de curta pausa -; talvez se envergonhe de haver escrito estas cousas...

E dirigiu os olhos à carta, com uma insistência de aguçar o mais embotado apetite. Depois, volveu a cabeça um pouco para trás, onde ficava a filha, a distância, de olhos baixos; abafou a voz e disse a Estela:

- Nunca soubeste do verdadeiro motivo que o levou à guerra?

Estela ficou ainda mais pálida do que era; o sangue todo refluiu-lhe ao coração, donde lhe não saiu uma só palavra; foi com um gesto negativo que ela respondeu. E se não podia empalidecer mais, podia corar e corou de vergonha. Luís Garcia não viu nem a primeira, nem a segunda impressão de suas palavras. Enrolava e desenrolava com os dedos um dos cantos da carta. Naturalmente relembrava os sucessos daqueles cinco anos, as confidências da mãe e do filho.

- Quem diria que depois de tamanho sacrifício... O que são rapazes! O que são paixões! Ele gostava de uma moça; não sei quem era, mas suponho... A mãe fez quanto pôde para domá-lo; quando desesperou, lembrou-se de o mandar para o Sul; ele aceitou. Fui confidente de um e de outro. Tempos depois de embarcar... espera ... a data há de estar aqui... 67... Ainda em 67 durava a tal paixão; afinal parece que só esperava o fim da guerra para acabar também. Morreu-lhe a paixão, e ele engorda. Nunca suspeitaste nada?

- Não - murmurou Estela.

Luis Garcia deu a carta à mulher, que a recebeu trêmula e fria.

- Lê, que é interessante - disse ele.

Estela olhou para o papel e para o marido, vacilante, sem saber o que faria e o que pensasse.

- Lê; é curioso - disse este, que voltara aos demais papéis, abrindo uns, separando outros, tranquilo e indiferente.

Estela, sem levantar a cabeça, olhou ainda de esguelha para ele, como a procurar-lhe na fronte a intenção escondida, se porventura havia alguma, e esse gesto era tão travado de receio e hesitação, era sobretudo tão dissimulado, que ela própria o sentiu e arrependeu-se. Cravou depois os olhos no papel, sem ler, sem fitar nenhuma linha, uma palavra única. Não via as letras; via, ao longe, dous pombos que voavam e a candura de seus lábios embaciada por uns lábios de homem; nada mais. A mão tremia; ela firmou-a sobre a borda da secretária; mas o tremor, ainda que pouco perceptível, não cessou.

- Leste? - perguntou Luís Garcia dobrando um jornal que acabava de passar pelos olhos.

Estela fez um gesto para que esperasse um instante. Não reparava que havia decorrido tempo suficiente para haver lido a carta duas vezes. Fez um esforço; voltou a página; duas ou três frases lhe feriram os olhos:

"Meu amor não sabe o que seja impaciência ou ciúme ou exclusivismo; é uma fé religiosa que pode viver inteira em muitos corações." - "O essencial é saber que amo a mais nobre criatura do mundo." - "A paixão veio comigo, e se não cresceu é porque não podia crescer; mas transformou-se. De criança que era, fez-se homem de juízo."

Chegou ao fim da carta ou pareceu ter chegado; dobrou-a, e não se atreveu a dizer nada; depois tornou a abri-la.

- Que poesia, hein? - disse Luís Garcia sorrindo.

E o sorriso era tão natural, tão despreocupado, tão honesto, que Estela ficou tranquila. Tinha em grande conta a dignidade e a sinceridade do marido; não podia supor-lhe tanta hipocrisia nem tamanha indiferença. Sorriu também, mas um sorriso de aquiescência, sem convicção nem espontaneidade. Luís Garcia inclinou-se para ela; falou-lhe com a mesma voz abafada de pouco antes, referiu-lhe o amor que Valéria tinha ao filho e a estratégia usada para o fim de o arredar do Rio de Janeiro.

- Naquele tempo - disse ele - não sei se cheguei a arrepender-me de a ter apoiado; hoje não. O filho ficou são e salvo de seus amores, com um posto e honras de sobra.

- É verdade - murmurou Estela, que o escutara com a atenção dispersa e impaciente.

Logo depois ergueu-se e foi à janela. Ali sacudiu a cabeça com um gesto enérgico. Talvez lutavam nela forças contrárias; ou era o seu passado que emergia da sombra do tempo, com todas as cores vivas ou escuras, com as delícias ocultas e nunca reveladas, e ao mesmo tempo com as amarguras de resistências. Era isso; era o coração que mordia impaciente o freio da necessidade e do orgulho, e vinha pedir ainda uma vez o seu quinhão de vida, e pedia-o em nome daquela carta, expressão remota de um amor desenganado e impassível. Estela sufocava esses ímpetos, mas eles vinham. Após alguns minutos, deixou a janela, tornou à cadeira onde estava. Luís Garcia lia então um retalho de jornal. Não chegou a levantar os olhos.

Defronte, Iaiá tinha os olhos cravados na madrasta. Ouvira a princípio o nome de Jorge e não lhe prestara muita atenção; mas uma ou duas palavras soltas do pai haviam-lhe despertado a curiosidade. Iaiá ergueu a cabeça, inclinou-a depois, ouviu a confidência do pai, não obstante ser feita em voz baixa, e enfim não retirou mais os olhos de Estela. Viu-a receber a carta, com a mão trêmula; viu-a empalidecer ainda mais; viu-lhe a confusão e o enleio. Por que o enleio e a confusão? Um amor extinto de Jorge, uma paixão que o levara à guerra, que tinha ela, que tinham eles três com isso?

Iaiá olhou a princípio com curiosidade, depois com espanto, até que os olhos luziram de sagacidade e penetração. O estilete que eles escondiam desdobrou a ponta aguda e fina, e estendeu-a até ir ao fundo da consciência de Estela. Era um olhar intenso, aquilino, profundo, que palpava o coração da outra, ouvia o sangue correr-lhe nas veias e penetrava no cérebro salteado de pensamentos vagos, turvos, sem ligação. Iaiá adivinhou o passado de Estela; mas adivinhou demais. Galgou a realidade até cair no possível. Supôs um vínculo anterior ao casamento, roto contra a vontade de ambos, talvez persistente, mau grado aos tempos e às cousas. Tudo isso viu uma simples inocência de dezessete anos. Seu pensamento cristalino e virginal, nunca embaciado pela experiência, ignorava até as primeiras cismas de donzela. Não tinha ideia do mal; não conhecia as vicissitudes do coração. Jardim fechado, como a esposa do Cântico, viu subitamente rasgar-se-lhe uma porta, e esses dez minutos foram a sua puberdade moral. A criança acabara; principiava a mulher.

A impressão foi tão profunda, que apesar da força de resistência que havia em sua organização, Iaiá não pôde ter-se ali mais tempo. Saiu e refugiou-se na alcova. Certo, aquele amor intruso, se o havia, era para afligir e prostrar um coração de filha, amassado de ternura, para o qual a forma superior e exclusiva do sentimento era a paixão que a prendia a seu pai, como um vínculo indestrutível. Depois vinha o afeto que votava à madrasta, sua mãe eletiva, afeto não menos sincero e real, e que já agora podia diminuir, quem sabe até se morrer todo?

Sentada na beira da cama, com os pés juntos, as mãos fechadas entre os joelhos, os olhos cravados no espelho que lhe ficava defronte, Iaiá trabalhava mentalmente na sua descoberta. Confrontava o que acabava de ver com os fatos anteriores, de todos os dias, isto é, a frieza, a indiferença, a estrita polidez dos dous, e mal podia combinar uma e outra cousa; mas ao mesmo tempo advertia que nem sempre estava presente quando Jorge ali ia, ou fugia-lhe muita vez, e podia ser que a indiferença não passasse de uma máscara. Demais, a comoção da madrasta era significativa. Estendeu o espírito pelo tempo atrás, até o dia da primeira visita de Jorge, e lembrou-se que ele estremecera ouvindo a voz de Estela, circunstância que lhe pareceu então indiferente. Agora via que não.

Uma hora inteira gastou nesse cogitar solitário, a sós com a suspeita e o remorso. Também remorso, porque de quando em quando, aterrada com a vista do caminho andado, a alma recuava e estremecia; tinha horror de si mesma. Mas a figura pálida da madrasta surgia ao pé dela, com a expressão que lhe vira pouco antes, e a consciência fazia as pazes com a malícia.

Vede a consequência. Estela não era culpada; um incidente do passado é que projetava tamanha sombra na vida presente; mas bastou o espetáculo da comoção para turbar o espírito da enteada e lançar lá dentro os primeiros germens da ciência do mal. Que seria se fosse culpada? Talvez o mais lastimoso efeito dos desvios domésticos é essa corrupção dos corações ingênuos, impassíveis testemunhas do que ignoram um dia, do que suspeitam, percebem e sabem na seguinte manhã: primeira violação da virgindade.

Iaiá agitava-se na alcova, de um para outro lado, desejosa e receosa ao mesmo tempo de ir ter com Estela. Duas vezes chegou à porta e recuou. Uma das vezes, voltando para dentro, deu com os olhos no retrato do pai que pendia junto à cabeceira - uma simples fotografia. Tirou-o dali, contemplou longamente a fronte austera e pura. Quê! Haveria na terra quem o amasse uma vez e não sentisse que o amor lhe dominaria a vida inteira? Tão afetuoso! Tão bom! Vivendo exclusivamente para os seus, sem nada invejar ao resto dos homens. Isto lhe dizia o coração, enquanto ela ia beijando o retrato com respeito, com amor, afinal com delírio. Grossas lágrimas e quentes lhe romperam dos olhos; Iaiá deixou-as cair: sorveu-as com seus próprios beijos. Quando essa primeira explosão acabou, acabou para se não repetir mais. Enxutos os olhos, Iaiá pôde friamente refletir, e a reflexão dominou a angústia.

O que se passou naquele cérebro ainda verde, mas já robusto, foi uma resolução sem plano. Deslindar o vínculo espúrio era o essencial e urgente, não cogitou no modo. Sua inocência, assim como lhe dissimulava toda extensão possível do mal, assim também lhe encobria as asperezas e os óbices da execução. Era o coração que lhe designava esse papel de anjo guardador. Natureza simples e intacta, ia direito ao fim sem o temor que dá a experiência e a contemplação da vida. Quem sabe? Não conhecia a hipocrisia, mas acabava de suspeitá-la; começava talvez a aprendê-la.

Tinha-se demorado muito e era preciso sair do quarto; mas, como houvesse chorado, podiam ler-lhe os vestígios da dor. Iaiá foi ao lavatório, deitou água na bacia e começou a banhar os olhos e o rosto. O rumor da água impediu-lhe ouvir que alguém abria a porta. Estela apareceu-lhe repentinamente.

- Que faz você aqui há tanto tempo? - disse a madrasta, parando à porta.

Iaiá não se atreveu a olhar de rosto para ela; mastigou uma resposta esquiva e continuou o que estava fazendo.

- Que tens? - perguntou Estela pegando-lhe dos braços e fazendo-a voltar para si -. Você chorou?... Chorou, sim; tem os olhos vermelhos. Que foi? Iaiá fala; que é?

- Não é nada - acudiu a outra procurando sorrir.

- Não minta, Iaiá.

A enteada olhou de relance para o espelho; viu que era inútil mentir.

- Foi uma tolice - disse ela.

- Alguma travessura?

- Antes fosse!

Iaiá pegou do retrato que pusera na borda do mármore do lavatório, e olhou alguns instantes para ele. Estela quis conchegá-la a si, mas a enteada fugiu-lhe com o corpo.

- Trata-se... de teu pai? - perguntou a madrasta.

Iaiá fitou-a e respondeu:

- Sim, mamãezinha; estava a sacudir a poeira do retrato de papai, e comecei a pensar... foi uma loucura... se ele... morresse?

Estela repreendeu-a com uma interjeição; Iaiá quis continuar, mas a outra interrompeu-a impetuosamente:

- Cala-te - disse -; não penses em tolices. Dá cá o retrato.

- Não é verdade que ele é o melhor dos homens? - perguntou Iaiá, enquanto Estela pendurava o retrato.

A única resposta da madrasta foi caminhar para ela e dizer-lhe que nunca mais pensasse em semelhante cousa.

- Não sou senhora dos meus pensamentos - respondeu a moça, erguendo os ombros.

Após alguns segundos de silêncio, Estela percebeu que alguma cousa preocupava a enteada, e disse-lho. Iaiá respondeu negativamente. Mas Estela insistiu:

- Não tens o teu ar do costume, e esses olhos andam vagamente de um lado para outro. Talvez... quem sabe...

- Não é isso que a senhora pensa - interrompeu Iaiá secamente.

Depois sentou-se, a olhar para o jardim, a morder o lábio, que lhe tremia, e a comprimir os seios com a mão. Estela ficou um instante calada; enfim sacudiu benevolamente a cabeça e aproximou-se da menina.

- Tu não tens confiança em mim, Iaiá - disse ela pousando-lhe a mão no ombro -. Se tivesses, dizias-me em que é que pensas, porque é decerto em alguma cousa. Não é difícil deixar de pensar no Procópio Dias; acho até que é a cousa mais fácil; mas não será algum pensamento da mesma natureza? Anda; sê franca; sou apenas tua madrasta, e pouco mais velha que tu; posso ouvir tuas confidências e aconselhar-te. Onde acharás melhor amiga do que eu?

Iaiá tinha aplacado a primeira sensação; afivelou de todo a máscara da tranquilidade, enquanto não a substituía por outra. Ergueu-se e disse com afouteza:

- Pois bem, vou confiar-lhe uma cousa... não... suponha... é melhor supor... tenho vergonha de dizer a verdade. Suponha que tive um amor de colégio...

- Tu? Aos treze anos!

- Aos doze e meio.

- Bonito! Não foi começar tarde. Esse amor naturalmente expirou nos braços da última boneca.

- Suponha que não - disse Iaiá em tom sério -. Ora, se eu tiver de casar com o Procópio Dias...

- Quem te fala em casar com ele?

- Por ora é um gracejo; mas, se ele teimar, é possível que nem a senhora nem papai o desamparem, e ainda mais possível que eu me deixe vencer para contentar a todos. Mas é este o ponto de minha confidência: é uma ideia que me persegue há dias. Devo eu casar com um homem amando a outro? Posso fazê-lo? Devo fazê-lo?

Estela estremeceu levemente, sob o olhar impassível e puro da enteada, e não respondeu logo. Iaiá parecia folgar com esse enleio de um minuto; mas ao mesmo tempo o coração lhe sangrava, porque o enleio era a confirmação de suas recentes suposições. A madrasta não tinha a penetração da enteada; além disso, como supor nela o conhecimento de um fato remoto e não divulgado? Estela nem cogitou nisso. Escoou-se o minuto, e ela respondeu com tranquilidade:

- Não deves casar, se o amor pode ser satisfeito sem obstáculo. No caso contrário, o casamento é uma simples escolha da razão: sacrifica-te.

Iaiá, que tinha uma das mãos da madrasta entre as suas, largou-a subitamente. Estela riu, e bateu-lhe na testa com a ponta do dedo.

- Esta cabecinha! - disse ela -. Há aqui dentro muita cousa que é preciso capinar...

No primeiro instante, Iaiá empalideceu. Ao último gesto de Estela respondeu com um sorriso forçado e sem cor. Logo que esta saiu, deixou-se cair na cadeira e fechou o rosto nas mãos. Quando dali saiu, meia hora depois, não trazia nenhum sinal de lágrimas, ou sequer de tristeza. Não vinha alegre, decerto; serena, sim, daquela serenidade com que o caçador do sertão se dispõe a encarar a onça.

Jorge foi jantar e sobre a tarde apareceu Procópio Dias. Durante o jantar e a noite, Iaiá fez impressão na família e nos estranhos pela singular alteração de seus modos. Estava um pouco pálida, mas a viva luz dos olhos parecia comunicar ao rosto uma porção do colorido ausente. Mostrou-se expansiva, e não galhofeira. Suas frases eram longas, deduzidas, iam até o fim do pensamento, sem as interrupções e saltos do costume. De costume, parecia que a moça pensava aos fragmentos, porque era quase impossível ter com ela uma conversa inteiriça e ordenada com a sua variedade própria. Naquele dia era o contrário. Como que a alma despira a roupa de bailarina, para enfiar um roupão caseiro, simples, apertado, subido até o pescoço. Era melhor assim? Era pior? Nem uma nem outra cousa; era uma aparência nova.

Mais do que ninguém, Jorge estimou essa alteração, porque em relação a ele a moça também havia mudado alguma cousa. Iaiá sentira nesse dia mais repugnância do que nunca ao ver o filho de Valéria, e chegou a recuar instintivamente a mão. Cedeu, porém, e o sorriso com que corrigiu a recusa foi o primeiro que Jorge recebeu diretamente dela. Nesse dia a moça respondeu-lhe sem custo, e talvez lhe dirigiu a palavra alguma vez; o que tudo viu Luís Garcia e atribuiu a efeito de suas admoestações.

Nem Luís Garcia nem Jorge poderiam supor que sobre a cabeça da madrasta e da enteada a carta de 1867 agitava as suas letras de fogo. Essa carta importuna, poupada da destruição imediata, era a centelha subitamente lançada no amor adormecido de uma e no ódio nascente de outra; Jorge estava longe de o ler no rosto afável de Iaiá, e no olhar fugidio de Estela.

Pouco depois das dez horas dispersou-se a reunião. O Sr. Antunes aposentou-se por essa noite em casa do genro. Jorge e Procópio Dias saíram juntos.

- Vai para a cidade a esta hora? - perguntou Jorge.

- Repare que ainda me não ofereceu cama - disse rindo o outro.

- Mas ofereço-lhe agora.

- Aceito. Precisava justamente falar-lhe: negócio grave.

- Não é decerto algum fornecimento?

- Nem só de pão vive o homem - acudiu Procópio Dias.

- Que negócio é?

- Uma explicação.

- Sobre...

- Há de ser lá em casa; a noite é escura e os quintais são traiçoeiros.

XI

Entrados em casa, Procópio Dias não se apressou a dar ou pedir a explicação. Ceou primeiro, porque confessou haver adquirido esse costume, e Jorge não se demorou em obsequiá-lo. A ceia improvisada, composta de viandas frias e dous ou três cálices de vinho puro, deixou-o em paz com a natureza. Satisfeita esta, era a hora da explicação.

Não veio ela com facilidade. Indolentemente reclinado numa otomana, Procópio Dias fumava com volúpia e falava com precaução, usando a voz pausada e avara de um homem para quem o digerir é meditar. Se alguma ideia lhe avoaçava lá dentro, era difícil percebê-lo através do olhar exausto e mórbido. Entretanto, a curiosidade de Jorge não lhe permitiu mais longa dilação e Procópio Dias foi compelido a satisfazê-la, quando o moço, parando diante dele, francamente lho pediu.

- Parecia-me mais fácil do que é - disse ele -, sobretudo porque apesar de nos conhecermos há algum tempo, não estou certo da opinião que o senhor forma de mim. Boa?

- Boa.

- Dê-me sua mão. Promete-me ser franco?

- Prometo.

- Qual das duas o leva à casa de Luís Garcia?

Sobressaltado, Jorge retirou vivamente a mão.

- Bem vê - tornou Procópio Dias -; é uma delas.

Passada a primeira impressão, Jorge sentou-se tranquilamente, menos contudo do que afetava estar.

- Na verdade, a sua pergunta é das mais esquisitas que eu esperava ouvir. Ignora as relações de amizade que me prendem àquela casa, relações que herdei de minha família, e que eu apenas continuo? Qual das duas! Não há ali duas; há uma, uma somente, uma... e...

- Não é essa? Não é Iaiá?

Jorge fez um gesto negativo.

- Acredite que me restitui a tranquilidade ao coração - disse Procópio Dias sentando-se de todo -. Não é meu rival? Não tem nenhuma ideia?... Nenhuma ideia vaga?... É isso o que preciso saber... É só isso, e é tudo.

- O senhor gosta de Iaiá?

Procópio Dias fez primeiro um gesto afirmativo; depois balbuciou a confissão plena de seus sentimentos, mas com um ar de envergonhado, meio sincero e meio fingido, e tão a ponto e natural, que era difícil saber onde acabava a sinceridade e onde começava a simulação. Animou-se a pouco e pouco, e não lhe escondeu nada. Confessou que a filha de Luís Garcia lhe transtornara de todo o espírito e que ele estava resoluto aos maiores sacrifícios para obter-lhe a mão.

- Às vezes supunha que o senhor andava nas minhas fronteiras - concluiu ele -, ideia que me afligia, porque o senhor tem sobre mim vantagens incontestáveis. A suspeita desvanecia-se e eu tranquilizava-me. Hoje, porém, confesso-lhe que a suspeita reapareceu e entrou a devorar-me o coração; e ainda assim, tinha intervalos, porque ora me parecia que o seu objeto era Iaiá, ora que era a outra...

- Perdão - interrompeu Jorge -; eu já lhe disse o que devia, e não posso consentir que voltemos ao mesmo ponto. Uma de suas suspeitas é injuriosa para mim.

- Tem razão; eu devia tê-lo pensado - assentiu Procópio Dias -. Mas que quer? Nada se deve imputar aos dementes e aos namorados. Perdoa-me? Em todo caso, pode crer que a minha índole não é tão tolerante com o vício que me fizesse desejar haver dado em balda certa. Não sou rigoroso; sei que as paixões governam os homens, e que a força de as reger não é vulgar. Por isso mesmo é que se estima a virtude. No dia em que a natureza se fizer comunista e distribuir igualmente as boas qualidades morais, a virtude deixa de ser uma riqueza; fica sendo cousa nenhuma.

- Deixe-me falar-lhe com franqueza - disse Jorge, rindo -; eu desconfio que o senhor é ainda menos rigoroso do que diz. Parece-me que se a sua suspeita, em relação à outra, tivesse fundamento, o senhor não me ouviria com indignação.

- Talvez estimasse.

Jorge não disse nada; olhou somente para o interlocutor, com um ar de estupefação, a que o outro sorriu benevolamente. Fez-se uma curta pausa. Procópio Dias rompeu enfim o silêncio:

- Talvez estimasse, sem deixar de indignar-me depois; isto é, a indignação no momento seria abafada pelo interesse. Atenda-me, doutor; sejamos justos com a natureza humana. Virtudes inteiriças são invenções de poetas. Não me fazia bom cabelo que o senhor gostasse da outra, e menos ainda que ela lhe correspondesse, porque, em suma, ambicionando entrar na família, não desejaria que a família tivesse a menor mácula. Esta é a realidade. Mas, eu amo, doutor; e por mais ridícula que pareça esta confissão, por mais grosseira que seja a minha casca, a verdade é que amo a enteada apaixonadamente; é o meu pensamento de todos os dias. Ora, dado que o senhor amasse a outra, qual era o primeiro movimento do meu coração? Ligá-los ao meu interesse. Desde que entre os dous houvesse um segredo, e que esse segredo fosse descoberto ou suspeitado por mim, o senhor e ela eram os meus melhores aliados, e a resistência daquela menina, e a vontade do pai, tudo cedia em meu favor.

Procópio Dias proferiu estas palavras com simplicidade e convicção. Seus olhos plúmbeos pareciam duas portas abertas sobre a consciência. A expressão do rosto era a de um cinismo cândido. Jorge contemplou-o alguns instantes sem dizer palavra, ao parecer subjugado pelo raciocínio. Ouvira-o pasmado e satisfeito. Tanta franqueza não mostrava que Procópio Dias já não suspeitava nada? Jorge sorriu e replicou:

- O que o senhor acaba de dizer não será animador, mas persuado-me que é a realidade pura. Admira-me somente que tenha tanta penetração e superioridade para ver e confessar os vícios da natureza humana...

- Sou prático - tornou o outro sorrindo -. Raras vezes me irrito, conquanto lastime sempre o que é fraqueza ou perversão. Assim, por exemplo, eu não lhe ficaria querendo mal se o senhor me houvesse iludido agora acerca de seus sentimentos, porque o seu interesse e o seu dever é negá-los.

- Perdão; já lhe dei minha palavra.

- Não deu, nem eu lha pedi, nem pediria, porque a palavra de honra não obriga a consciência, quando é dada para salvar uma questão de honra. O senhor poderia dá-la sem sinceridade nem remorso. Já não é a mesma cousa se me jurasse, porque o juramento, invocando o testemunho de um ente superior, esse obriga a consciência que não está pervertida.

- Não exige de mim que jure, espero eu? - disse Jorge.

- Há ainda uma raiz de dúvida, em meu coração - replicou Procópio Dias sorrindo.

- Pois juro-lhe...

Procópio Dias levantou-se de súbito.

- Não precisa mais - exclamou ele apertando-lhe as mãos. Agora creio; creio de todo. Não é meu rival, nem corrompe a família a que pretendo unir-me. Se soubesse o prazer que me deu com a sua última palavra! Obrigado! Agora creio. Ria-se de mim, ria-se; eu creio que esta expansão pode ter um lado grotesco - há de ter decerto. O que lhe afianço é que se minha felicidade não é completa depende somente da fortuna, não dos homens...

Sentou-se depois destas palavras, proferidas quase sem respirar.

Jorge acompanhou-o nessa expansão de felicidade. Pareciam satisfeitos um do outro. Procópio Dias confessou que era a primeira pessoa a quem falava de seus sentimentos, e não se vexava de dizer que, ao cabo de alguns meses, nada podia saber do coração da moça. Às vezes supunha ser aceito; outras, e eram as mais numerosas, tinha a persuasão contrária.

- O senhor naturalmente conhece-a e sabe que obra de contradição é aquela mocinha - disse ele -. Há ocasiões em que sua familiaridade comigo chega quase à sedução. Talvez exagero; mas que hei de pensar de uma moça que me pede instantemente que vá lá, em certo dia, com um modo grave e cheio de promessas? Digo-lhe sim; vou, recebe-me com um epigrama, ri-se de mim, abusa da complacência e não sei se do amor, porque, conquanto não lhe haja dito nada, acho natural que ela o tenha descoberto nos meus olhos. Se fico despeitado e resolvido a não voltar lá, ela torna-se mansa, como uma pomba, carinhosa, macia, e o meu despeito evapora-se, e eu continuo a minha viagem interminável.

- Nunca lhe deu a entender nada, ao menos por alusão?

- Nunca; receio que não me deixasse acabar.

- Não creia; eu suponho que ela gosta do senhor.

- Sabe disso?

- Não; mas é o que concluo do que me contou. As mulheres têm às vezes caprichos; e demais há naquela uns restos de criança, que a faz ainda mais caprichosa. Meu raciocínio é este: se ela percebeu, e não o repele absolutamente, é porque o senhor ainda pode ter esperanças...

Procópio Dias não pôde exprimir a alegria que estas palavras de Jorge lhe entornaram na alma; seus olhos brilharam de uma luz estranha, depois fecharam-se, enquanto a cabeça pendeu para trás, de um jeito lânguido. Durante essa pausa de alguns minutos, Jorge pode analisar as feições de Procópio Dias, pouco próprias a fascinar uns olhos de dezesseis anos, e achou natural que Iaiá não se sentisse tomada de cego entusiasmo. Contudo, não era impossível corresponder-lhe de algum modo, se a razão tomasse as rédeas ao coração. Jorge supunha até que houvesse em Iaiá uma semente de simpatia, que bastava fazer germinar.

Entrando no quarto que lhe fora destinado, Procópio Dias estava longe de ter sono; a excitação trazia-o esperto. Entrou, abriu a janela e olhou ao largo. O aroma vivo das plantas da chácara ainda mais lhe apurou o sistema. Não era homem de contemplar estrelas nem de fazer filosofias acerca da solidão noturna e do sono das cousas; limitou-se a pensar no que acabava de ouvir.

"Gosta da Estela" - murmurou ele -; "antes de jurar podia ser duvidoso; depois do juramento é positivo. Se ela não gosta dele faz mal; é um rapaz de espavento".

Depois, abriu as asas ao pensamento e foi direito a Iaiá, galgando o espaço e derrubando paredes; foi e contemplou o seu sono de virgem, que ele supunha ser quieto e puro, mas que a essa mesma hora era turbado e já complicado das ideias do mal. Procópio Dias deixou-se ir ao sabor da paixão, que era viva e sincera, uma conspiração surda e misteriosa de todas as forças sensuais.

A figura terna e virginal de Iaiá aparecera-lhe um dia, subitamente, como uma visão não sonhada. Se ele a visse em algum salão aristocrático pensaria nela numa noite, talvez uma semana, até esquecê-la ou substituí-la. Mas o que o prendeu a Iaiá Garcia foi justamente a mediocridade do nascimento. Possuí-la era fazer-lhe um favor. Quantas outras lhe não levaram os olhos de sátiro, ao descer de uma carruagem, ou ao resvalar indolentemente o seu talhe na contradança de bom-tom? Ele via-as passar ou estar, com os ombros nus ou cingidos da caxemira elegante, risonhas umas, outras sérias, todas altivas e compassadas, e sentia que os anos, feições e maneiras o distanciavam delas; não era difícil apagá-las da memória.

Iaiá teria antes de agradecer a escolha; era a sua convicção, e foi o que mais o ligou à filha de Luís Garcia.

Quando a moça refletisse que acharia no marido a satisfação de todas as veleidades do luxo, o gozo das cousas superfinas, elegantes e raras, devia ceder por força e preferi-lo a quem lhe desse apenas coração, trabalho e necessidades. Uma vez brotada a ideia, cresceu e tomou-lhe o cérebro todo. Iaiá era então a figura presente a seus olhos, ora divina e casta, ora ardente e lúbrica - lúbrica, porque ele em sua imaginação conspurcava-a antes mesmo de a possuir.

No dia seguinte acordaram tarde e almoçaram juntos, sem tornar no assunto da véspera. No fim do almoço, Procópio Dias referiu-se a ele, dizendo que fora excessivo na noite anterior, e pedindo a Jorge que o não levasse a mal; porquanto era tudo filho de um sentimento que não peca por moderado na suspeita, nem equitativo na apreciação.

- Não podia atribuir-lhe outro motivo - redarguiu Jorge sorrindo.

- Não ficou mal comigo?

- Mal? A prova é que se dependesse de mim casá-lo, casava-o amanhã mesmo.

Procópio Dias agradeceu-lhe a simpatia e o obséquio, e saiu. Jorge foi dali vestir-se para ir passar alguns minutos no escritório. Enquanto se vestia, pensava na situação do ex-fornecedor do exército. Não eram amigos, mas o caso de Procópio Dias interessava-o; era simpático a seus olhos. Não indagou se essa simpatia brotava do medo; persuadia-se ingenuamente do contrário. Um marido apaixonado e opulento! Duas vantagens que uma moça nas condições de Iaiá devia aceitar com ambas as mãos. Talvez Procópio Dias não fosse mal aceito ao coração da moça; somente, havia nesta uns vestígios de criança, que o tempo devia apagar.

"Naquela idade um pretendente é uma espécie de boneca" - dizia Jorge atando a gravata -; "o que é preciso, a todo trance, é fazer da boneca um esposo."

Chegando ao escritório, ao meio-dia, Jorge encontrou o Sr. Antunes consternado. Tinha dormido até onze horas, chegara tarde à casa em que trabalhava, o patrão convidara-o a fazer as contas. Era uma pequena casa de comércio, onde o Sr. Antunes, que entendia de escrituração mercantil, trabalhava desde algum tempo, graças ao obséquio de Jorge.

- Mas já foi despedido? - perguntou este.

- Devo fazer as minhas contas e retirar-me no fim do mês.

Jorge escreveu duas linhas ao patrão do Sr. Antunes. De tarde, foi este a Santa Teresa. Jorge ia sentar-se à mesa do jantar; o Sr. Antunes já tinha jantado, mas acompanhou-o.

- Venha, venha - disse o moço -; preciso ralhar-lhe.

Vexado e tímido, o Sr. Antunes sentou-se defronte de Jorge, que não lhe disse nada durante os primeiros minutos. Jorge falou enfim, repreendendo-o amigavelmente; disse-lhe que as exigências do comerciante não eram exageradas, e em todo caso não havia meio de opor-se a elas, salvo se quisesse deixar a casa.

- Isso mesmo - disse o pai de Estela.

- Não faça isso; não se ganha nada em andar de emprego em emprego. Demais, francamente, não vejo que entrar antes das dez horas seja cousa difícil. Seu genro faz isso há muitos anos.

- Meu genro!... Meu genro!... - disse o Sr. Antunes sacudindo a cabeça com um gesto de enfado.

Jorge fingiu não atender ao gesto e ao tom do pai de Estela, e tratou de o converter à pontualidade, obra que começava a ser difícil, porque o Sr. Antunes entrava já nas consequências lógicas e naturais de uma longa dependência; preferia o favor ao trabalho, e os anos contribuíam para esse amor da inércia e do benefício gratuito. A maior ambição que o animou, se a fortuna a houvera realizado, dar-lhe-ia todos os meios de envelhecer tranquilo. Agora tinha encanecido, e o corpo, embora lesto, começava a suspirar pela inação.

Jorge deixou o assunto para não vexar o antigo protegido do pai, e acabou o jantar alegremente. No fim recebeu um bilhetinho de Procópio Dias.

Não imagina, dizia este, que dia tenho passado, depois da nossa conversa de ontem. Teimo em dizer que fui excessivo, e ainda uma vez lhe peço me releve a falta. Poderia o senhor castigar um doido? O amor não tem imputação. Queime este bilhete; em todo caso não o revele a ninguém, sobretudo à pessoa de que se trata.

Jorge sorriu e releu o bilhete; depois fechou-o na secretária e escreveu esta simples resposta: "Ainda uma vez, não há que perdoar. O senhor foi apenas desconfiado, como todos os ciumentos; mas, como não inventou o ciúme, não lhe faço carga disso."

Entregue a resposta, Jorge olhou para o Sr. Antunes, que fumava discretamente um charuto do bacharel.

- Ouvi dizer hoje uma cousa - disse Jorge com ar indiferente -; ouvi dizer que Iaiá vai casar.

- Casar? - repetiu o Sr. Antunes com um sobressalto. E depois de um instante: - É possível; naquela casa o último que sabe das cousas sou eu.

- Talvez não passe de balela. Nem me disseram com quem. Provavelmente há algum namorado ou aparência disso, e então os noveleiros vão logo ao fim. Mas haverá deveras algum pretendente ou namoro?...

- Que eu saiba, nada - asseverou o Sr. Antunes -. E até, deixe-me dizer-lhe o que penso, duvido que ela cuide por ora de semelhante cousa. Aquela menina não tem cabeça.

- Oh! - exclamou Jorge rindo.

- Não tem, digo-lhe eu. Está ali, está no hospício. Não se pode dizer que seja travessura, porque não está em idade disso; é pancada. Se soubesse as cousas que ela faz às vezes!

- Não me parece; quando a vejo, é sempre com um modo comedido, e muitas vezes sério...

- Lá isso é porque ela não gosta do senhor.

- Não gosta de mim? - perguntou Jorge admirado.

- Não digo que absolutamente não goste - obtemperou o pai de Estela -; não lhe tem muita simpatia, é o que é.

- Como sabe você disso?

- Ouvi uma vez o pai repreendê-la, porque de propósito voltara as costas ao senhor; e então ela levantou os ombros, assim com um ar de pouco caso. O pai tornou a dizer que aquilo não era bonito, mas perdeu o tempo; Iaiá pregou os olhos nas unhas, com a testa franzida, e eu saí porque já não podia aturar nem um nem outro.

Jorge ficou alguns instantes pensativo. Era certo que Iaiá o tratara sempre com muito resguardo e frieza; mas, suposto que isso não significasse simpatia, e até lhe sentisse alguma hostilidade, estava longe de atribuir-lhe declarada aversão. Do gesto a que o Sr. Antunes aludira, não se lembrava absolutamente, mas era possível. Demais, pensou ele, o Sr. Antunes não o inventaria na ocasião; não era caluniador; faltava-lhe essa ferocidade. Mas, por que motivo não gostaria dele a filha de Luís Garcia? Era a segunda vez que Jorge fazia essa pergunta, sem lhe achar resposta plausível. Em seguida, recordou-se da noite anterior, e observou ao pai de Estela que Iaiá o tratara na véspera com alguma cordialidade.

- Milagre de ano-bom! - explicou o Sr. Antunes. Também lhe digo que não perde nada se ela não gostar do senhor; é uma fortuna. Porque ela, quando gosta de uma pessoa, é de fazer-lhe perder a paciência.

- Mas parece ter bom coração, e creio que gosta muito do pai.

- Também Estela gosta de mim.

Jorge fechou neste ponto a conversação. Seu pensamento voltou à revelação inopinada do Sr. Antunes. Por mais indiferente que Iaiá lhe fosse, Jorge sentia-se molestado com a certeza de que a moça não gostava dele. Por que seria? Simples antipatia ou outra cousa?

A preocupação desvaneceu-se na tarde do dia seguinte, quando Jorge apareceu em casa de Luís Garcia. Foi a própria Iaiá quem veio abrir-lhe a porta do jardim dizendo, alegremente:

- Entre, Sr. doutor, que já se fazia esperado.

Jorge não pôde esconder o assombro que lhe produzira aquela recepção; nem o assombro nem a alegria. Entrou e estendeu-lhe a mão.

- Não posso - tornou a moça, mostrando a sua, fechada -, só se adivinhar o que está aqui dentro.

- Não é uma estrela.

- Não, senhor; é um cavalo.

No fundo do jardim estava Luís Garcia, com o tabuleiro do xadrez: acabava de dar uma lição à filha, que lha pedira desde antes do jantar. Iaiá levou até lá o filho de Valéria. Pela primeira vez sentou-se ao pé dos dous para vê-los jogar; fincou os cotovelos na mesa e encostou o queixo nas mãos; queria aprender, dizia ela, em três semanas.

- Três semanas! - repetiu o pai a sorrir e a olhar para Jorge.

Das qualidades necessárias ao xadrez, Iaiá possuía as duas essenciais: vista pronta e paciência beneditina; qualidades preciosas na vida, que também é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nulas.

A+
A-